sexta-feira, 31 de maio de 2013

CRÔNICA PARA ALCALÁ

Maria Cristina Freitas Brisolara
Em 18/06/2011

   No dia de abertura do XVI Congreso Internacional de la ALFAL – Associação de Linguística e Filologia da América Latina – saídos do Rafael Hoteles, chegamos de táxi, entre emocionados e deslumbrados, ao centro de Alcalá de Henares. Nesta cidade nasceram Catarina de Aragão, Rainha da Inglaterra, e Miguel de Cervantes, o autor de Dom Quixote, considerado o primeiro romance moderno e um dos melhores romances já escritos, um clássico da literatura espanhola.
   Não sei por que, não por Miguel, mas por Catarina, a cidade – desde que começamos a pensar em participar do evento – pareceu-me mais importante. A imagem de Catarina em meu imaginário, sempre foi muito forte: a filha mais nova dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, aquela do triste destino, preterida em favor de Ana Bolena. Primeira esposa de Henrique VIII, dedicadíssima a obras de caridade, o que lhe conferiu o amor do povo inglês, Catarina tornou-se uma eterna rainha. Seu casamento com o rei mudou para sempre o destino e o curso da história de uma nação, pois, desde que o papa se recusou a decretar o divórcio de Henrique VIII com ela, o rei da Inglaterra rompeu com a Igreja Católica. Condenada a morrer no exílio imposto pelo marido, jamais aceitou o divórcio e continuou a assinar a correspondência como Catherine, the Queen. Até hoje, é a rainha mais amada dos ingleses. Seu túmulo em Peterborought nunca está sem flores, mesmo passados quase cinco séculos de sua morte.
   Perdoe-me o Miguel pelo segundo lugar, mas que menina e mocinha adolescente não se rendeu aos encantos das histórias de reis e rainhas, príncipes e princesas transitando pelos corredores de castelos majestosos?
   Ah, Miguel, eu também amo a tua Dulcineia – que, agora, sem acento, nem parece a mesma de quem eu falava nas provas de literatura do meu tempo de graduação – a tua donzela Dulcineia del Toboso, figura etérea, transparente, espécie de espírito ou de projeção do pensamento de teu Dom Quixote, o Cavaleiro de Triste Figura que, mesmo só a tendo visto uma ou duas vezes, promete-lhe seu amor eterno.
   E, na cidade eleita como “Patrimônio da Humanidade”, pela UNESCO, devido à sua histórica tradição universitária e à sua riqueza cultural, chegamos nós diante de uma das Universidades mais antigas do mundo.
Uma anfitriã do evento apontou-nos o local da realização do Congresso, o Colégio de Málaga, prédio da Universidad de Alcalá de Henares, sede da Facultad de Filosofía y Letras.
   Completamente envolvidos pela atmosfera medieval de Alcalá, atravessamos a Plaza de Cervantes. A cidade parecia iluminada por algum anjo que a queria deslumbrante para nos receber.
   Chegamos àquela monumental porta de madeira com uma altura de 6m a 7m, guarnecida de pregos de cabeça larga e com ornatos em alto relevo. Entrar ali foi um abstrair-nos do acelerado mundo atual, um transladar-nos para um passado sem tempo, retrocedendo no ritmo da história. Mas uma receptiva voz real nos levou a entrarmos em filas identificadas pelas letras iniciais dos nossos sobrenomes, a fim de apanharmos nossos crachás e pastas com o material do Congresso.
   Voltamos à frente do prédio. Era cedo ainda, mas, sem dizermos um ao outro, um único pensamento nos inquietava: E as meninas, nossas alunas? Teriam encontrado o caminho de Madrid a Alcalá?
   Nem foi preciso verbalizarmos a comum preocupação. Sorridentes e saltitantes, naquela belíssima composição matinal de sol, céu azul e nuvens brancas, surgiram as quatro pela lateral da Plaza de Cervantes: Bruna, Caroline, Emma e Josiane. Misturadas ao movimento de vai-e-vem de pessoas de todas as idades – estudantes, professores – que chegavam para o Congresso, lá vinham elas ao nosso encontro.
   Com que brilho nos olhos entraram conosco no prédio secular! Com que alegria e orgulho receberam seus crachás e pastas azuis identificadas com o logotipo da Universidad de Alcalá! Com que entusiasmo percorreram conosco aqueles longos corredores da instituição, subiram e desceram a bela escadaria de mármore e madeira, à procura da sala 13, onde aconteceria nossa apresentação dali a dois dias! Como se quisessem captar toda a vida que já existira ali, quantas fotos tiraram daquelas paredes rasgadas por imensas janelas ladeadas por marcos de pedra, daquelas salas de cujos tetos pendiam correntes a segurarem lustres enormes, daquela Vênus de Milo de mármore do patamar intermediário da escadaria que se bifurcava! 
   Momento de encantamento! De repente, através da vidraça das imensas janelas, percebem os habitantes mais charmosos de Alcalá de Henares: as cegonhas. No alto da torre da Universidad – bela torre adornada por agulha, bola, cruz e catavento – um casal de cegonhas vigiava um enorme ninho de palha onde, provalmente, estavam seus filhotes. 
   Soubemos, depois, que, todos os anos, as cegonhas fazem dos campanários, das torres e dos telhados o lar onde nascerão as suas crias, oferecendo aos transeuntes, com os seus majestosos voos, um espetáculo indescritível.
   Lá embaixo, a confraternização: um cofee-break. Felizes, as meninas faziam ares de importância e nos mimavam servindo cafezinhos e alcançando-nos docinhos das mesas dispostas ao longo de um corredor térreo.
   Hora de conhecer a cidade. Afinal, Alcalá convida a passear. Saímos em grupo a perambular pela Idade Média. À frente do Colégio de Málaga, a “plaza” onde, ao centro, está a estátua de Miguel de Cervantes, delgado e austero.
Rodeada de edifícios históricos e ladeada por rosas e acácias que renderam inspiradas fotos em “close” pela câmera da Bela Bruna, esta praça constitui o verdadeiro centro social da cidade. À sua volta, muitas cafeterias e restaurantes, por meio dos quais ficamos sabendo que Alcalá é a cidade das “tapas”. O conceito espanhol de tapas equivale ao de "apéritif" dos franceses. As tapas consistem num pequeno bocado de pão com qualquer coisa dentro, servido com uma bebida. Diz uma lenda local que são “tapas” porque servem para impedir que entre pó na boca.
   Nas ruas que circundam a praça, encontra-se o “ayuntamiento” e o “Casino de Alcalá”. Entrando por uma perpendicular à Plaza de Cervantes, chega-se à rua que dá acesso a outra praça e ao prédio principal da Universidade.
Atravessamos a praça para continuarmos a descobrir a cidade. Seguimos pela Calle Mayor, a rua principal que une a Alcalá medieval à Alcalá renascentista.
    Ao longo da rua, numerosas lojas. A Calle Mayor é uma zona comercial intramuros. Logo no início, encontramos duas estátuas. Nada mais, nada menos que as duas célebres personagens da obra prima de Cervantes, Dom Quixote e Sancho Pança.
   Pensamentos furtivos confundiam-se com a realidade. Diante da casa do escritor, uma típica casa espanhola da Idade Média, eu já não circulava pelo sangue azul das veias de Catarina de Aragão, mas sentia-me como aprisionada pelo encantamento de estar passeando pela obra de Cervantes, como se tivesse dentro do livro, caminhando por dentro de suas páginas. Dom Quixote, Sancho e Dulcineia cantavam para mim.
   E o passeio continuava pela atmosfera amistosa e pacífica da cidade. Desfilavam por nossos olhos prédios altos e baixos em tijolo; toldos verdes sobre varandas; prédios de estilo renascentista e barroco. Avistamos uma igreja. Na igreja, outro repente. Outro des-lum-bra-men-to. A torre, feita de ferro, estava decorada com outro ninho de cegonha. Emma batia fotos, dizendo: – Que lindo! Que lindo! 
   Entramos na Catedral Magistral, belíssima, com seus traços góticos. Depois dali, em um edifício de estilo árabe, uma galeria de arcadas, e mais outro ninho. Nas gárgulas, mais cegonhas, tantas cegonhas, mais ninhos.
   Enormes ninhos. As aves ofereciam ao nosso olhar um verdadeiro espetáculo em contra-plongée com seus voos elegantes.
   Passear por Alcalá é um constante encantar-se com a arte, com a arquitetura. Mas a melhor forma de encontrar-se em Alcalá é perder-se nela, ainda que dispondo de mapas. Cadê o hotel onde estávamos hospedados? Queríamos levar lá as meninas. Queríamos ensaiar nossa apresentação, cronometrarmos o tempo. Sabíamos que um Congresso na Europa é formal. Mas cadê o hotel?
   Desistimos de procurá-lo. Desistimos de ensaiar. Afinal, todos já haviam estudado suficientemente seus textos, durante os seis meses de preparo para o congresso! E teríamos ainda todo o dia seguinte para fazermos a simulação de nossa performance! Um táxi nos leva, sem erro, até o Rafael Hoteles, onde deixaríamos nossas pastas. Iríamos encontrar-nos novamente com as meninas na estação de trens. Passaríamos a tarde em Madrid.
   De fato, encontramo-nos. Porém, uma lembrança triste assaltou-nos, ao chegarmos. Um dos trens que explodiram nos atentados de 11 de março de 2004 saíra daquele lugar. Por isso, víamos aquele monumento, homenageando as vítimas, na frente da estação de trens. Nós, mais Carol e Josi, tiramos fotos junto às estátuas. 
   E fomos todos para Madrid. Mal sabíamos que, dali a dois dias, Maria Helena de Moura Neves – linguista, pesquisadora, autora de gramáticas de língua portuguesa e do único dicionário português-grego do mundo – seria a mediadora, na sala onde apresentaríamos nossos trabalhos e que, honrando a FURG, faríamos muito bonito.
   Olé! 






3 comentários:

  1. Belíssimas e sensiveis anotações de minha querida Maria Cristina! Levou-me às cenas, tal a emoção a cada detallhe. Texto de mestre!

    ResponderExcluir
  2. Cris, é sempre um privilégio ler teus textos, acompanhar teus pensamentos e tuas impressões. Escreve mais para nós, querida. Beijos.

    ResponderExcluir