terça-feira, 14 de outubro de 2014

HOMOAFETIVIDADE FEMININA NA GRÉCIA ANTIGA - SAFO


Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
"Há quem afirme
serem nove as musas.
Que erro! Pois não veem 
que Safo de Lesbos 
é a décima?” — Platão

A divina Safo (Σαπφώ, Sappho) – a maior poeta do amor feminino.
A cultura ocidental funda suas raízes na civilização da antiga Grécia e na antiga Roma. A atividade literária do mundo grego e do mundo latino caracterizaram-se pela busca de estruturas gerais de ordem e equilíbrio típicos da cultura clássica. De modo particular, na Grécia dos séculos IX e VI a. C., nasceram entre outros, dois gêneros literários muito importantes: o épico e o lírico.

El rostro de la poetisa Safo,
por Simeon Salomon, 1862.
No gênero épico, cujo fundador foi Homero, mítico autor da Ilíada e da Odisseia, foram cantados os feitos lendários de homens e deuses, enquanto, no que se refere à lírica, tratava-se de toda a poesia destinada ao canto e acompanhada do som da lira. Em seguida, restringiu-se  aos poemas que traziam a subjetividade do poeta, ou seja a expressão de seu mundo interior.
Assim, surgiram os primeiros poetas líricos da Grécia: Minermo, Alceu e Safo, esta última, reconhecida já na antiguidade grega, como a maior entre os poetas líricos.
Nasceu em Ereso, na Ilha de Lesbos, de uma nobre família e viveu quase sempre em Mitilene. Casou-se e teve uma filha, Cleide, e faleceu em avançada idade. É tradição que se tenha suicidado, jogando-se ao mar de um penhasco por ter sido rejeitada por um pretendido conhecido como Phaon.
 jean-joseph-taillasson-safo-se-arroja-al-mar-

Seus biógrafos apresentam-na como uma pessoa controvertida. Ter-se-ia casado, teria mesmo uma filha, por outro lado, devotaria paixões arrebatadoras por amigas e alunas de sua escola, para as quais compusera calorosos versos eróticos. Esse modo de ser chegou mesmo a levar alguns estudiosos a acreditar que se tratasse de duas personagens homônimas, o que parece hoje descartado.
Safo - Andrea Gastaldi

Compôs líricas de amor, poemetos mitológicos e cânticos para núpcias, que foram reunidos em nove livros, dos quais restam-nos apenas poucas centenas de versos, a maior parte apenas fragmentos.
Safo era amante do belo, refinada e elegante nos modos e no comportamento e foi estimada e admirada em Mitilene pelas suas concidadãs, cujas filhas com ela se reuniam em um centro feminino dedicado ao culto de Afrodite e das Musas, uma espécie de cenáculo intelectual, uma comunidade situada entre o sacro e o profano.
Reunia moças aristocratas e solteiras ou jovens esposas que apreciavam a superioridade cultural de Safo e desejavam aprender a arte da declamação, música e dança.
As jovens solteiras somente abandonavam essa espécie da academia quando se casavam, deixando na mestra a amargura da separação.
Safo sentia um amor carnal por algumas de suas discípulas e manifestou isso em diversas odes dedicadas a elas, especialmente por ocasião em que alguma se ia casar e afastar-se da academia. Porém, é preciso entender que na escola de Safo as moças aprendiam até mesmo como se deviam comportar para se tornarem mais eróticas e provocantes para seus maridos.
O amor era cultuado num momento profundo de comunhão, ligado à oração, num ritual a Afrodite acompanhado de canto. As meninas, nessa escola, aprendiam a linguagem e os sinais de Eros e eram iniciadas  nos rituais de satisfação do companheiro e de si mesmas. Aprendiam também a vestir-se e a salientar a beleza física, segundo tradição antiga. Ocorre que os analistas e tradutores cristãos tentaram apagar todos os vestígios desses rituais.
Aprendiam a apreciar e declamar, inclusive poesia erótica, ao som de música e a tornar a voz e os modos mais graciosos, para encantar os futuros maridos. Não podemos esquecer que em algumas comunidades gregas mais ricas e ato amoroso podia ser acompanhado por músicos e cantores.
Se é verdade que o amor heterossexual e o matrimônio representaram uma parte importante da vida de Safo, é também verdade que a glória poética e a vida ligada à arte e à poesia têm profunda relação com suas atividades na sua academia.
Safo cantou o amor não apenas como excitação imediata dos sentidos e perturbação das profundidades do ser, como acontecia com toda a poesia erótica antiga, mas também como memória que vive no espaço e no tempo, como manifestação comum da alegria de viver.
Em sua escola, Safo tinha um grupo que em grego era conhecido mo θίασος, termo usado frequentemente para referir-se à comitiva dos filiados ao culto de Dionísio. Esse termo abrigava grupos de diferentes características. Entre os seguidores de Dionísio, podia definir um grupo de atores vulgares que, muitas vezes bêbados, praticavam certo teatro popular de rua conhecido como pantomima, com também podia referir um grupo de pessoas que participavam das festividades religiosas a Afrodite e Apolo.
Safo - Amanda Brewster Sewell

A caracterização mais aceita da escola de Safo é que se tratava de uma espécie de ambiente educacional destinado a meninas aristocráticas na idade núbil, em que as alunas aprendiam, como se disse acima, a cantar, a dançar, mas também a vestir-se de acordo com os costumes das classes sofisticadas dessa época, conhecimentos essenciais para uma noiva aristocrática desses tempos.
Porém, não há um consenso sobre o real funcionamento da escola de Safo. Se por um lado há aqueles que destacam o caráter religioso de culto que orientava as atividades da casa uma vez tinha uma ligação das atividades à deusa Afrodite, o que faziam da mestre uma espécie de sacerdotisa; por outro, existem aqueles que comparam esse grupo de meninas às adolescentes de Esparta, que se exercitavam na poesia do compositor Álcman e seu Partheneion, ou canção de solteira, com provocantes cantos corais nos rituais de iniciação que precediam o matrimônio. Acontece que poderiam ocorrer ambos os eventos. Porém, parece tratar-se de algo respeitoso e não vulgar como ocorria nos bordéis e casas de prostituição.
Além de fugir de alguns excessos e de  incertezas que desaconselham conclusões precipitadas, é essencial admitir o caráter comunitário de sua escola.
Safo, como diz o próprio Platão, mais do que educadora de meninas, fez parte das musas, produzindo um gênero de poesia de altíssima qualidade. Sua genialidade se manifesta, em particular, numa de suas famosas odes, em que ela se sente tomada de um ciúme furioso que expressa um poder jamais igualado por nenhum outro poeta. É a mais antiga autora erótica que se conhece. Veja-se o poema que manifesta esse ciúme diante de uma de suas discípulas que se vai casar:
Contemplo como o igual dos próprios deuses:

esse homem que sentado à tua frente
escuta assim de perto quando falas
com tal doçura,
e ris cheia de graça. Mal te vejo
o coração se agita no meu peito,
do fundo da garganta já não sai
a minha voz,
a língua como que se parte, corre
um tênue fogo sob a minha pele,
os olhos deixam de enxergar, os meus
ouvidos zumbem,
e banho-me de suor, e tremo toda,
e logo fico verde como as ervas,
e pouco falta para que eu não morra
ou enlouqueça.
É também maravilhoso este poema dedicado a uma de suas amadas:

Ode a Anactória
A mais bela coisa deste mundo
para alguns são soldados a marchar,
para outros uma frota; para mim
é a minha bem-querida.
Fácil é dá-lo a compreender a todos:
Helena, a sem igual em formosura,
achou que o destruidor da honra de Troia
era o melhor dos homens,
e assim não se deteve a cogitar
em sua filha nem nos pais queridos:
o Amor a seduziu e longe a fez
ceder o coração.
Dobrar mulher não custa, se ela pensa
por alto no que é próximo e querido.
Oh não me esqueças, Anactória, nem
aquela que partiu:
prefiro o doce ruído de seus passos
e o brilho de seu rosto a ver os carros
e os soldados da Lídia combatendo.

Safo amava muito e chamou o amor de essência da vida, como o mais poderoso dos sentimentos humanos e exalta em seus poemas de uma maneira nova, rompendo com as formas tradicionais de uma mesma cultura grega. Para o amor divino não é apenas um sentimento da alma inefável, mas uma força violenta e irresistível que perturba o coração ea alma de quem se apaixona e se resigna ao emaranhado de alegrias e tristezas que gera.
 
Sappho and Erinna in a Garden at Mytilene - Simeon Solomon
À amada
Ventura, que iguala aos deuses,
Em meu conceito, desfruta
Quem, junto de ti sentada,
As doces falas te escuta,
Goza teu mago sorrir.

Quando imagino em tal gosto
É minha alma um labirinto;
Expira-me a voz nos lábios;
Nas veias um fogo sinto;
Sinto os ouvidos zunir.

Gelado suor me inunda;
O corpo se me arrepia;
Fogem-me as cores do rosto,
Como ao vir da quadra fria
Entra a folha a desmaiar.

Respiro a custo, e já cuido
Que se esvai a doce vida!
Arrisquemo-nos a tudo...
Contra uma angústia insofrida
Tudo se deve tentar.

O amor dela, era tão requintadamente feminino, que varreu tudo à sua volta, em delicadeza e leveza, e ainda hoje pode ser considerada maior poeta de todos os tempos, porque nenhuma mulher foi capaz de cantar como o seu amor,  pureza e sinceridade.
Famosa é a estrofe sáfica, composta por três sílabas e um adônio sáfico[1]. Graça, delicadeza e paixão: essas são as características da poesia de Safo, havendo espaço para a introspecção, criando especialmente o clima intimista.
É exatamente dessa forma que reproduz viva na poesia a vida interior. O seu mundo favorito reproduz a condição das mulheres gregas, para as quais ela não estava fechada, porque, nascida em uma família aristocrática, também muito viajou pelas ilhas e continente grego.
Também trocou versos com o poeta Alceu, contemporâneo e compatriota seu. Outrossim, foi uma esposa e mãe, sem que isso interferisse em sua atividade em sua escola nem em sua atividade poética.
Em um tempo e em um ambiente em que as mulheres gozavam de certa autonomia e independência, Safo usou sua posição para moldar o seu mundo poético, em um círculo diferente do meio masculino.
Mesmo a ideia da morte na poesia de Safo sugere imagens harmoniosas de serenidade e beleza, porque para ela o reino das trevas pode ser coberto de jardins de flores e orvalhado. É fundamental sublinhar que Safo teve uma influência considerável sobre os seus contemporâneos, especialmente em Alceu, Teógnis e Baquílides.
Safo y Homero - Charles Nicolas Rafael LafondLafond

Teócrito, citado por Estrabão, falou sobre ela assim: “Safo é um ser maravilhoso que no passado, na memória viva, não parece ter existido alguma mulher igual, que pudesse competir com ela no poema, mesmo de longe; sua fama igualou a de Homero.” Segue-se sua composição conhecida  como Hino a Afrodite, famosa desde os tempos antigos:
Hino a Afrodite
Afrodite imortal de faiscante trono
filha de Zeus tecelã de enganos peço-te:
a mim nem mágoa nem náusea domine
Senhora o ânimo

Mas aqui vem - se há uma vez
a minha voz ouvindo de longe
escutaste e do pai deixando a casa
áurea vieste

atrelado o carro. Belos te levavam
ágeis pássaros acima da terra negra
contínuas asas vibrando vindos do céu
através do ar,

e logo chegaram. Tu ó venturosa
sorrindo no rosto imortal indagas
o que de novo sofri, a que de novo
te evoco,

o que mais desejo de ânimo louco
que aconteça. "Quem de novo convencerei
a acolher teu amor?" "Quem, Safo, te faz sofrer?"

"Se bem agora fuja, logo te perseguirá,
se bem teus dons recuse, virá te dar,
se bem não ame, logo amará - ainda que
ela não queira."

Vem junto a mim ainda agora, desfaz
o áspero pensar, perfaz quanto meu ânimo
anseia ver perfeito. E tu mesma - sê
minha aliada.

(Tradução de Jaa Torrano)




[1]  Adônio sáfico é um verso composto por um dáctilo e um troqueu ou espondeu. (dáctilo é um pé poético da métrica grega ou latina formado de uma sílaba longa e duas sílabas breves – troqueu é o pé formado de uma longa e uma breve e o espondeu é formado de duas sílabas longas).

SAFO É ADMIRADÍSSIMA PELOS ARTISTAS - VEJA-SE QUANTAS REPRESENTAÇ~IOES DELA:
 John William Godward - In the Days of Sappho







Safo (estudio) - Gustav Klimt

Safo - Arnold Böcklin

Safo - Gustav Klimt

Safo - Julius Johann Ferdinand Cronenberg

Safo - Pierre-Narcisse Guérin

Safo - Rafael Sanzio

Virginie Ancelot  - Sappho

Safo abrazando su lira - Jules Elie Delauney

Safo Charles Gleyre (1867)

Safo en el acantilado Leucadio -
Pierre-Narcisse Guérin

 Angelica Kauffmann “Sappho inspirée par l’Amour” de 1775.


SAFO John-William-Godward-Sappho

 jules-delaunay-safo-abrazada-a-su-lira-

Safo tocando la lira - Léopold Burthe

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