Maria Cristina Freitas Brisolara
Em 18/06/2011
No dia de abertura do XVI Congreso Internacional de la ALFAL –
Associação de Linguística e Filologia da América Latina – saídos do
Rafael Hoteles, chegamos de táxi, entre emocionados e deslumbrados, ao
centro de Alcalá de Henares. Nesta cidade nasceram Catarina de Aragão,
Rainha da Inglaterra, e Miguel de Cervantes, o autor de Dom Quixote,
considerado o primeiro romance moderno e um dos melhores romances já
escritos, um clássico da literatura espanhola.
Não sei por que,
não por Miguel, mas por Catarina, a cidade – desde que começamos a
pensar em participar do evento – pareceu-me mais importante. A imagem de
Catarina em meu imaginário, sempre foi muito forte: a filha mais nova
dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, aquela do
triste destino, preterida em favor de Ana Bolena. Primeira esposa de
Henrique VIII, dedicadíssima a obras de caridade, o que lhe conferiu o
amor do povo inglês, Catarina tornou-se uma eterna rainha. Seu casamento
com o rei mudou para sempre o destino e o curso da história de uma
nação, pois, desde que o papa se recusou a decretar o divórcio de
Henrique VIII com ela, o rei da Inglaterra rompeu com a Igreja Católica. Condenada a morrer no exílio imposto pelo marido, jamais aceitou o
divórcio e continuou a assinar a correspondência como Catherine, the
Queen. Até hoje, é a rainha mais amada dos ingleses. Seu túmulo em
Peterborought nunca está sem flores, mesmo passados quase cinco séculos
de sua morte.
Perdoe-me o Miguel pelo segundo lugar, mas que
menina e mocinha adolescente não se rendeu aos encantos das histórias de
reis e rainhas, príncipes e princesas transitando pelos corredores de
castelos majestosos?
Ah, Miguel, eu também amo a tua Dulcineia –
que, agora, sem acento, nem parece a mesma de quem eu falava nas provas
de literatura do meu tempo de graduação – a tua donzela Dulcineia del
Toboso, figura etérea, transparente, espécie de espírito ou de projeção
do pensamento de teu Dom Quixote, o Cavaleiro de Triste Figura que,
mesmo só a tendo visto uma ou duas vezes, promete-lhe seu amor eterno.
E,
na cidade eleita como “Patrimônio da Humanidade”, pela UNESCO, devido à
sua histórica tradição universitária e à sua riqueza cultural, chegamos
nós diante de uma das Universidades mais antigas do mundo.
Uma
anfitriã do evento apontou-nos o local da realização do Congresso, o
Colégio de Málaga, prédio da Universidad de Alcalá de Henares, sede da
Facultad de Filosofía y Letras.
Completamente envolvidos pela
atmosfera medieval de Alcalá, atravessamos a Plaza de Cervantes. A
cidade parecia iluminada por algum anjo que a queria deslumbrante para
nos receber.
Chegamos àquela monumental porta de madeira com uma
altura de 6m a 7m, guarnecida de pregos de cabeça larga e com ornatos em
alto relevo. Entrar ali foi um abstrair-nos do acelerado mundo atual,
um transladar-nos para um passado sem tempo, retrocedendo no ritmo da
história. Mas uma receptiva voz real nos levou a entrarmos em filas
identificadas pelas letras iniciais dos nossos sobrenomes, a fim de
apanharmos nossos crachás e pastas com o material do Congresso.
Voltamos
à frente do prédio. Era cedo ainda, mas, sem dizermos um ao outro, um
único pensamento nos inquietava: E as meninas, nossas alunas? Teriam
encontrado o caminho de Madrid a Alcalá?
Nem foi preciso verbalizarmos a comum preocupação. Sorridentes e
saltitantes, naquela belíssima composição matinal de sol, céu azul e
nuvens brancas, surgiram as quatro pela lateral da Plaza de Cervantes:
Bruna, Caroline, Emma e Josiane. Misturadas ao movimento de vai-e-vem de
pessoas de todas as idades – estudantes, professores – que chegavam
para o Congresso, lá vinham elas ao nosso encontro.
Com que
brilho nos olhos entraram conosco no prédio secular! Com que alegria e
orgulho receberam seus crachás e pastas azuis identificadas com o
logotipo da Universidad de Alcalá! Com que entusiasmo percorreram
conosco aqueles longos corredores da instituição, subiram e desceram a
bela escadaria de mármore e madeira, à procura da sala 13, onde
aconteceria nossa apresentação dali a dois dias! Como se quisessem
captar toda a vida que já existira ali, quantas fotos tiraram daquelas
paredes rasgadas por imensas janelas ladeadas por marcos de pedra,
daquelas salas de cujos tetos pendiam correntes a segurarem lustres
enormes, daquela Vênus de Milo de mármore do patamar intermediário da
escadaria que se bifurcava!
Momento de encantamento! De repente, através da vidraça das imensas
janelas, percebem os habitantes mais charmosos de Alcalá de Henares: as
cegonhas. No alto da torre da Universidad – bela torre adornada por
agulha, bola, cruz e catavento – um casal de cegonhas vigiava um enorme
ninho de palha onde, provalmente, estavam seus filhotes.
Soubemos, depois, que, todos os anos, as cegonhas fazem dos
campanários, das torres e dos telhados o lar onde nascerão as suas
crias, oferecendo aos transeuntes, com os seus majestosos voos, um
espetáculo indescritível.
Lá embaixo, a confraternização: um
cofee-break. Felizes, as meninas faziam ares de importância e nos
mimavam servindo cafezinhos e alcançando-nos docinhos das mesas
dispostas ao longo de um corredor térreo.
Hora de conhecer a
cidade. Afinal, Alcalá convida a passear. Saímos em grupo a perambular
pela Idade Média. À frente do Colégio de Málaga, a “plaza” onde, ao
centro, está a estátua de Miguel de Cervantes, delgado e austero.
Rodeada
de edifícios históricos e ladeada por rosas e acácias que renderam
inspiradas fotos em “close” pela câmera da Bela Bruna, esta praça
constitui o verdadeiro centro social da cidade. À sua volta, muitas
cafeterias e restaurantes, por meio dos quais ficamos sabendo que Alcalá
é a cidade das “tapas”. O conceito espanhol de tapas equivale ao de
"apéritif" dos franceses. As tapas consistem num pequeno bocado de pão
com qualquer coisa dentro, servido com uma bebida. Diz uma lenda local
que são “tapas” porque servem para impedir que entre pó na boca.
Nas
ruas que circundam a praça, encontra-se o “ayuntamiento” e o “Casino de
Alcalá”. Entrando por uma perpendicular à Plaza de Cervantes, chega-se à
rua que dá acesso a outra praça e ao prédio principal da Universidade.
Atravessamos
a praça para continuarmos a descobrir a cidade. Seguimos pela Calle
Mayor, a rua principal que une a Alcalá medieval à Alcalá renascentista.
Ao longo da rua, numerosas lojas. A Calle Mayor é uma zona
comercial intramuros. Logo no início, encontramos duas estátuas. Nada
mais, nada menos que as duas célebres personagens da obra prima de
Cervantes, Dom Quixote e Sancho Pança.
Pensamentos furtivos
confundiam-se com a realidade. Diante da casa do escritor, uma típica
casa espanhola da Idade Média, eu já não circulava pelo sangue azul das
veias de Catarina de Aragão, mas sentia-me como aprisionada pelo
encantamento de estar passeando pela obra de Cervantes, como se tivesse
dentro do livro, caminhando por dentro de suas páginas. Dom Quixote,
Sancho e Dulcineia cantavam para mim.
E o passeio continuava pela
atmosfera amistosa e pacífica da cidade. Desfilavam por nossos olhos
prédios altos e baixos em tijolo; toldos verdes sobre varandas; prédios
de estilo renascentista e barroco. Avistamos uma igreja. Na igreja,
outro repente. Outro des-lum-bra-men-to. A torre, feita de ferro, estava
decorada com outro ninho de cegonha. Emma batia fotos, dizendo: – Que
lindo! Que lindo!
Entramos na Catedral Magistral, belíssima, com seus traços
góticos. Depois dali, em um edifício de estilo árabe, uma galeria de
arcadas, e mais outro ninho. Nas gárgulas, mais cegonhas, tantas
cegonhas, mais ninhos.
Enormes ninhos. As aves ofereciam ao nosso olhar um verdadeiro espetáculo em contra-plongée com seus voos elegantes.
Passear
por Alcalá é um constante encantar-se com a arte, com a arquitetura.
Mas a melhor forma de encontrar-se em Alcalá é perder-se nela, ainda que
dispondo de mapas. Cadê o hotel onde estávamos hospedados? Queríamos
levar lá as meninas. Queríamos ensaiar nossa apresentação,
cronometrarmos o tempo. Sabíamos que um Congresso na Europa é formal.
Mas cadê o hotel?
Desistimos de procurá-lo. Desistimos de
ensaiar. Afinal, todos já haviam estudado suficientemente seus textos,
durante os seis meses de preparo para o congresso! E teríamos ainda todo
o dia seguinte para fazermos a simulação de nossa performance! Um táxi
nos leva, sem erro, até o Rafael Hoteles, onde deixaríamos nossas
pastas. Iríamos encontrar-nos novamente com as meninas na estação de
trens. Passaríamos a tarde em Madrid.
De fato,
encontramo-nos. Porém, uma lembrança triste assaltou-nos, ao chegarmos.
Um dos trens que explodiram nos atentados de 11 de março de 2004 saíra
daquele lugar. Por isso, víamos aquele monumento, homenageando as
vítimas, na frente da estação de trens. Nós, mais Carol e Josi, tiramos
fotos junto às estátuas.
E fomos todos para Madrid. Mal sabíamos que, dali a dois
dias, Maria Helena de Moura Neves – linguista, pesquisadora, autora de
gramáticas de língua portuguesa e do único dicionário português-grego do
mundo – seria a mediadora, na sala onde apresentaríamos nossos
trabalhos e que, honrando a FURG, faríamos muito bonito.
Olé!
Belíssimas e sensiveis anotações de minha querida Maria Cristina! Levou-me às cenas, tal a emoção a cada detallhe. Texto de mestre!
ResponderExcluirOi, querida, obrigado pelo enriquecedor comentário.
ExcluirCris, é sempre um privilégio ler teus textos, acompanhar teus pensamentos e tuas impressões. Escreve mais para nós, querida. Beijos.
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