quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O FILÓSOFO CÉTICO


Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara

    Escrevia com pena de aço e tinteiro. Pela sua pena, escorria a alma. Mas não tinha fé. Olhava para os objetos do universo e constatava a maravilhosa organização de tudo. Estudara na grande escola dos filósofos da Babilônia. Dominava as matemáticas: os sutis cálculos que permitiam as construções gigantescas que encantavam os olhos dos transeuntes.
Percorrera as teorias sobre a origem do universo. As hipóteses científicas gregas dos quatro elementos fundamentais: a água, o fogo, a terra e o ar. Depois, dedicara longos anos aos estudos da alma humana. A formação dos tipos marcantes de categorias universais de indivíduos. Identificava os amorfos, os apaixonados, os apáticos, os coléricos, os fleumáticos, os nervosos, os sanguíneos e os sentimentais apenas ao contemplar suas faces.
De longe, vinham caravanas à busca de seus conselhos. A todos sempre tinha uma palavra de ânimo, de alento, de acordo com as necessidades individuais detectadas pela sabedoria que lhe permitia enxergar, pela máscara das faces, as ansiedades ocultas e as frustrações angustiantes.
Muitos desejavam mesmo construir-lhe um templo ou uma academia ao que sempre se negara. De graça recebera, graciosamente distribuía a cada um segundo se lhe parecia mais adequado.
Porém, fé, não a tinha. Jamais presenciara um milagre, a não ser aqueles que sua sabedoria e sua ciência puderam explicar. Percorrera os caminhos, das verdejantes margens do fecundante Tigre e do Eufrates, transpondo os desertos e planícies cultivadas até as costas da Síria. Transpusera, em seu camelo, seguindo as caravanas que comercializavam preciosidades, as montanhas de Golan e chegara à rumorosa Damasco. Descera pacientemente, por longos dias, pelas margens do Jordão, que vadeara rumo a Jericó.
Seguira mais para o sul, onde costeara o Mar Morto até chegar às margens do Mar Vermelho. Aí, com seu camelo, junto a enorme caravana, transpusera, numa barca, esse mar, e seguira rumo ao Nilo. Nas calmas planícies de Amarna, aprendera, por dois anos, com aos sacerdotisas de Isis, toda a ciência oculta que os sábios das margens do grande rio acumularam por milênios sem conta.
Depois, refizera o caminho de retorno à pátria, pacientemente, até chegar à Caldeia, onde, humildemente, nas montanhas de Ur, distribuída a todos, os dons de sabedoria que a existência lhe confiara, enquanto aguardava o derradeiro momento.
Porém, não recebera o dom da fé. Invejava os monges ismaelitas que jejuavam no deserto e oravam, no seu majestoso templo, em altas vozes, enquanto o sol se deitava no horizonte sombrio e avermelhado como uma romã muito madura, pela tardinha inebriante. Invejava também a fé ingênua dos pastores que conduziam lentamente seus rebanhos pelas montanhas, na esperança de uma vida futura feliz, diferente da miséria em que arrastavam seus corpos escaldantes e lacerados.

Numa tarde calma, desfaleceu, na pobre cabana que o abrigara por incontáveis meses e anos. Quando chegou a primeira caravana da manhã seguinte, já permanecia enrijecido sobre seu catre de panos limpos e rotos. Fizeram, então, uma gruta de pedras rudes, onde depuseram seu corpo, que, de tão magro, sequer emitiu os odores enojantes dos cadáveres. E os passantes o cultuam ternamente como a um terno e amado santo.

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