HOMERO,
EDUCADOR DA GRÉCIA – MITOLOGIA
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
CAMAROTE DO COSTA CONCÓRDIA - 2008 |
O nome
Homero, que em grego antigo era Ὅμηρος,
viveu entre o século IX e o século VIII a. C. Era um antigo aedo (ἀοιδός) grego, isto é, um
cantor popular. Passava pelas cidades a cantar epopeias, acompanhados de instrumento
musical.
Homero
é autor de duas obras épicas importantes, a Ilíada e a Odisseia, além de muitos
poemas, especialmente uma coletânea de hinos religiosos. Hoje, depois de longos
anos de discussão sobre a existência real de Homero e sobre a sua autoria das
obras referidas, na restam dúvidas de que ele de fato foi o poeta brilhante que
fundamentou um dos ramos mais importantes da literatura universal.
Como
o objetivo deste trabalho não é abordar a obra de Homero que é sobejamente
conhecida e já foi exaustivamente analisada, passarei à abordagem a que me
propus, ou seja, divulgar um estudo do professor Junito de Souza Brandão,
infelizmente já falecido, sobre a mitologia e o mais importante poeta grego.
O
Texto abaixo foi escrito pelo Prof. Junito de Souza Brandão.
CAPÍTULO
VII
Homero
e seus poemas:
deuses,
mitos e escatologia
Imagen del Homero de Rendbrant |
1
Numa
apresentação sumaríssima da epopeia homérica, já que o objetivo deste livro não
é a literatura, mas o mito, é conveniente deixar claro um dado fundamental. A
Odisseia, com os dez anos de peregrinação de Odysseús, o nosso Ulisses[1]79,
em seu regresso ao lar, em Ítaca, após a destruição de Tróia, é bem diferente, do ponto de vista
"histórico", da Ilíada. Opinam alguns estudiosos de Homero80[2],
no entanto, que essa diferença, quanto ao fundo histórico de ambos os poemas,
não deve ser excessivamente exagerada. A base histórica da Odisseia seria a
busca do estanho. Realmente o ferro era pouco e o estanho absolutamente
inexistente na Hélade. Possuindo o cobre, mas necessitados e desejosos do bronze,
os helenos dos "tempos heroicos" organizaram a rota do estanho. É bem
verdade que a espada de ferro dos Dórios havia triunfado do punhal de bronze
dos Aqueus, mas, até pelo menos o século VIII a. C, o bronze há de ser o metal
nobre da nobre elite da pátria de Homero. Assim se poderia defender que a
temática do périplo fantástico de Ulisses teria sido o mascaramento da busca do
estanho ao norte da Etrúria, com o descobrimento das rotas marítimas do
Ocidente. Tratar-se-ia, desse modo, de uma genial ficção, embora assentada em
esparsos fundamentos históricos, porque, no fundo, a Odisseia é o conto do nóstos,
do retorno do esposo, da grande nostalgia
de Ulisses. Este seria o ancestral dos velhos marinheiros, que haviam,
heroicamente, explorado o mar desconhecido, cujas fábulas eram moeda corrente
em todos os portos, do Oriente ao Ocidente: monstros, gigantes, ilhas
flutuantes, ervas milagrosas, feiticeiras, ninfas, sereias e Ciclopes....
A Ilíada,
ao revés, descreve um fato histórico, se bem que revestido de um engalanado
maravilhoso poético. Na expressão, talvez um pouco "realista" de
Page, o que o poema focaliza "são os próprios episódios do cerco de Ílion
e ninguém pode lê-lo sem sentir que se trata, fundamentalmente, de um poema
histórico. Os pormenores podem ser fictícios, mas a essência e as personagens,
ao menos as principais, são reais. Os próprios gregos tinham isso como certo.
Não punham em dúvida que houve uma Guerra de Tróia e existiram, na verdade,
pessoas como Príamo e Heitor, Aquiles e Ájax, que, de um modo ou de outro,
fizeram o que Homero lhes atribui. A civilização material e o pano-de-fundo
político-social, se bem que não se assemelhem a coisa alguma conhecida ou
lembrada nos períodos históricos, eram considerados pelos gregos como um painel
real da Grécia da época micênica, aproximadamente 1.200 a. C, quando aconteceu
o cerco de Tróia".81[3]
Um
fato, porém, parece definitivo: uma realidade histórica está subjacente ao mito
na epopeia homérica, se bem que, glorificada e transformada por vários séculos
de tradição puramente oral que precederam à composição definitiva elaborada por
Homero (séculos IX-VIII a. C.) e a fixação por escrito dos dois poemas (século
VI a. C).
A
dificuldade maior no estudo da epopeia homérica está em isolar o que realmente
é micênico do que pertence a épocas posteriores, como à Idade do Ferro, à Idade
Média Grega e ao ambiente histórico em que viveu o próprio poeta. Sem dúvida,
também sob o ângulo político, social e religioso, os poemas homéricos são uma colcha
de retalhos com rótulos de civilizações diferentes no tempo e no espaço. Não
obstante todas estas dificuldades, alguns elementos micênicos podem, com boa
margem de segurança, ser detectados nos dois grandes poemas.
Consoante
Homero, o que parece autêntico, o mundo micênico era um entrelaçamento de
reinos pequenos e grandes, mais ou menos independentes, centralizados em
grandes palácios, como Esparta, Atenas, Pilos, Micenas, Tebas..., mas devendo
fidelidade, ou talvez vassalagem, não se sabe muito bem por quê, ao reino de
Agamêmnon, com sede em Micenas. Além deste aspecto político, há outros a
considerar. Maria Helena da Rocha Pereira alinha alguns elementos aqueus
presentes na epopeia homérica: "Ora, os Poemas Homéricos descrevem,
fundamentalmente, a civilização micênica, embora ignorem a sua forte
burocratização e a abundância de escravatura, reveladas pelas tabuinhas de
Pilos. Mas, entre os principais elementos micênicos, podemos apresentar: as
figuras e seus epítetos; a riqueza de Micenas ('Micenas rica em ouro'); a
raridade do ferro; a noção de que ánax é mais do que basileús82[4];
o fausto dos funerais de Pátroclo (embora seja cremado, como os Gregos da época
histórica, e não inumado, como os Micênicos); a arquitetura dos palácios,
nomeadamente a presença do mégaron; objetos como o elmo de presas de Javali, a
taça de Nestor, e a espada de Heitor, com um aro de ouro". 83
William-Adolphe_Bouguereau (1825-1905) Homer and his Guide (1874) |
2
Mas
se comprovadamente existem elementos micênicos, de fundo e de forma, nos poemas
homéricos, como pôde o bardo máximo da Hélade ter conhecimento, por vezes tão
preciso, de um mundo que ele cantou cerca de quatro ou cinco séculos depois? A
escrita já existia, é verdade, e cinco séculos também antes do poeta, mas
aquela, a Linear B, era usada, como se falou no capítulo IV, sobretudo em
documentos administrativos e comerciais e não em textos de caráter literário.
Parece que os poderosos senhores do mundo aqueu julgavam indigno ou
desnecessário que suas façanhas fossem gravadas em tabuinhas de argila. E
realmente não era necessário, pela própria técnica poética da época. A poesia
épica micênica é oral e tradicional, uma poesia não escrita e transmitida de
geração a geração. Uma poesia áulica, como quer Webster84, cheia de fórmulas de caráter
religioso e militar e cuja sobrevivência se deveu aos aedos e rapsodos.84
O
já citado Page sintetiza, com maestria, como o maior de todos os vates pôde
"compor" seus dois poemas épicos sem documento algum escrito sobre o
passado: "Todos concordam (...) que Homero viveu centenas de anos depois
dos fatos que descreveu e que não teve documentos escritos sobre o passado. O
que devemos perguntar, portanto, não é 'por que ele desconhece tanto sobre a
Grécia micênica?', mas 'como pôde ele ter sabido o que sabia?' A resposta é que
o épico grego é uma poesia de tipo muito peculiar — é oral e tradicional.
Entendo, por oral, que era composta na mente, sem a ajuda da escrita. E, por
tradicional, entendo que era preservada pela memória e transmitida oralmente de
geração a geração. Jamais era estática. Crescia e se modificava continuamente.
A Ilíada é a última fase de um processo de crescimento e desenvolvimento que
começou durante o sítio de Tróia, ou pouco depois. Esse tipo de poesia (que
ocorre na poesia épica de muitas línguas além do grego) só pode ser composto,
só pode ser preservado, se o poeta tiver à sua disposição um estoque de frases
tradicionais — metade de versos, versos inteiros e estrofes, já prontos para
quase todas as finalidades concebíveis. O poeta compõe, enquanto recita; não
pode parar para pensar como continuar; deve ter pronta toda a história, antes
de começar, e deve ter na memória a totalidade — ou quase totalidade — das
frases de que precisará para contá-la. Os poemas homéricos são, na verdade,
compostos dessa forma — não em palavras, mas em sequências de frases feitas. Em
28.000 versos, há 25.000 frases repetidas, grandes ou pequenas".86
A
sólida argumentação de Denys Page pode-se acrescentar ainda, como processo
mnemônico, na transmissão dessa poesia oral, o uso dos epítetos, os famosos
epítetos homéricos. As personagens mais importantes e as divindades maiores
"têm, em média, dez epítetos que se repetem no poema todo centenas de
vezes com alguma variedade".87 São, ao todo, nos dois poemas,
em estatística feita pacientemente pelo saudoso amigo e mestre Marques Leite,
4.560 epítetos.
Os
poemas homéricos resultam, pois, de um longo, mas progressivo desenvolvimento
da poesia oral, em que trabalharam muitas gerações. Usando significantes dos
fins do século IX e meados do século VIII a. C, épocas em que foram, ao que
parece, "compostas", na Ásia Menor Grega, respectivamente a Ilíada e
a Odisseia, o poeta nos transmite significados do século XIII ao século VIII a.
C. O mérito extraordinário de Homero foi saber genialmente reunir esse acervo
imenso em dois insuperáveis poemas que, até hoje, se constituem no arquétipo da
época ocidental.
3
Auguste Leloir - Homère |
Esta
ligeira introdução tem por objetivo mostrar que também a religião homérica é uma
colcha de retalhos, uma sequência de pequenas e grandes rupturas, de pequenos e
grandes sincretismos, em que o Ocidente se fundiu com o Oriente.
As
escavações arqueológicas comprovaram que havia na época aqueia "uma
religião dos mortos", fato já bem salientado no capítulo V, 5. A esse
respeito desejamos somente chamar a atenção para dois fatos. Os vastos túmulos
encontrados particularmente em Micenas com luxuoso mobiliário fúnebre, como o
célebre Tesouro do Atreu, em que o morto, "o rei Agamêmnon", aparece
com o rosto coberto por rica máscara de ouro88, atestam dois pontos
importantes: primeiro, que o rei, chefe da tribo, do clã[5],
do génos, da família enfim, torna-se, após a morte, o que ele foi em vida,
"o senhor", quer dizer, o "herói", o protetor dos que lhe
habitam o território, o reino; segundo, que, sendo o culto dos mortos uma
religião da família e do grupo, havendo, por isso mesmo, necessidade de uma
descendência para continuá-lo e transmiti-lo, esse culto é essencialmente
local, indissoluvelmente ligado ao túmulo. Além da religião dos mortos, existia
a religião dos deuses, em sua maioria, deuses da natureza, cujo arquétipo era o
deus patriarcal indo-europeu do céu e da luz, Zeus.
Com
as invasões dóricas e as migrações para a Ásia Menor, a vida grega se dividiu
entre as duas margens do Egeu. Entre a Europa e a Ásia, não raro com apoio nas
ilhas, começou a se plasmar o embrião de uma nova e promissora cultura.
Apagados os archotes da civilização micênica, os emigrantes acenderam-nos em
outra pira. Distantes das vicissitudes da mãe-pátria, abriram-se a novas
influências.
Esse
distanciamento, esse desenraizar-se, com todas as consequências que sempre lhe
são inerentes, desenvolveram-lhes a independência e a liberdade de pensamento,
bem como os emanciparam de velhas e arraigadas tradições. Livres das opressões
e repressões das antigas crenças, prepararam-se com a mesma liberdade de
espírito para arrostar novos problemas de ordem religiosa. A primeira grande
consequência foi o enfraquecimento generalizado da religião dos mortos. Tratava-se
de um culto, conforme se insistiu, essencialmente local e preso ao túmulo. Ora,
o túmulo dos ancestrais agora estava longe demais, o culto interrompido, porque
desvinculado da sepultura. Os ancestrais, os senhores, os "heróis"
sobreviveram apenas no mito e a tradição religiosa não se renovou em torno dos
novos senhores, mesmo porque, na Ásia Menor, se praticava a cremação: a alma do
morto, separada para sempre do corpo, estava em definitivo excluída de seu
domicílio e da vida de seus descendentes, não havendo, portanto, nada mais a
temer nem a esperar da psiqué do falecido. De outro lado, como já se sabe, as
migrações helênicas para seu novo domicílio não se fizeram em bloco: as tribos
deixaram a mãe-pátria completamente fragmentadas, de acordo com as circunstâncias
ou a oportunidade. Estava, por isso mesmo, rompida a tribo, o clã, o génos, a
família. Pois bem, esses elementos díspares, de origens tribais e até mesmo
"dialetais" diversas, ao se encontrarem em seu novo
"habitat" com povos etnicamente diferentes, com outros hábitos e
outra língua, confraternizaram-se mais facilmente. Eram todos exilados e a
maneira mais prática de refazerem a vida era congregar o que tinham em comum,
deuses e o restante. E a nova repercussão religiosa de mudança de meio fez que
a religião dos deuses prevalecesse inteiramente sobre a religião dos mortos,
determinando assim a formação de um autêntico politeísmo. Outro fator, no
entanto, deu sua contribuição valiosa a todas essas rupturas e agregações: o
recente espírito de independência face à tradição criou um ambiente propício ao
desenvolvimento da arte. E a arte que floresceu, no momento, entre os Gregos da
Ásia Menor foi a Epopeia.
A
arte épica deve ter tido considerável influência sobre a primeira elaboração do
politeísmo e sobre o destino posterior da religião grega. É claro que o
politeísmo já existia, mas embrionariamente, no nome de deuses ou nas formas
míticas elementares vinculadas aos nomes divinos. O politeísmo é uma forma
religiosa estreitamente ligada ao mito. Só existe, com a multiplicidade des
deuses, que o define, porque o mito criou esses deuses. Na realidade, o
politeísmo surge na história unido ao sentimento e à noção do divino na
natureza. Uma de suas grandes fontes é o mistério do mundo exterior em que
estamos mergulhados; a outra, mais profunda, encontra-se num segundo mistério,
que está em nós mesmos. A dar crédito a Sexto Empírco (século II p. C.),
filósofo grego, sistematizador do estoicismo, Aristóteles teria esboçado uma
teoria da religião fundamentada no naturalismo e no humanismo: "A noção
humana da divindade decorre de dois princípios: dos fenômenos que se produzem
na alma e dos fatos meteóricos"89,
isto é, de fenômenos da natureza. O sentimento religioso naturalista se
expressou, portanto, primeiramente pelo mito. Este, por sua vez, se manifestará
na epopeia, que é poesia, arte e liberdade. O florescimento da epopeia na
"diáspora" grega para a Ásia Menor, onde foi sepultada a repressão do
tradicionalismo da mãe-pátria, coincidiu com o momento em que a lenda divina,
libertando-se da esfera do sagrado, se emancipou da ação sacramentai, que a
representava, e do hino divino, que a celebrava. O canto, à medida em que se
despojava dos elementos emotivos, tornava-se objeto de narrativa.90
Houve, assim[6], uma
como que segunda criação dos deuses. Claro está que esses deuses continuaram a
ser na Grécia da Europa e na Grécia da Ásia os deuses dos ancestrais, mas o
sortilégio, que, até então, os ligava estreitamente a seu local de culto,
estava para sempre rompido e a poesia acabou por transfigurar em seus ideais
esses deuses já bastante dessacralizados. Seres ideais, tão vivos e
verdadeiros, que, pela primeira vez, os homens com eles se confraternizaram.
Gigantes que se locomoviam como raios entre o Olimpo e a terra, eram, todavia,
humanos, compensando com sua humanidade o que haviam perdido em sacralidade.
Esse
"humanismo divino" foi a marca da poesia, o sinal mágico de uma obra
através da qual o homem entalha e concebe os deuses à sua imagem e semelhança.
Era
o antropomorfismo. "O mundo
grego com seus deuses é um mundo do homem", sintetiza magistralmente
Kerényi[7].91
Eis aí os deuses de Homero, que é ele próprio o limite de uma evolução secular.
Evolução religiosa, evolução linguística, com os dialetos jônico e eólio
servindo-lhe de embasamento; evolução do verso, que, a princípio, cantado, se
adaptou à recitação; evolução do mito divino e heroico, múltiplo e complexo,
que acabará por se condensar num esquema homogêneo na saga troiana; evolução
dos costumes, com o rito da cremação; evolução, enfim, da vida material, que
assiste à substituição do bronze pelo ferro. Esse feixe de evoluções se
concentra em Homero, assim como sua obra condensa três fases da religião: a que
reinava na Grécia continental, quando os micênicos a deixaram, a que se
desenvolveu na Ásia Menor, em condições bem diversas e, finalmente, aquela que
desabrochou sob a inspiração da epopeia.
Homero
fundiu estes três momentos culturais, mas não existe na Ilíada e na Odisseia
nem evocação escrupulosa do passado, nem descrição exata do presente, mas a
visão de um mundo ideal, composto de um passado micênico da Europa e de um
presente homérico e asiático, amalgamados numa harmonia, que é realidade sem
ser realidade, quer dizer, poesia e nada mais. Com efeito, os dois poemas
homéricos, recheados de elementos religiosos, não são um código de vida, nem um
cânon de fé. Trata-se de um documento religioso incomparável, mas imperfeito,
porque omite; e parcial, mercê da liberdade com que são tratados os deuses:
Zeus, Hera, Apoio, Atená. .. não passam, muitas vezes, de vagas reminiscências
daquilo que realmente foram.92
Além do mais, os deuses que passeiam, lutam e
se divertem nos poemas homéricos não são a totalidade dos deuses da Grécia e a
religião, que deles se ocupa, não é toda a religião, o que está perfeitamente
de acordo com o espírito da epopeia. Trata-se, com efeito, de uma poesia
burguesa, destinada a "reis" e heróis, a homens de alto coturno,
voltados para as armas e para o mar. Não há dúvida de que é para um mundo
aristocrático que o poeta compõe sua obra. Fundindo o passado no presente, o
período da realeza aqueia com a aristocracia de seu século, Homero fazia-se
compreender perfeitamente por seu público, pois que o passado, vivendo na
tradição, era presença constante nos lábios dos aedos e rapsodos. Por outro
lado, o público de Homero era constituído, em síntese, por duas aristocracias:
a aristocracia política e a aristocracia militar, mas ambas, as mais das vezes,
de origem burguesa. Para elas o poeta canta, prazerosamente, as gestas
guerreiras e as astúcias do homem no mar. Para elas celebra os jogos, onde o
vigor se conjuga com a nobreza. O preito da força e da beleza física, símbolos
do herói, contraiu, desde Homero, núpcias indissolúveis com as qualidades do
espírito: o kalón, o belo, e o agathón, o bom, eis aí a síntese de uma visão
humanística que remonta à Ilíada e à Odisseia. Pois bem, o mundo dos deuses é a
projeção dessa sociedade heroica e aristocrática. À autoridade de Agamêmnon e,
não raro, à sua prepotência, correspondem a soberania e o despotismo de Zeus,
assim como às revoltas dos heróis contra as arbitrariedades do
"senhor" e rei de Micenas corre paralelo a manifestação de
independência dos imortais contra a tirania do "senhor" e rei do
Olimpo. De outro lado, se o povo está presente nos poemas homéricos apenas para
servir, aplaudir e concordar nas assembleias, os deuses humildes da vegetação
teriam que esperar cerca de três séculos para que, em Elêusis, se erguessem,
repentinamente, em plena escuridão, milhares de archotes para saudar "a
luz nova" e Dioniso, de tirso em punho, pudesse penetrar triunfalmente na
pólis democrática de Atenas. .. Também a humanidade esperou séculos e séculos
para que o grão de trigo, morrendo no seio da terra, produzisse frutos em
abundância!
De
qualquer forma, alijando o localismo, a aristocrática epopeia, por mais
paradoxal que possa parecer, tendo-se tornado, com a difusão pelos "mundos
gregos", um patrimônio comum, democratizou a religião e os deuses olímpicos
passaram a ser deuses de todos. E se na Grécia continental, bem como em seus
"pedaços" plantados na Ásia, na Europa e na África, jamais existiu
unidade política, houve sempre, "em todas as Grécias", graças à
religião, uma consciência de unidade racial. Ou se era grego ou se era bárbaro.
4
Vamos
nos ocupar agora da religião homérica propriamente dita. Não se falará sobre o
mito de cada um dos deuses, a não ser de passagem, nem tampouco sobre cada um
dos heróis, que formigam e dão vida às epopeias homéricas, porque cada um
deles, ao menos os mais importantes, terá direito a um estudo particular nos
capítulos subsequentes. Para se ter uma ideia do conjunto, far-se-á, de início,
uma síntese dos cantos de que se compõem a Ilíada e a Odisseia. Comecemos pela
Ilíada.
Após
uma breve proposição e invocação, o poema nos coloca in medias res, no centro dos acontecimentos, já
que a Ilíada celebra, como já se mencionou, tão-somente o nono ano da Guerra de
Tróia: a ira de Aquiles e suas consequências funestas.
Canta,
ó deusa, a ira funesta de Aquiles Pelida, ira que tantas desgraças trouxe aos
Aqueus e fez baixar ao Hades muitas almas de destemidos heróis, dando-os a eles
mesmos em repasto aos cães e a todas as aves de rapina: cumpriu-se o desígnio
de Zeus, em razão da contenda, que, desde o início, lançou em discórdia o
Atrida, príncipe dos guerreiros, e o divino Aquiles.(Il., I, 1-7)
I —
Crises, sacerdote de Apoio, avança até as naus dos Aqueus, para resgatar sua
filha Criseida, cativa de Agamêmnon. Todos os chefes desejam que assim se
proceda, mas o Atrida se recusa e insulta o sacerdote. Crises regressa, mas
suplica a Apoio que castigue os Aqueus. O deus envia uma peste, que dizima o
exército. Aquiles pede que se reúna a assembleia, para saber do adivinho Calcas
a causa de tão grande mal. Calcas responde ser necessário devolver Criseida
para apaziguar a cólera de Apoio. Depois de violenta altercação com Aquiles,
Agamêmnon devolve a filha de Crises, mas, em troca, manda buscar Briseida, presa
do filho de Peleu. Aquiles, ferido em sua timé, em sua honra de herói,
retira-se da luta e queixa-se à sua mãe Tétis, que lhe promete pedir a Zeus que
o desagrave. Com a devolução de Criseida, cessa a peste. Zeus, a pedido de
Tétis, consente em que os Troianos saiam vitoriosos, até que se faça condigna
reparação a Aquiles. Logo que a mãe do Pelida se retira, trava-se no Olimpo
séria discussão entre Zeus e Hera, que percebeu o pedido da deusa do mar e a
promessa do esposo. O receoso Hefesto, filho de ambos, com habilidade, consegue
contornar a grave situação. Os imortais, com um sorriso inextinguível,
aproveitam para se divertir com a azáfama de Hefesto, que manquitolava pelos
salões do Olimpo. E o dia terminou com um lauto banquete, ao som da citara de
Apoio e da voz cadenciada das Musas. Com muito néctar e muita ambrosia...
II
— Zeus, em cumprimento de sua promessa a Tétis, envia um ûlos Óneiros, um
"Sonho funesto" e enganador a Agamêmnon para o empenhar na luta.
Óneiros surge sob a forma de Nestor e repreende fingidamente o rei de Micenas,
revelando-lhe que o próprio Zeus deseja ação imediata e os imortais todos
querem a vitória aqueia e a ruína de Tróia. Agamêmnon, enganado pelo Sonho,
reúne então todos os Aqueus e é, neste ponto, que se introduz o Catálogo das
Naus, com os nomes dos "reinos", que as enviaram, dos chefes e o
número de naus que cada herói comanda. Nas 1.183 naus deveriam ter chegado a
Ílion cerca de quarenta a sessenta mil homens, num cálculo feito pelo mestre
Marques Leite.93[8]
III
— Os Troianos descem à planície. Os anciãos, bem como Príamo e Helena,
contemplam do alto das muralhas de Tróia o campo de batalha. Por proposta de
Páris, ele próprio e Menelau decidirão em combate singular o destino de Helena
e dos tesouros. Quando Alexandre está para ser vencido e morto, Afrodite o
salva e transporta-o numa nuvem para os braços de Helena.
IV
— Um aliado dos Troianos, Pândaro, fere Menelau com uma flechada: a luta
recomeça. Ares e Apoio lutam pelos Troianos. Atená pelos Aqueus.
V —
É a primeira grande batalha. Combate encarniçado, em que Diomedes mata a
Pândaro, fere Enéias e Afrodite, que vem retirar o filho do campo de combate.
Grande carnificina, em que o próprio deus Ares é também ferido por Diomedes.
VI
— Heitor, o grande herói Troiano, a conselho de seu irmão, o adivinho Heleno,
dirige-se à cidadela de Ílion e ordena preces públicas a Atená para aplacá-la.
Despedida de Heitor e Andrômaca, uma das páginas mais emocionantes do poema.
VII
— Continua a luta cruenta. Os Gregos são sempre vencidos. Encontro encarniçado
entre Heitor e Ájax, sem vencedor, porque a noite interrompeu o combate. Trégua
para sepultar os mortos.
VIII
— Assembleia dos imortais. Zeus proíbe os deuses de intervirem nos combates.
Segunda grande batalha. Nova derrota dos Aqueus. Hera e Atená tentam
socorrê-los, mas Zeus, percebendo-lhes a intenção, envia sua mensageira Íris
para impedi-las e repreendê-las.
IX
— Agamêmnon reúne os chefes aqueus para lhes propor o levantamento do cerco.
Nestor julga que se procure aplacar a ira de Aquiles. O rei de Micenas concorda
em restituir Briseida e oferece ricos presentes ao herói. Uma embaixada,
formada por Fênix, Ájax e Ulisses, dirige-se à tenda do filho de Tétis e busca
demovê-lo. Este não cede.
X —
É o episódio conhecido como Dolonia. Expedição noturna de Ulisses e Diomedes,
que surpreendem o troiano Dólon. Matam-no depois de terem sabido dele o lugar
exato onde acampava Reso, rei da Trácia, que viera em socorro dos Troianos.
Matam Reso e roubam-lhe os cavalos.
XI
— Terceira grande batalha, em que os Gregos novamente são vencidos, apesar dos
feitos bélicos de Agamêmnon, que é ferido em combate. Nestor pede a Pátroclo
que tente dobrar o ânimo de Aquiles ou que ele mesmo vista as armas do herói
para aterrorizar os Troianos.
XII
— Os Troianos atacam com êxito e chegam até o acampamento dos Aqueus.
XIII
— Em luta sangrenta, Heitor tenta chegar até os navios gregos.
XIV
— É o dolo de Zeus, o Diòs apáte. Hera atrai amorosamente a Zeus para os altos
do monte Ida, onde o pai dos deuses e dos homens em profunda modorra adormece
nos braços quentes da esposa. Disso se aproveita Posídon para socorrer os
Aqueus.
XV
— Zeus desperta. Reverbera a astúcia feminina de Hera e declara que os Troianos
serão os vencedores. Heitor penetra na praia, onde estão os navios gregos, e
está prestes a incendiá-los. Ájax sozinho, heroicamente, consegue detê-lo.
XVI
— É a Patroclia. Os Troianos conseguem afinal incendiar um navio grego.
Aquiles, vendo as chamas que se levantam da nau grega, permite que seu maior
amigo, Pátroclo, se revista de suas armas, mas apenas para afastar os
comandados de Heitor das naus gregas. Feitos gloriosos e heróicos de Pátroclo,
que, no entanto, tendo ultrapassado o métron, o "limite permissível",
é morto por Heitor, que lhe arrebata as armas de Aquiles.
XVII
— Combate sangrento em redor do corpo de Pátroclo. Apesar da vitória dos
Troianos, Menelau consegue trazer-lhe o cadáver até os navios.
XVIII
— A dor ingente de Aquiles. Tétis procura consolá-lo e, em seguida, dirige-se
às forjas de Hefesto, a fim de que este faça para o inconsolável filho de Peleu
uma armadura completa. Descrição do escudo de Aquiles.
XIX
— Após receber todas as satisfações de Agamêmnon e com sua timé recomposta, o
filho de Tétis prepara-se para retornar ao combate.
XX
— Grande batalha, em que, com a anuência de Zeus, os deuses se misturam com os
heróis. Hera, Atená, Posídon e Hefesto pelejam ao lado dos Gregos; Ares, Apoio,
Ártemis, Afrodite e o deus fluvial Xanto lutam pelos Troianos. Aquiles faz
prodígios de coragem, bravura e arrojo.
XXI
— Aquiles, a partir daí, vai de vitória em vitória; limpa a planície de Troada,
empurrando os inimigos até as muralhas de Ílion. O rio Escamandro,
transbordante de guerreiros mortos por Aquiles, inunda a planície e ameaça
submergir o herói e só é dominado pelo sopro ígneo de Hefesto.
XXII
— Heitor aguarda Aquiles sob as muralhas de Tróia, mau grado as súplicas de
Príamo. A vista do herói aqueu, Heitor foge. O Pelida o persegue três vezes em
torno das muralhas de Tróia. Zeus pesa os destinos dos dois heróis: o troiano
tem de morrer. Heitor é morto por Aquiles, que lhe arrasta o cadáver, coberto
de pó e de sangue, até os navios. A dor e o horror se apoderam do velho Príamo,
de Hécuba e de Andrômaca.
XXIII
— Vingado Pátroclo, o herói aqueu presta-lhe as últimas homenagens. Levanta-se
uma gigantesca pira e as chamas devoram o cadáver de Pátroclo juntamente com mais
doze jovens troianos, que Aquiles aprisionara e reservara para esta homenagem
ao maior dos amigos. Jogos fúnebres em honra de Pátroclo.
XXIV
— Aquiles arrasta três vezes o cadáver de Heitor à volta do túmulo de Pátroclo.
Príamo vem pedir o corpo de Heitor. O herói aqueu se enternece com as palavras
do velho rei de Tróia e devolve-lhe o cadáver do filho. Tréguas de doze dias.
Funerais de Heitor, domador de cavalos. . .
A Odisseia nos leva a outras paragens. . .
Após
dez anos da longa e sangrenta Guerra de Tróia, Ulisses, saudoso de Ítaca, de
seu filho Telêmaco e de Penélope, sua esposa fidelíssima, suspira pelo regresso
à pátria.
A Odisseia, Odýsseia, é, pois, o poema do
regresso de Odysseús, o nosso Ulisses, e de seus sofrimentos em terra e no mar.
Embora
as personagens centrais estejam ligadas ao ciclo troiano, a temática do poema é
bem outra. A Odisseia é o canto do nóstos, do regresso do esposo ao lar e da
nostalgia da paz.
"Embora
a ação seja mais concentrada, temos dois fios condutores em vez de um: as
aventuras de Telêmaco e as de Ulisses, que só se reconhecem no canto XVI.
Também há duas cóleras divinas a perseguir Ulisses".94[9]
Trata-se da ira de Posídon contra o herói, por lhe ter este cegado o filho, o Ciclope
Polifemo, e a do deus Hélio, por lhe terem os companheiros de Ulisses devorado
as vacas. A proposição do poema menciona a segunda e omite a primeira, se bem
que esta apareça antes daquela na sequência da narração.
Como
a Ilíada, a Odisseia nos coloca in medias
res: quando se inicia a narrativa, o esposo de Penélope, havia
sete anos, era prisioneiro, na ilha de Ogígia, da paixão da Ninfa Calipso.
Logo
após a proposição, o poema nos leva até o Olimpo e de lá à ilha de Ítaca. Musa,
fala-me do varão astuto, que, após haver destruído a cidadela sagrada de Tróia,
viu as cidades de muitos povos e conheceu-lhes o espírito. No mar sofreu, em
seu coração, aflições sem conta, no intento de salvar sua vida e conseguir o
retorno dos companheiros. Mas, embora o desejasse, não os salvou: pereceram, os
insensatos, por seu próprio desatino, eles que devoraram as vacas de Hélio
Hiperíon, pelo que este não os deixou ver o dia do regresso. Conta-me, deusa,
filha de Zeus, uma parte desses acontecimentos.
(Od. I, 1-10)
I —
Os deuses reunidos em assembleia no Olimpo, na ausência de Posídon, decidem que
Ulisses regresse a Ítaca. Atená, disfarçada em Mentes, vai animar o jovem filho
de Ulisses, Telêmaco, em sua luta contra os pretendentes à mão de Penélope e
aconselha-o a partir em busca de notícias do pai.
II
— O jovem príncipe convoca uma assembleia e solicita um navio para levá-lo a
Pilos, corte de Nestor, e a Esparta, sede do reino de Menelau, a fim de buscar
informações sobre o paradeiro de Ulisses. Disfarçada em Mentor, Atená promete
ajudá-lo.
III
— Telêmaco chega a Pilos, mas nada consegue saber a respeito do pai. Nestor
conta-lhe o fim trágico de Agamêmnon e aconselha-o a ir até Esparta, para o que
lhe dá por companhia seu filho Pisístrato.
IV
— Telêmaco e Pisístrato são recebidos por Menelau, que lhes fala do fim de
Tróia e de seu tumultuado retorno a Esparta. Os pretendentes, em Ítaca,
preparam uma emboscada contra Telêmaco.
V —
Nova assembleia dos deuses, em que se estabelece a volta imediata de Ulisses a
Ítaca. A pedido de Atená, Zeus envia Hermes à ilha de Ogígia com ordem a
Calipso para deixar partir o herói. Este constrói uma jangada e faz-se ao
mar.
Posídon, que está vigilante, levanta uma tempestade e a jangada se despedaça. O
herói consegue salvar-se e se recolhe nu à ilha dos Feaces, onde adormece.
VI
— Atená aparece em sonho a Nausícaa, filha do rei dos Feaces, Alcínoo, para
convencê-la a ir lavar suas roupas no rio. Depois de lavá-las, começa a jogar
com suas companheiras. Ulisses, despertado pela algazarra, pede a Nausícaa que
o ajude. Esta manda-lhe roupa e alimento e convida-o a ir até o palácio de seu
pai, o rei Alcínoo.
VII
— Ulisses apresenta-se como suplicante à rainha Arete, esposa de Alcínoo. Narra
brevemente o que lhe aconteceu após sua partida da ilha de Calipso, mas não se
dá a conhecer. Alcínoo concede-lhe a hospitalidade e promete mandar levá-lo a
Ítaca.
VIII
— Assembleia convocada para deliberar sobre os meios de reconduzir Ulisses à
pátria. Grande banquete em honra do herói. Ao ouvir o aedo Demódoco cantar o
seu passado glorioso, comove-se, o que leva Alcínoo a suspeitar de sua
identidade. Jogos em sua honra: sai vencedor no lançamento do disco. Demódoco
canta os amores de Ares e Afrodite e, depois, por solicitação de Ulisses, o
estratagema do cavalo de Tróia. O herói se emociona. Alcínoo pede-lhe que conte
suas aventuras.
IX
— "Eu sou Ulisses". É assim que se inicia o flashback do poema. Narra
sua passagem pelo país dos Cícones, dos Lotófagos e dos Ciclopes. O Ciclope
Polifemo devora seis de seus companheiros. Ulisses o embebeda e,
aproveitando-se de seu sono, vaza-lhe o único olho. Em seguida escapa com seus
nautas por baixo das gordas ovelhas do monstro, que pede a seu pai Posídon que
o vingue. Daí a perseguição implacável do deus do mar contra o herói.
X —
Continua a narrativa: na ilha de Éolo, de onde, por culpa de seus comandados,
acaba sendo expulso como amaldiçoado dos deuses; no país dos Lestrigões,
antropófagos, onde perde grande número de companheiros; na ilha de Eéia, a ilha
da feiticeira Circe, que lhe transforma vinte e dois companheiros em porcos.
Ulisses escapa aos sortilégios da "deusa" e obriga-a a restituir a
forma humana a seus homens.
XI
— A conselho de Circe, Ulisses vai ao país dos Cimérios, às bordas do Hades,
para consultar a alma do adivinho cego Tirésias acerca de seu regresso a Ítaca.
Ulisses não desceu à outra vida. Abriu um fosso e fez em torno do mesmo três
libações a todos os mortos com mel, vinho e água, espalhando por cima farinha de
cevada. Após evocar as almas dos mortos, degolou em cima do fosso duas vítimas
pretas: um carneiro e uma ovelha, dádivas de Circe. "O negro sangue correu
e logo as almas dos mortos, subindo do Hades, se ajuntaram". Pôde assim
Ulisses conversar com sua mãe, Anticléia, com Tirésias, Aquiles e com vários
outros heróis e heroínas.
XII
— Ulisses retorna à ilha de Circe e, advertido por ela dos perigos que o
ameaçam em seu trajeto, parte para novas aventuras. Vencida a
"tentação" das Sereias, passa por Cila e Caribdes e atinge a ilha do
deus Hélio Hiperíon. Contra a proibição do herói e quebrando seus próprios
juramentos, os companheiros de Ulisses devoram as vacas do deus Hélio. A pedido
deste, as naus gregas são fulminadas pelos raios de Zeus. Somente Ulisses
escapa e chega sozinho à ilha da Ninfa Calipso.
XIII
— Os marinheiros feaces deixam Ulisses adormecido em Ítaca. O navio que o levou
é, ao retornar, petrificado por castigo de Posídon. Atená disfarça o herói em
mendigo.
XIV
— Chega à cabana de seu fiel e humilde servidor, o porcariço Eumeu, que não o
reconhece. É informado de como andam as coisas em Ítaca.
XV
— Retorno de Telêmaco. Atená lhe aparece em sonhos e indica-lhe o caminho a
seguir para evitar a emboscada dos pretendentes.
XVI
— Chegada de Telêmaco à cabana de Eumeu. Enquanto este vai prevenir Penélope do
regresso do filho, Ulisses e Telêmaco se reconhecem e preparam o extermínio dos
pretendentes.
XVII
— Ulisses visita o palácio de "Ulisses". No pátio, reconhece-o seu
velho cão Argos e morre. Ulisses mendiga e é insultado pelo pretendente
Antínoo.
XVIII
— Ulisses é obrigado a lutar com o mendigo Iro, para divertimento dos
pretendentes. Arrasta-o para fora do palácio, mas sofre, em seguida, novos
ultrajes.
XIX
— Ulisses, sempre desconhecido, conta a Penélope uma história que garante que o
rei de Ítaca está prestes a retornar. Euricléia, a velha ama do herói, ao
lavar-lhe os pés, reconhece-o por uma cicatriz na perna. Penélope, que tudo
ignora, narra o ardil do véu sutil e imenso, mas anuncia seu plano para
escolher um dos pretendentes.
XX
— Banquete dos pretendentes. Instam com Penélope. Ulisses é insultado e
maltratado. XXI — Penélope traz o arco de Ulisses e promete desposar aquele que
conseguir armá-lo e fazer passar a flecha pelos orifícios de doze machados em
fila. Todos tentam, mas em vão. Graças à intervenção de Penélope e de Telêmaco,
Ulisses consegue experimentar sua habilidade. Arma o arco sem dificuldade
alguma e executa a tarefa imposta pela esposa. Terror dos pretendentes.
XXII
— Ulisses depõe seus andrajos e se dá a conhecer. Com auxílio de Telêmaco, do
porcariço Eumeu e do boieiro Filécio, os dois serviçais que lhe tinham ficado
fiéis, massacra todos os pretendentes e maus servidores. Apenas são poupados o
aedo e o arauto.
XXIII
— Penélope, após longa hesitação, reconhece finalmente Ulisses, quando este
provou conhecer o segredo da construção do leito conjugal.
XXIV
— Ulisses e seu pai Laerte se reencontram. As almas dos pretendentes são
arrastadas por Hermes para o Hades. Revolta das famílias dos pretendentes.
Laerte, Ulisses e Telêmaco lutam contra os parentes dos mortos. Atená, no
entanto, intervém e restabelece a paz entre os dois partidos.
5
Dada
esta visão de conjunto, não é muito difícil caracterizar a cada um dos deuses antropomorfizados
que agem nos poemas homéricos: deuses que amam, odeiam, protegem, perseguem,
discutem, lutam, ferem e são feridos, aconselham, traem e mentem. . . Já se
disse, com certa ironia, que em Homero há três classes de homens: povo, heróis
e deuses. O que estaria bem próximo da verdade, se os deuses não fossem
imortais.
É
bom repetir que se os olhos do poeta estão voltados tão-somente para os grandes
príncipes e heróis, é à imagem deles que o poeta concebe o mundo dos deuses.
Claro está que a religião dos poemas homéricos não é original do cantor de
Aquiles. As afirmativas do poeta e filósofo Xenófanes (século VI a. C.) e do
historiador Heródoto (484-408 a. C.) de que os deuses são uma invenção de
Homero e Hesíodo carecem inteiramente de fundamento. A religião homérica
resulta de um vasto sincretismo e de influências várias, no tempo e no espaço.
De
outro lado, se as histórias que o poeta atribui a esses deuses são antigas ou
representam um compromisso entre o passado e o presente é um assunto, por
enquanto, difícil de ser resolvido. Talvez "o compromisso" fosse mais
lógico.
Seja
como for, os deuses homéricos antropomorfizados, se bem que por vezes se
nivelem até por baixo com os seres humanos, constituem um grande progresso para
os séculos IX e VIII a. C. Tomando-se por base as epopeias homéricas, o que de
saída se pode assegurar é que o poeta criou o "Estado dos deuses"
subordinado à soberania de um deus maior, Zeus, já possuindo tanto aqueles
quanto este algumas funções mais ou menos definidas. Zeus é o rei, os demais
deuses são seus vassalos, eventualmente convocados para uma assembleia que se reúne
numa utópica fortaleza real, o Olimpo. Os seus subordinados não raro são
recalcitrantes, obstinados e procuram fazer prevalecer seus interesses
pessoais, mas o pai dos deuses e dos homens os reduz à obediência com frases
duras e ameaças terríveis, que, na realidade, quase nunca se cumprem.
"A
concepção de um Estado divino sob o governo de Zeus foi tão profundamente
gravada pela autoridade de Homero, que pôde atravessar incólume a transformação
política que em época antiga eliminou a realeza, substituindo-a pela
aristocracia ou pela democracia: na terra vigorava a república, no céu, a
monarquia".95[10]
A primeira grande característica dessas divindades "reais" é
"serem luminosas e antropomórficas". Em vez de potências ctônias,
assustadoras e terríveis, os deuses homéricos se apresentam inundados de luz
(estamos numa religião tipicamente patriarcal), os quais agem e se comportam
como seres humanos, superlativados nas qualidades e nos defeitos.
O
teratomorfismo (concepção de um deus com forma animal) que, por vezes, aparece
em Homero, certamente reminiscência de um antigo totem ou "influência
oriental", parece residir apenas em alguns epítetos, sem que esse zoomorfismo
tenha outras consequências práticas. Atená é denominada glaukôpis, de
"olhos de coruja", que normalmente se traduz por "olhos
garços" e é ainda a mesma deusa que aparece sob forma de pássaro, ave do
mar, andorinha, águia marinha, e abutre; a deusa Hera é chamada boôpis, de
"olhos de vaca", que se pode interpretar como "olhos
grandes"; Apoio Esminteu é o "destruidor de ratos" e o mesmo
deus se metamorfoseia em "abutre".
Mas
nem todos os deuses homéricos revestiram-se das formas humanas: há os que
permaneceram como forças da natureza. Na Ilíada, o deus-rio Escamandro ou Xanto
participa da grande batalha do canto XX e, irritado com os inúmeros cadáveres
lançados por Aquiles em suas correntes, o deus-rio transborda e ameaça no canto
XXI submergir o herói. Foi necessário o sopro ígneo de Hefesto (luta da água
contra o fogo) para fazê-lo voltar a seu leito. Para que a pira, que deveria
consumir o corpo de Pátroclo, se inflamasse, foi preciso que Aquiles, no canto
XXIII do mesmo poema, prometesse aos deuses-ventos Bóreas e Zéfiro ricas
oferendas. . . Outros exemplos poderiam ser aduzidos, mas bastam estes para
mostrar que nem todos os deuses homéricos se cobriram com a grandeza e com as
misérias humanas.
Em
geral, as divindades homéricas "distinguem-se por uma superlativação das
qualidades humanas": são majestosos, brilhantes, muito altos e fortes.
Possuem areté (excelência) e timé (honra), sem temor de ir além dos limites,
como os heróis que não podem ultrapassar o métron, a "medida" de cada
um. Tendo princípio, mas não tendo fim, são imortais, mas não eternos. Ao que
parece, a noção de eternidade só aparecerá bem depois na Grécia com Platão e
Aristóteles. Digamos que os deuses gregos tenham eveternidade.
A
todo instante estão imiscuídos, sobretudo na Ilíada, com os heróis: combatem,
protegem, aconselham, mas suas teofanias, suas manifestações divinas, se fazem
sob forma hierofânica, sob disfarce, e não epifânica, isto é, como realmente
são. No canto XX, 131, diz taxativamente a deusa Hera, temendo que Aquiles, ao
ver Apoio, se assuste: É difícil suportar a vista de deuses que se manifestam
em plena luz.
Na
Odisseia, embora os deuses sejam os mesmos, com as excelências e torpezas
inerentes à sua concepção antropomórfica, tem-se a nítida impressão de que eles
subiram alguns degraus em sua escala divina. Mantêm-se, com efeito, mais
afastados dos homens e atuam mais à distância, sobretudo por meio de sonhos não
enganadores, não mentirosos, como o "Sonho funesto" de Agamêmnon,
enviado por Zeus no canto II da Ilíada, mas como aquele em que Atená manifesta
realmente seu desejo a Nausícaa, no canto VI da Odisseia.
Mais
ainda: a forma hierofânica na Odisseia está bem mais acentuada: Atená, sob a
forma de Mentes no canto I ou de Mentor nos cantos II, III e em vários outros
da Odisseia, torna-se realmente, no decorrer de todo o poema, a deusa tutelar,
a bússola de Ulisses e Telêmaco. As assembleias dos deuses tornaram-se mais
serenas e ordeiras. Talvez os deuses da Odisseia tenham envelhecido com o
poeta: são mais calmos e tranquilos. O grande ódio de Posídon e a ira de Hélio
Hiperíon parecem terminar, com certa surpresa para o leitor, no canto XIII, tão
logo o herói toca o solo pátrio.
A
novidade maior da Odisseia, todavia, está no embrião da ideia de culpa e
castigo, em que a hýbris, a violência, a insolência, a ultrapassagem do métron,
que será a mola mestra da Tragédia, começa a despontar.
Na
proposição do poema I, 6-9, se diz logo que "os insensatos companheiros de
Ulisses pereceram por seu próprio desatino, porque devoraram as vacas do deus
Hélio: este, por isso mesmo, não os deixou ver o dia do regresso".
Mais
claro ainda é uma fala de Zeus, embora muito discutida, no canto I da Ilíada,
26-43, em que o pai dos deuses e o pai dos homens afirma que "os mortais
culpam os deuses dos males que lhes sucedem, quando somente eles, os homens,
por loucura própria e contra a vontade do destino, são os seus autores".
Eis aí a ponta do véu da díke, da justiça, que se levanta.
Feitas
estas ligeiras observações acerca dos deuses homéricos, tomados em bloco, vamos
observar agora cada um deles separadamente, mas sem perder de vista o conjunto
de que cada um faz parte.
Zeus,
sempre se começa por ele, é o deus indo-europeu, olímpico, patriarcal por
excelência. Age ou deveria agir como árbitro, sobretudo na Ilíada, mas sua
atuação é um pêndulo: oscila entre o estatuído pela Moîra, com a qual, por
vezes, parece confundir-se, e suas preferências pessoais. Os Aqueus destruirão
Tróia, ele o sabe, mas retarda quanto pode a ruína da cidadela de Príamo,
porque prometera a Tétis "a vitória" dos Troianos, até que se dessem
cabais satisfações à timé ofendida de Aquiles. Para cumprir seu desígnio é
capaz de tudo: da mentira às ameaças mais contundentes. Na prova de força que
dá no canto VIII, 11-27, quando proíbe os deuses de ajudarem no combate a
Gregos e Troianos, ameaça lançar os recalcitrantes nas trevas eternas do
Tártaro e afirma categoricamente que seu poder e força não maiores que a soma
da força e do poder de todos os imortais reunidos! E desafia-os para uma
competição. . . Todos se calam, porque perderam a voz, tal a violência do discurso
de Zeus. Somente Atená, a filha do coração, após concordar com o poderio
paterno e prestar-lhe total submissão (excelente psicóloga!), ousa pedir que os
Aqueus ao menos não pereçam em massa. E Zeus sorriu e disse-lhe que fosse em
paz, sem temor: com "a filha querida" ele desejava ser indulgente!
A
personalidade de Zeus parece desenvolver-se em dois planos: como
"preposto" da Moîra, na Ilíada, age como déspota; como chefe
incontestável da família olímpica, busca quanto possível a conciliação.
Hera
é a esposa rabugenta de Zeus. A deusa que nunca sorriu! Penetrando nos
desígnios do marido, vive a fazer-lhe exigências e irrita-se profundamente
quando não atendida com presteza. Para ela os fins sempre justificam os meios.
Para atingi-los usa de todos os estratagemas a seu alcance: alia-se a outros
deuses, bajula, ameaça, mente. Chegou mesmo a arquitetar uma comédia de amor,
para poder fugir à severa proibição do esposo e ajudar os helenos.
Atraiu
femininamente Zeus para os píncaros tranquilos do monte Ida e lá, num ato de
amor mais violento e quente que as batalhas que se travavam nas planícies de
Tróia, prostrou o poderoso pai dos deuses e dos homens num sono profundo! É
verdade que não raro Zeus manifesta por ela um profundo desprezo e surgem então
as ameaças e afirmativas de domínio masculino, o que mais acentua a fraqueza e
a insegurança do grande deus olímpico, porque tais ameaças nunca se cumprem.
Conhecedor profundo do rancor, da irritabilidade e da insolência da esposa,
Zeus procura evitar, quanto possível, as cenas de insubordinação e a linguagem
crua e desabrida da filha de Crono. Esquiva-se ou busca harmonizar as coisas,
dando a falsa impressão de que o destino dos mortais depende mais do humor de
Hera do que da onipotência do esposo. Em relação aos demais deuses e aos
heróis, a deusa não tem meios-termos: ama ou odeia e na consecução destes dois
sentimentos vai até o fim. Tem-se visto no comportamento de Hera, a deusa dos
amores legítimos, sobretudo na influência exercida sobre Zeus, o reflexo da poderosa
deusa da fecundidade (e ela realmente o foi em Creta), a cujo lado o esposo
divino desempenharia um papel muito secundário: apenas o de deus masculino
fecundador. A cena de amor no monte Ida simbolizaria tão-somente uma
hierogamia, isto é, uma união, um casamento sagrado, visando à fertilidade.
Atená é o outro lado de Hera no coração de
Zeus. Nascida sem mãe, das meninges do deus, é, já se mostrou, a filha querida,
cujos desejos e rogos, mais cedo ou mais tarde, são sempre atendidos e cujas
rebeldias sempre entristecem, "pois estas lhe são tanto mais penosas
quanto mais querida é a filha". O canto VIII da Ilíada está aí para
mostrar quanto Atená, a deusa da inteligência, é a preferida e a mimada pelo
senhor do Olimpo.
Ares,
ferido no canto V, 856-861, pela lança de Diomedes, guiada por Atená, sobe
ensanguentado ao Olimpo e vitupera duramente a proteção de Zeus à filha de
olhos garços:
Todos nós estamos revoltados contra ti.
Geraste uma louca execrável, que só medita atrocidades. Todos os demais deuses
que habitam o Olimpo te ouvem e cada um de nós te é submisso. A ela, todavia,
jamais diriges uma palavra, um gesto de censura. Tu lhe soltas as rédeas,
porque sozinho deste à luz esta filha
destruidora. (Il. V, 875-880)
Apolo
homérico é uma personagem divina em evolução. Ainda se está longe do deus da
luz, do equilíbrio, do gnôthi s'autón, do conhece-te a ti mesmo, daquele que
Platão denominou pátrios eksegetês, quer dizer, o exegeta nacional. O Apolo da
Ilíada é um deus mais caseiro, um deus de santuário, uma divindade provinciana.
Preso à sua cidade, comporta-se como um deus tipicamente asiático: é o deus de
Tróia e lá permanece. Raramente lhe ultrapassa os limites e é, por isso mesmo,
pouco frequentador do Olimpo.
A
seus fiéis protege-os até o fim e, por isso mesmo, protesta com veemência na
assembleia dos deuses contra os ultrajes de Aquiles ao cadáver de Heitor, seu
favorito:
Sois cruéis e malfeitores, deuses.
Porventura,
Heitor não queimou nunca em vossa honra
gordas coxas
de boi ou cabras sem mancha?
Agora, que nada mais é que um cadáver, não
tendes
coragem de protegê-lo, a fim de que possam
ainda vê-lo sua
mãe, seu filho, seu pai Príamo e seu povo.
Eles já o teriam
há muito tempo incinerado e há muito lhe
teriam
prestado as honras fúnebres! (Il. XXIV, 33-38)
Posídon
é um deus amadurecido pelas lutas que travou, e sempre as perdeu, com seus
irmãos imortais e com o próprio Zeus. O deus do mar, na Ilíada, tem como
característica fundamental a prudência. Sempre que discorda, comunica-se
primeiro com o irmão todo-poderoso e acata-lhe de imediato a decisão. Quando
Hera planejou uma conjuração contra o esposo e convidou o deus do mar, este se
irrita e responde-lhe que "Zeus é cem vezes mais forte do que todos os
imortais". Mas, numa ausência prolongada do Olímpico, Posídon aproxima-se,
observa e, vendo-se em segurança, admoesta e encoraja os Aqueus. Por fim,
quando Hera adormece no Ida ao esposo, o deus entra diretamente na luta e se
empenha tanto nos combates, que não percebe o despertar de Zeus. Foi necessário
o envio de Íris para admoestá-lo. Posídon obedece incontinenti e o Olímpico se
felicita pela submissão do deus do tridente. Apesar de prudente e submisso a
Zeus, é incrivelmente rancoroso cm os mortais. Perseguiu Ulisses de modo
implacável até a ilha de Ogígia, e se de lá o herói pôde partir, por decisão
dos deuses, reunidos em assembleia, foi porque Posídon estava ausente, na
Etiópia e daquela não participou. Curioso é que até a ilha dos Feaces Atená
pouco fez para ajudar seu protegido, contentando-se em agir indiretamente junto
a Zeus. A partir da corte de Alcínoo é que a "filha predileta"
intervém diretamente e assegura a salvação de Ulisses. Há, segundo se crê, uma
divisão de zonas de influência de cada um dos deuses: um não interfere nos
domínios do outro. A própria Atená, respondendo à reclamação de Ulisses de que
fora por ela abandonado no vasto mar, afirma que não interveio antes para não
entrar em litígio com o tio (Od. XIII, 341-343).
Tétis é uma poderosa deusa marinha. Sua
residência é uma gruta submarina, mas com todas as prerrogativas devidas a uma
imortal tão importante. Seu poder é tão grande junto a Zeus, que, para vingar a
timé de Aquiles, os Aqueus serão derrotados até o canto XVII da Ilíada! Mãe
acima de tudo, procurou evitar por todos os meios que o filho participasse da
Guerra de Tróia, porque lhe conhecia o destino. Com a morte de Pátroclo, após
tentar maternalmente consolar o inconsolável Aquiles, dirige-se à forja divina
de Hefesto e de sua esposa Cáris. Com que dignidade e humildade, aos pés do
deus, segurando-lhe os joelhos, pede, a quem tanto lhe deve, que fabrique novas
armas para o Pelida (Il XVIII, 429-461). Talvez Tétis seja a mais humana das
figuras divinas de Homero.
Hefesto é o deus coxo. Por tentar
socorrer sua mãe Hera, que brigava com Zeus, foi por este lançado do Olimpo no
espaço vazio. O deus caiu na ilha de Lemnos e ficou aleijado. Foi Tétis quem o
recolheu e levou para sua gruta submarina. Hefesto sofre as limitações de seu
próprio físico e serve comumente de alvo de chacota para seus irmãos imortais.
Já o vimos, em meio às gargalhadas de seus pares, claudicando atarefado pelos
salões do Olimpo. Infeliz no casamento com Afrodite, que o traía com Ares,
soube vingar-se dos adúlteros, estendendo uma rede invisível em torno de seu
próprio leito e apanhando de surpresa o casal.
Os
deuses, convidados a contemplar a cena, comemoram a artimanha do marido traído
com seu eterno sorriso inextinguível. Sumamente elucidativa, porém, é a
explicação dada por Hefesto para a infidelidade de Afrodite:
Pai Zeus e todos os demais bem-aventurados
deuses sempiternos! Vinde contemplar uma cena ridícula e intolerável. Afrodite,
filha de Zeus, por ser eu coxo, me desonra continuamente e prefere o pernicioso
Ares, que é belo e tem membros sãos. Eu, porém, sou aleijado. A culpa, todavia,
não é minha, mas de meus pais, que nunca me deveriam ter gerado (Od.
VIII, 306-312)
Aí
está o grande problema pessoal de Hefesto, que procura compensar sua
deficiência física e infelicidade conjugal com excessiva serventia. É o mais
prestativo e humilde dos Olímpicos, ao menos em Homero.
Ares é o menos estimado dos deuses:
pelos homens e pelos imortais. De deus da guerra, o amante de Afrodite torna-se
nos poemas homéricos uma personagem de comédia. Falta-lhe ainda muito para ser
o flagelo dos homens.
Se
na Odisseia fez o papel ridículo de sedutor punido, na Ilíada, após ser ferido
por Diomedes, corre ao Olimpo, segundo se mostrou, para queixar-se a Zeus, de
quem recebe ironias e insultos.
Não me venhas, ó pateta, gemer a meus pés!
És o mais odioso de todos os imortais que
habitam o Olimpo.
Teu único prazer são a rixa, a guerra, os
combates.
Herdaste a violência intolerável e a
insensibilidade de tua mãe, Desta Hera que, a custo, consigo dominar com
palavras. (Il. V, 889-893)
Até
mesmo Atená o derruba e zomba do deus da guerra!
Afrodite
é o amor. Apenas amor. Seu protegido é Paris. Para ele quer Helena sempre
pronta e de braços abertos para recebê-lo, mesmo quando o poltrão, que não
resistiu ao primeiro ataque de Menelau, no combate singular do canto III da
Ilíada, é envolto numa nuvem e transportado para "o quarto perfumado"
de Helena. . . A esposa de Menelau mostra muito mais dignidade que a deusa e
seu protegido. Convidada por Afrodite a dirigir-se ao "quarto
perfumado" onde o "herói" repousa e a espera, Helena a princípio
se recusa e aconselha a deusa do amor a ir deitar-se com ele. . . Só mediante
ameaças, sobretudo a de deixá-la entregue à própria sorte e à morte certa, é
que a rainha de Esparta, embora com repugnância, foi para junto do amante, a
quem não poupou injúrias e escárnios (Il. III, 383-436). V Helena, o eterno feminino.
Ingloriamente
ferida no canto V por Diomedes, que a denomina "uma deusa sem
forças", sai dando gritos e deixa seu filho Enéias, que recebera uma
pedrada do mesmo Diomedes, cair de seus braços.. . Na carruagem de Ares
dirige-se gemendo para o Olimpo, onde Hera e Atená mordazmente inventam para
Zeus uma história deveras hilariante. Atená diz ao pai que Afrodite deve ter
passado a cortejar os Aqueus e, acariciando um deles, rasgou a mão delicada em
algum grampo de ouro. . . Riu-se muito o pai dos deuses e dos homens. Chamou
Afrodite e deu-lhe um conselho salutar:
Não foste feita, minha filha, para os
trabalhos da guerra: consagra-te somente aos doces trabalhos do himeneu..
. (Il. V, 428-429)
Aí
estão sumariamente retratados por Homero os principais deuses da Ilíada e da
Odisseia. Tragédia e comédia se entrelaçam: até nisto Homero é gênio. A ação e
a reação dos deuses homéricos, sua conduta enfim, têm levado alguns a afirmar
que a Ilíada é o mais irreligioso dos poemas. 96[11]
Vai nisto um exagero. É preciso estabelecer em Homero uma dicotomia entre ética
e religião. E na Ilíada ambas estão inteiramente desvinculadas. Dentro dos
padrões da época, o poema de Aquiles é o primeiro grande esboço da religião
helênica. De outro lado, é necessário levar em conta que os poetas, e Homero é
o maior deles, são cantores, são "poetas" e não reformadores
religiosos!
6
O
estudo da escatologia (destino definitivo do indivíduo), que se encontra nos
poemas homéricos, oferece dificuldades mais ou menos sérias. É que o poeta usa
uma terminologia não muito precisa e, não raro, cambiante. Vamos, assim,
primeiro fazer um levantamento dos termos, observando a maior incidência dos
mesmos no seu respectivo campo semântico, depois se procurará estabelecer a
doutrina, explicitando antes, se não o apego, ao menos a dignidade que os
heróis atribuíam a esta vida.
Mas,
tanto os termos quanto a doutrina terão por limite a Homero, pois que, um pouco
mais tarde, ambos sofrerão alterações profundas. De início, vamos nos defrontar
com moîra ou aîsa, a grande condicionadora da vida. A palavra grega moîra
provém do verbo meíresthai, obter ou ter em partilha, obter por sorte,
repartir, donde Moîra é parte, lote, quinhão, aquilo que a cada um coube por
sorte, o destino. Associada a Moîra tem-se, como seu sinônimo, nos poemas
homéricos, a voz árcado-cipriota, um dos dialetos usados pelo poeta, Aîsa.
Note-se logo o gênero feminino de ambos os termos, o que remete à ideia de
fiar, ocupação própria da mulher: o destino simbolicamente é "fiado"
para cada um. De outro lado, Moîra e Aîsa aparecem no singular e só uma vez na
Ilíada, XXIV, 49, a primeira surge no plural. O destino jamais foi personificado
e, em consequência, Moîra e Aîsa não foram antropomorfizadas: pairam soberanas
acima dos deuses e dos homens, sem terem sido elevadas à categoria de
divindades distintas. A Moîra, o destino, em tese, é fixo, imutável, não
podendo ser alterado nem pelos próprios deuses. Há, no entanto, os que fazem
sérias restrições a esta afirmação e caem no extremo oposto: "Aos olhos de
Homero, Moîra confunde-se com a vontade dos deuses, sobretudo de Zeus".97[12]
É bem verdade que em alguns passos dos poemas homéricos parece existir
realmente uma interdependência, uma identificação da Moîra com Zeus, como nesta
fala de Licáon a Aquiles:
E a MOÎRA fatídica, mais uma vez, me colocou
em tuas mãos: parece que sou odiado por ZEUS pai, que novamente me entregou a
ti. (Il. XXI, 82-83)
Zeus e Moîra nestes versos representam,
sem dúvida, para o troiano Licáon o mesmo flagelo que o entregou nas mãos
sanguinárias de Aquiles.
Em
outra passagem Zeus dá a impressão de que, se quisesse, poderia modificar a
Moîra. Ao ver que seu filho Sarpédon corria grande perigo no combate e estava
prestes a ser morto por Pátroclo, o Olímpico pergunta a Hera se não seria mais
prudente retirá-lo da refrega. A deusa responde-lhe indignada em nome da Moîra:
Crônida terrível, que palavras disseste? Um
homem mortal, há muito tempo marcado pela Aîsa e queres livrá-lo da morte
nefasta? Podes fazê-lo, mas nós, os outros deuses todos, não te aprovamos. (Il. XVI, 440-443)
A
inalterabilidade da Moîra, porém, está bem clara nestas palavras de Hera a
respeito do destino de Aquiles:
Todos nós descemos do Olimpo para participar
desta batalha, a fim de que nada aconteça a Aquiles por parte dos Troianos,
hoje, ao menos: mais tarde, todavia, ele deverá sofrer tudo quanto AÎSA fiou
para ele, desde o dia em que sua mãe o deu à luz. (Il. XX, 125-128)
Os
exemplos poderiam multiplicar-se tanto em defesa da identidade de Zeus com a
Moîra quanto, e eles são em número muitíssimo mais elevado, da total
independência de Aîsa face a todos os imortais.
O
que se pode concluir, salvo engano, é que, por vezes, Zeus se transforma em
executor das decisões da Moîra, parecendo confundir-se com a mesma.
Ainda
como fator externo que, por vontade de Zeus, atua sobre o homem e lhe
transtorna o juízo, encontramos em Homero a palavra Áte, que se poderia
traduzir por cegueira da razão, "desvario involuntário", de cujas
consequências o herói depois se arrepende. O texto mais citado e que mereceu um
excelente comentário de R.E. Dodds é a fala de Agamêmnon no canto XIX da
Ilíada, em que o herói procura se desculpar, culpando Áte, das ofensas feitas a
Aquiles na assembleia do canto I, 172sqq:
— É ao filho de Peleu que desejo expressar o
que penso. Examinai-o bem, Argivos, e procurai compreender a minha intenção.
Muitas vezes os Aqueus me falaram a esse respeito e me censuraram. Eu não sou
culpado, mas Zeus, a Moîra e a Erínia que caminha na sombra, quando na assembleia
repentinamente me lançaram no espírito uma ÁTE louca, naquele dia em que eu
próprio arrebatei o presente de honra de Aquiles. (Il. XIX, 83-89)
Este
comentário sobre Moîra, Aîsa e Áte é importante para que se possa avaliar
depois a responsabilidade do homem face à "outra vida".
Em
contraste com os dois conceitos anteriores, mas que concorrem para elucidar
também o porquê da importância atribuída pelo herói a "esta vida",
estão a areté e sua natural dedução, a timé.
Agathós
em grego significa bom, notável, "hábil para qualquer fim superior";
o superlativo de agathós é áristos, o mais notável, o mais valente e o verbo
daí formado é aristeúein, "comportar-se como o primeiro". Pois bem,
areté pertence à mesma família etimológica de áristos e aristeúein e significa,
por conseguinte, a "excelência", a "superioridade", que se
revelam particularmente no campo de batalha e nas assembleias, através da arte
da palavra. A areté, no entanto, é uma outorga de Zeus: é diminuída, quando se
cai na escravatura, ou é severamente castigada, quando o herói comete uma
hýbris, uma violência, um excesso, ultrapassando sua medida, o métron, e
desejando igualar-se aos deuses. Uma coisa é o mundo dos homens, outra, o mundo
dos deuses, são palavras de Apoio ao fogoso Diomedes (Il. V, 440-442).
Consequência
lógica da areté é a timé, a honra que se presta ao valor do herói, e que se
constitui na mais alta compensação do guerreiro. Aquiles se afasta do combate
no canto I exatamente porque Agamêmnon o despojou do público reconhecimento de
sua superioridade, tomando-lhe Briseida. Tétis implora a Zeus que a timé de
Aquiles lhe seja restituída (Il. I, 503-510).
Neste
sentido, como afirma P. Mazon, a Ilíada é "o primeiro ensaio de uma moral
de honra".
Apesar
das palavras terríveis de Zeus acerca do ser humano:
Nada mais desgraçado que o homem entre todos
os seres que respiram e se movem sobre a terra, (Il. XVII, 446-447)
os
gregos homéricos, sabedores de que o além que se lhes propunha eram as trevas e
o nada, fizeram desta vida miserável a sua vida, buscando prolongá-la através
da glória que a seguiria. "O amor à vida torna-se, por isso mesmo, o
princípio e a razão do heroísmo: aprende-se a colocar a vida num plano muito
alto para sacrificá-la à glória, que há de perpetuá-la. Aquiles é a imagem de
uma humanidade condenada à morte e que apressa esta morte para engrandecer sua
vida no presente e perpetuar-lhe a memória no futuro".98[13]
Depois
de discutirmos a noção e a ação da Moîra, de Áte e a dignidade da areté e da
timé, vamos, finalmente, seguir com o herói para a outra vida. Teremos,
novamente, que nos defrontar com uma terminologia assaz complicada. Tomaremos,
por isso, por guia as obras formidáveis de Dodds99 e Snell 100
.A
primeira peculiaridade na conceituação do homem nos poemas homéricos, consoante
Dodds, é a carência de uma concepção unitária da personalidade. Falta a noção
de vontade e, por isso, não existe obviamente livre-arbítrio, uma vez que este
se origina daquela. Não se encontra ainda em Homero a distinção entre psíquico
e somático, mas uma interpenetração de ambos e, assim, "qualquer função
intelectual é considerada um órgão". Daí decorrem certos vocábulos que
"tentam" explicar as ações e reações do ser humano e sobretudo seu
destino após a morte. O primeiro deles é thymós que designa o instinto, o
apetite, o alento e poderia ser definido "grosseira e genericamente",
consoante Dodds, como o "órgão do sentir" (feeling). Goza de uma
independência que a palavra "órgão" não nos pode sugerir, "já
que estamos habituados ao conceito de organismo e unidade orgânica". O
thymós pode levar o herói tanto à prática de façanhas gloriosas quanto a atos
muito simples, como os de comer e beber. O guerreiro pode conversar com seu
thymós, com "seu coração", com "seu ventre": tudo isto é
thymós. Em síntese, para o homem homérico o thymós não é sentido como uma parte
do "self": trata-se de uma espécie de voz interna independente. Já o
vocábulo nóos é mais preciso: designa o espírito, o entendimento. Quando Circe
transformou em porcos os companheiros de Ulisses, eles, não obstante,
conservaram o seu nóos:
Eles verdadeiramente tinham as cabeças, a
voz,
corpo e pêlos de porcos, mas conservavam
como antes
o "espírito" (NÓOS) perfeito. (Od. X, 239-240)
Muito
vizinho do campo semântico de nóos está o termo phrén, mais comumente no
plural, phrénes, que se pode traduzir, ao menos as mais das vezes, por
entendimento. Psykhé, psiqué, que se perpetuou universalmente com o sentido de
alma nas línguas cultas e em tantos compostos, provém do verbo psýkhein,
soprar, respirar, donde psiqué, do ponto de vista etimológico, significa
respiração, sopro vital, vida. Fato curioso é o que observa Dodds: "É
sabido que Homero parece atribuir uma psykhé ao homem somente após sua morte ou
quando está sendo ameaçado de morte, ou ao morrer ou ainda quando desmaia. A
única função da psykhé mencionada em relação ao homem vivo é a de
abandoná-lo". 101
É o caso entre muitos outros de Sarpédon, em
que a psykhé o abandona sob a violência do golpe102 ou como Andrômaca que exala
sua psykhé, que "desmaia", ao ver o cadáver de Heitor.103 Mas, em
ambos os casos, a psique retorna através das vias respiratórias.
Quando
sobrevém a morte, a psiqué então se afasta em definitivo, como na morte de
Pátroclo:
Ele diz: a morte que tudo termina o envolve.
A psiqué deixa-lhe os membros e sai voando
para o Hades,
lamentando seu destino, ao deixar o vigor da
juventude. (Il. XVI, 855-857)
Com
a morte do corpo, a psiqué torna-se um eídolon, uma imagem, um simulacro que
reproduz, "como um corpo astral", um corpo insubstancial, os traços
exatos do falecido em seus derradeiros momentos. Eis aí o eídolon de Pátroclo,
que aparece em sonhos a Aquiles:
E eis que aparece a psiqué do infortunado
Pátroclo,
em tudo semelhante a ele: pela estatura,
pelos belos olhos,
pela voz; o corpo está coberto com a mesma
indumentária. (Il. XXIII, 65-67)
E o
eídolon do herói pede a Aquiles que lhe sepulte o corpo, ou melhor, "as
cinzas", sem o que não poderá sua psique penetrar no Hades:
Sepulta-me o mais rapidamente possível, para
que
eu cruze as portas do Hades. (Il. XXIII, 71)
Mas,
quando as chamas lhe consumirem o cadáver, sua psiqué jamais sairá lá debaixo.
A reencarnação na Grécia viria bem mais tarde:
Jamais sairei do Hades, quando as chamas me
consumirem. (Il. XXIII, 75-76)
Aquiles
tenta abraçá-lo, mas o eídolon do amigo esvai-se como vapor e, com um pequeno
grito, desaparece nas sombras:
Ah! Sem dúvida existe nas mansões do Hades
uma Psykhé, um EÍDOLON, que não tem, contudo, PHRÉN algum. (Il. XXIII, 103-104)
Quer
dizer, no Hades, a psiqué, o eídolon, é uma sombra, uma imagem pálida e
inconsistente, abúlica, destituída de entendimento, sem prêmio nem castigo. É
que com o corpo morreram o thymós e o phrén.
Essa
sombra abúlica e apática pode, no entanto, recuperar por instantes a razão,
mediante aquele complicado ritual que se descreveu na síntese do canto XI da
Odisseia. Neste mesmo canto, o eídolon de Aquiles, tendo recuperado "o
entendimento", pôde dialogar com Ulisses e transmitir-lhe uma opinião
melancólica acerca da outra vida: o grande herói preferia ser agricultor na
terra, que era uma das mais humildes funções, a ser rei no Hades. Aqui está o
diálogo entre Ulisses e Aquiles:
Mas tu, Aquiles, és o mais feliz dos homens
do passado
e do futuro, pois, enquanto vivias, nós, os
Argivos,
te honrávamos como aos deuses, e agora,
estando aqui,
tens pleno poder sobre os mortos;
desse modo não deves te afligir por ter
morrido.
Assim disse e ele prontamente me respondeu:
Ilustre Ulisses, não tentes consolar-me a
respeito da morte!
Eu preferia cultivar os campos a serviço de
outro,
de um homem pobre e de poucos recursos,
a dominar sobre todos os mortos. (Od. XI, 482-491)
É assim
que se nos apresenta a religião homérica. Embora encurralado pela Moîra e
ameaçado constantemente por Áte, o herói, nesta vida, de que ele fez a sua
vida, tem a dignidade de defender, quanto lhe é possível, a sua timé. Carente
de uma concepção unitária de personalidade, com o thymós, o phrén e o nóos
morrendo com o corpo, que lhe sobra para a outra vida? Apenas a psykhé, uma
sombra pálida e inconsciente, um eídolon trôpego e abúlico.
Ignorando
as noções de dever, de consciência, de mérito ou de falta, a outra vida ignora,
ipso facto, prêmio ou punição para o
homem. Aliás, como julgar, punir ou premiar um eídolon)
Quando
se levantar a cortina negra da Idade Média grega que, durante três séculos, nos
ocultou em parte, a face da Hélade, não mais estaremos com Homero na Ásia
Menor, mas com Hesíodo na Grécia Continental.
O
poeta da Beócia será o assunto do próximo capítulo.
Ulixes, fonte do
nosso Ulisses.
80. BONNARD, André. Civilisation Grecque. Lausanne,
Édit. Clairefontaine, s/d, 3 vols. p. 61sqq.
84 Ánax é o "senhor", o príncipe, talvez uma espécie de rei com
poderes religiosos e o basileús seria o rei com poderes políticos.
83 PEREIRA, Maria Helena da
Rocha. Op. cit., p. 48sq.
84 WEBSTER, T.B.L. From Homer to Mycenae. London, Methuen, 1958, cap. IV, passim.
85 Não é fácil distinguir entre
estas duas categorias. Aedo é o grego aoidós e significa cantor. O
aedo cantava ao som da citara,
improvisando, como Demódoco, no canto VIII da Odisséia. Rapsodo, rhapsoidós, de
rháptein, "coser" e oidé, canto, significa um ajustador de cantos.
Talvez rapsodo não fosse poeta: apenas ligava versos uns aos outros e os
recitava, sem cantá-los. O aedo é diferente: é um inspirado dos deuses,
conforme está na Od. VIII, 43-45.
[5] 86.
LLOYD-JONES, Hugh et alii. Op. cit., p. 20-21.
87. LEITE, José Marques. Homero. Rio de Janeiro,
Gráfica Portinho Cavalcanti, 1976, p. 55sq.
[6] 89.
Pròs dogmatikús (Contra os dogmáticos), III, 20.
90.
PETTAZZONI, Raffaele. La religio» dans la Grèce Antique. Tradução de Jean
GOUILLARD.
Paris,
Payot, 1953, p. 45sq.
91.
KERÉNYI, Károly. Miti e
misteri. Torino, Editore Boringhieri, 1980, p. 275.
121.
92.
PETTAZZONI, Raffaele. Op. cit., p. 48sq.
[8] 93.
LEITE, José Marques. Op. cit., p. 37.
[9] 94.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha, Op. cit., p. 64.
[10] 95. NILSSON, Martin, P. Greek
Piety. London, Oxford P., 1948 p. 11.
[11] 96. MAZON, Paul. Introduction à
L'Íiade. Paris, Les Belles Lettres, 1948, p. 294.
[12] 97.
FREIRE, Antônio S. J. Conceito de Moîra na Tragédia Grega. Braga, Livraria
Cruz, 1969, p. 91.
[13] 98. MAZON, Paul. Op. cit., p.
299.
99.
DODDS E R. The Greeks and the Irrational. Los Angeles, University of California
Press, 1963, p. 15sqq.
100.
SNELL, Bruno. The Discovery of the Mind. New York, Harper Torchbooks, 1960, sobretudo
o cap. I, "Homer's View of man", p. 8sqq.
BIBLIOGRAFIA
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis, Vozes, 2002. vol. I, p. 115/146.
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