Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Cristina, Oscar e o javali de Florença |
Sobre cada ser humano, pesa um destino inexorável do qual
ele jamais pode fugir ou se afastar. Essa é a leitura mais imediata a que esse
mito conduz.
Édipo (Οἰδίπους) é, antes de tudo, um homem que deseja fugir do próprio
destino. Nascera na velha Tebas, cidade fundada por Cadmo. Seu pai fora o rei
Laio e sua mãe a rainha Jocasta.
Laio havia sido advertido pelo sacerdote Tirésias que o
oráculo de Delfos havia previsto que ele teria um filho que o assassinaria e se
casaria com a própria mãe, Jocasta.
Quando Édipo nasceu, Laio entregou-o a seus pastores que
levavam os rebanhos para as montanhas para que o jogassem num despenhadeiro, o Citerão.
Chegados às pastagens montanhosas, tinham piedade do menino ainda tão pequeno e
indefeso.
Como houvesse outro grupo de pastores a serviço do rei
Políbio, de Corinto, decidiram doá-lo para salvar-lhe a vida. Quando veio o
inverno e as montanhas se cobriram de neve, todos retornaram a suas casas com
os seus rebanhos.
Ao chegarem a Corinto, Pólibo percebeu que seus pastores
traziam uma criança. Como ele e sua esposa Mérope não tinham filhos, decidiram
adotar o menino.
Assim, Édipo foi criado na corte de Corinto, como filho do
rei e herdeiro do trono. Um dia, numa festa, um bêbado contou a Édipo, que já
era moço, que ele era filho adotivo. Por isso, decidiu consultar o oráculo de
Apolo em Delfos. A pitonisa confirmou-lhe o oráculo. Mataria o pai e se casaria
com a mãe.
Édipo e a Esfinge - pintura de Gustave Moreau |
Como não sabia de seus pais verdadeiros, tentou fugir do
destino, não mais retornando a Corinto. Partiu em direção a Tebas. No meio do caminho, encontrou com
Laio que pediu para que ele abrisse caminho para passar. Édipo não atendeu ao
pedido do rei e lutou com ele até matá-lo.
Sem saber que havia matado o próprio pai, Édipo prosseguiu
sua viagem para Tebas. No caminho, encontrou-se com a Esfinge, um monstro
metade leão, metade mulher, que atormentava o povo tebano, pois lançava enigmas
e devorava quem não os decifrasse. O enigma proposto pela esfinge era o
seguinte: Qual é o animal que de manhã tem quatro pés, dois ao meio dia e três
à tarde? Ele disse que era o homem, pois na manhã da vida (infância) engatinha
com pés e mãos, ao meio-dia (idade adulta) anda sobre dois pés e à tarde
(velhice) precisa das duas pernas e de uma bengala. A Esfinge ficou furiosa por
ter sido decifrada e jogou-se ao mar, suicidando-se.
Chegando a Tebas, o povo em gratidão por tê-lo libertado dos
males da cruel Esfinge, saudou-o como seu novo rei, e entregou-lhe a rainha Jocasta
como esposa.
Depois de muito tempo, quando Édipo já gerara, com a própria
mãe, quatro filhos: Antígona, Etéocles, Polinice e Ismene, uma violenta
peste atingiu a cidade.
Édipo envia o velho sacerdote Tirésias ao oráculo, para
saber da origem do mal. Esse respondeu que a peste não teria fim enquanto o
assassino de Laio não fosse castigado. Ao longo das investigações, a verdade
foi esclarecida e Édipo arrancou os próprios olhos, ao ver que Jocasta se havia
enforcado, ao perceber que se havia casado com o próprio filho.
Édipo é o herói que se encontrou na fuga. Perfazendo uma
longa caminhada, o filho de Laio e Jocasta fechou o mandala: de Tebas ao
Citerão, deste a Corinto, da corte de Pólibo a Delfos, do Oráculo de Apolo ao
trívio, da morte de Laio ao monte Fíquion, da vitória sobre a Esfinge ao
casamento com Jocasta e do reencontro com o saber ao mergulho final no seio da
Grande Mãe, Édipo completou o círculo urobórico. Everardo Rocha escreveu com
propriedade a esse respeito: "Se quisermos visualizar o percurso traçado pelo
caminho de Édipo, fugindo do destino e reencontrando-o o para dolorosamente e
cumpri-lo, podemos perceber que Édipo acaba por dar uma volta completa num
círculo. Sua vida pode ser expressa num esquema circular que demonstra o
paradoxo de sua existência: quanto maior a tentativa de fuga, mais próximo está
o encontro". O autor estampou, em seguida, o que denominou "O Caminho de Édipo" e que nós chamaríamos o Uróboro Iniciático de Édipo
O texto a seguir é uma análise detalhada do mito de Édipo.
TEXTO DE JUNITO BRANDÃO – Mitologia Grega III
Os Labdácidas: o Mito de Édipo
1
LABDÁCIDAS173 é um termo
genérico para designar os descendentes de Lábdaco, antigo rei de Tebas, em
grego Λάβδακος (Lábdakos),
que se procura explicar etimologicamente pela raiz lep, do verbo λέπειν (lépein), "esfolar".
Segundo uma tradição, o rei de Tebas fora despedaçado pelas Mênades ou
Bacantes. O étimo é discutível, e Marie Delcout sugere outra explicação,
conforme se mostrará mais adiante.173-[2]
Para se chegar a Lábdaco e a seu desditoso neto
Édipo, é preciso recuar um pouco. Como no Vol. II, p. 34sqq., já se falou do
rapto de Europa por Zeus e da procura desta por seus irmãos, o que levaria à
fundação de Tebas, vamos resumir e realçar aqui apenas os dados principais, a
fim de que se tenha uma visão global do mitologema.
Com o rapto de Europa por Zeus-Touro, Agenor, rei
da Fenícia, ignorando a identidade de quem lhe arrebatara a filha, ordenou a
seus três filhos mais velhos, Fênix, Cílix e Cadmo que a procurassem por todo o
mundo conhecido e que não regressassem sem ela. Os três príncipes iniciaram
imediatamente a busca, mas, decorrido algum tempo, percebendo que sua tarefa
era inútil e como não pudessem regressar à corte paterna, em Tiro ou Sídon,
começaram a fundar colônias, onde se estabeleceram.
Cadmo fixou-se na Trácia com sua mãe Telefassa.
Morta esta, o herói consultou o oráculo e este lhe ordenou que abandonasse em
definitivo a procura da irmã e fundasse uma cidade. Para tanto deveria seguir
uma vaca até onde ela caísse de cansaço. Pondo-se a caminho, Cadmo, após
atravessar a região da Fócida, encontrou uma vaca, marcada nos flancos com um
disco branco, configuração da Lua. Seguiu-a por toda a Beócia e, quando o
animal se deitou de fadiga, compreendeu que se cumpria o oráculo. Mandou os
companheiros a uma fonte vizinha, consagrada a Ares, em busca de água para as
abluções, mas um dragão os matou. O filho de Agenor conseguiu liquidar o
monstro e, a conselho de Atená, semeou-lhes os dentes, do que nasceram gigantes
ameaçadores, aos quais deu o nome de Spartói, os "Semeados".
Cadmo atirou pedras no meio deles e os gigantes,
ignorando quem os provocava, acusaram-se mutuamente e se mataram. Sobreviveram
apenas cinco: Equíon (que mais tarde se casou com Agave, filha de Cadmo), Udeu,
Ctônio, Hiperenor e Peloro, os quais, juntamente com Cadmo, formarão o núcleo
ancestral da aristocracia tebana.
A morte do Dragão, símbolo do próprio deus Ares,
tinha que ser expiada: Cadmo, futuro rei de Tebas, durante oito anos serviu ao
deus como escravo. Terminado o rito iniciático, Zeus lhe deu como esposa
Harmonia, filha do mesmo Ares. Desse enlace nasceram Ino (Leucotéia), Agave,
Sêmele e Polidoro. Já idosos, Cadmo e Harmonia abandonaram Tebas em condições
misteriosas. O trono teria sido ocupado por Polidoro , mas,
235
Baschet, André Marcel Ödipus verurteilt Polyneikes - 1883 |
consoante a
tradição mais seguida, Cadmo deixara o reino a seu neto Penteu, filho de Agave
e do Spartós Equíon. De qualquer forma, é do casamento de Polidoro e Nicteis(ou
Antíope) que nasce Lábdaco, pai de Laio e avô de Édipo.
Lábdaco é, através de sua mãe Nicteis ou Antíope,
filha de Nicteu, neto de Ctônio, um dos Spartói. Como o futuro rei de Tebas
tivesse apenas um ano, quando lhe faleceu o pai Polidoro, o trono foi ocupado
interinamente por Nicteu. Este, tendo-se matado, seu irmão Lico assumiu o
poder, até a maioridade do filho de Nicteis.
O reinado de Lábdaco foi marcado por uma guerra
sangrenta contra o rei de Atenas, o célebre Pandíon I, pai de Procne e
Filomela, em cujo governo Dioniso e Deméter tiveram permissão para ingressar
"miticamente" na Ática. Na luta contra Lábdaco, por uma questão de
fronteiras, Pandíon, com o precioso auxílio do rei da Trácia, Tereu, desbaratou
as tropas tebanas. Como recompensa, por esposa a filha do rei de Tebas, Procne,
cujas desventuras já se narraram no Vol. II, p. 41. Consoante uma tradição
conservada por Apolodoro, Lábdaco foi, como Penteu, despedaçado pelas Bacantes,
por se ter também oposto à introdução do culto de Dioniso em Tebas.
Com a morte prematura de Lábdaco, seu filho Laio,
por ser ainda muito jovem, não pôde assumir as rédeas do governo e, mais uma
vez, Lico tornou-se regente; mas, dessa feita, por pouco tempo, porque foi
assassinado por seus sobrinhos Anfião e Zeto.174-[3]
Laio, Todavia, herdeiro não apenas do trono de
Tebas, mas sobretudo de algumas mazelas de “caráter religioso” de seus antepassados, particularmente de
Cadmo, que matou o Dragão de Ares, e de Lábdaco, que se opôs ao deus do êxtase
e do entusiasmo, cometeu grave hamartía na corte de Pélops. Desrespeitando a
sagrada hospitalidade, cujo protetor era Zeus, e ofendendo gravemente Hera,
guardiã severa dos amores legítimos, raptou o jovem Crisipo, filho de seu
hospedeiro. Agindo contrariamente ao κατὰ τὸ όρθὸν.(katà
tò orthón), ao que é "justo e legítimo", para empregar a expressão de
Heródoto (1,96), o futuro rei dos
Quanto a Zeto, por seu vigor físico e violência,
causas comuns da ultrapassagem do métron e da hýbris, teve certamente um fim
tão ou mais trágico que seu irmão gêmeo, pois que, segundo o mito, morreu de
"desgosto pungente" ao saber que seu filho único perecera igualmente
às mãos de Apolo.
2
Com o desaparecimento dos usurpadores Anfião e
Zeto, Laio Tebanos acabou ferindo os deuses e praticando um amor contra naturam.
Miticamente, a pederastia se iniciava na Hélade. Segundo uma variante, Édipo
matara conscientemente a seu pai Laio, porque ambos disputavam a preferência do
belo filho de Pélops. Este execrou solenemente a Laio, o que, juntamente com a
cólera incontida de Hera, teria gerado a maldição dos Labdácidas. Crisipo,
envergonhado, matou-se.
O reinado de Anfião e Zeto foi um desastre, em
função especificamente da hýbris de ambos. Tendo desposado Níobe, filha de
Tântalo, Anfião terminou seus dias nas mãos de Apolo, que o liquidou juntamente
com os filhos. Conforme uma variante, com a morte dos filhos por Apolo e
Ártemis, Anfião enlouquecera e tentara incendiar um templo de Apolo. O deus o
atravessou com uma flecha finalmente subiu ao trono de Tebas. Segundo a
tradição, o novo soberano se teria casado com Epicasta, nome que já aparece na
Odisseia, XI, 271sqq., como mãe e desditosa esposa de Édipo.175-[4]
O nome Jocasta, filha de Meneceu, aparece a partir
de Sófocles, Édipo Rei, 950sqq. Segundo as variantes, os pulmões do mito,
Jocasta não foi a primeira esposa de Laio. O rei de Tebas se teria casado em
primeiras núpcias com Euricléia, filha de Ecfas, e dela tivera Édipo. Epicasta
foi a segunda esposa. Donde, a seguir tal versão, "viva e atuante" no
mito, Édipo, após a morte de Laio, desposou a madrasta Epicasta e não sua
própria mãe, que aliás já havia falecido... Pelo texto de Homero não consta
igualmente que Édipo rasgara os olhos, tivera filhos com Jocasta e fora levado por
Antígona para o bosque sagrado das Eumênides, em Atenas. O texto traduzido de
Homero mostra ao revés que, morta Epicasta, Édipo continuou a reinar sobre os
Cadmeus. Mas todos esses fatos, enfoques e variantes serão comentados mais
abaixo, inclusive a união do filho de Laio com a própria mãe. Desejamos,
tão-somente, mais uma vez, e à guisa de "memento", observar, como se
frisou no Vol. I, Cap. I, p. 26, que sempre houve um liame muito forte, na
Grécia, entre mito e literatura, já que esta, por motivos que não interessa repisar
aqui, tinha por matéria-prima, não raro obrigatória, o mitologema. E como já
acentuamos no capítulo supracitado, ao plasmar o material mítico, o poeta ou
artista não se pautava unicamente por critérios religiosos, mas obedecia
também, e isso é fácil de compreender, a ditames estéticos. As obras de arte, e
entre elas as obras literárias, impõem exigências específicas. Muitas vezes,
entre narrar um mito, que é uma práxis sagrada, e compor uma obra de arte,
ainda que alicerçada no mito, vai uma enorme distância. Mas a redução do mito a
uma obra literária tem outra consequência no que respeita à documentação
mitológica: o mito vive em variantes, e nelas se contém; e a obra de arte de
conteúdo mitológico forçosamente reflete apenas uma dessas variantes. Dado o
imenso prestígio alcançado pela poesia na Hélade, a versão do poeta, ao narrar
o mito, impunha-se à consciência pública: instituía-se dessarte o mito
canônico, com abandono das demais variantes, talvez de menor eficácia do ponto
de vista artístico, mas nem por isso de menor importância do ponto de vista
religioso.
E foi isto exatamente o que aconteceu com o mito
de Édipo. Dada a beleza da tragédia Édipo Rei e a autoridade olímpica de
Sófocles, o mito por ele poetizado passou a ser a cartilha por onde se reza e
se psicanalisa! Temos consciência plena de que o mito de Édipo não deixou de
existir, por ter sido revestido de arco-íris pelo gênio poético de Sófocles.
Não se está acusando ou condenando a obra de arte. Ao contrário: ao passar pela
ourivesaria das musas sofocleanas, o mito do filho de Laio tornou-se mais uma
pedra preciosa que se engastou no anel urobórico do mitologema de Édipo.
Sabemos que mythus idem est, que o mito continua o
mesmo, mas, e isto é importante, continua como uma das variantes que o grande
vate ateniense privilegiou. Assim, e é o que se irá fazer, não nos basearemos
apenas na tragédia Édipo Rei para expor-lhe o mito. Se assim fizéssemos (e é o
que mais comumente se vê) seria reduzir o mitologema a uma única variante, por
sinal vestida a rigor pela arte incomparável de Sófocles. Dela nos serviremos
também, mas encaixaremos igualmente na exposição do mito as demais versões, por
certo muito pouco poéticas, mas, por isso mesmo, tão ou mais importantes do que
a utilizada e genialmente recriada pelo trágico ateniense. Como acertadamente
observou Lévi-Strauss, o mito deve ser definido "pelo conjunto de todas as
suas versões", uma vez que o mesmo se compõe do conjunto de suas
variantes.176[5]
Laio é, pois, o rei de Tebas e, após a morte da primeira
esposa, uniu-se a Epicasta. Na versão sofocleana, todavia, encontramo-lo casado
com Jocasta. A partir desse momento, o mito de Laio e Jocasta confunde-se com o
de Édipo, que está condenado antes mesmo de nascer, ao menos nas tradições
anteriores a Sófocles, a matar o pai e desposar a própria mãe.
3
LAIO, em grego Λάιος (Láios) talvez possa se aproximar etimologicamente de λαιός (laiós), "esquerdo", desajeitado, cambaio. Teria o rei
alguma deformação física? O fato é que não apenas a etimologia de Laio, mas
também a de Lábdaco nos interessam muito, porque contribuem para explicar a de
Édipo, que nos leva diretamente ao problema da criança exposta.
Antígona e Ismene |
Consoante Marie Delcourt17[6]-7,
a exposição de recém-nascidos tem sua origem num rito que visa à exclusão de seres
maléficos, bem como a provas iniciáticas. Esses seres natos ou nascituros são
considerados maléficos, porque constituem uma ameaça ao rei, à pólis e à
comunidade inteira. Em todo caso, a exposição no mar ou numa montanha, segundo
se verá depois, obedece a um ordálio, a um juízo divino: o herói se livra da
morte e, de bode expiatório nas origens — exposto que foi para sanar hamartía
ancestral —converte-se em salvador de seu povo. É necessário, porém, conforme
acentua Delcourt, não reduzir tanto a temática dos mitos de crianças expostas.
Na maioria destas o caráter maléfico não aparece ou é introduzido mais tarde
com o fito de justificar psicologicamente cada um dos aspectos de que se compõe
o mitologema. De um lado, pois, está a criança deformada, que, considerada como
maldição, é exposta para conjurar desgraças futuras ou afastar a esterilidade;
de outro, o recém-nascido, que, embora perfeito fisicamente, é exposto no mar
ou num monte, porque, segundo um oráculo, sua existência ameaçaria o rei ou a cidade.
Acrescente-se, por fim, que o tema do mergulho no mar ou da educação na
montanha deve remontar a antigas provas iniciáticas, cuja significação mais
comum é a introdução do jovem na classe dos adultos. Simbolicamente, a inclusão
num cofre ou a exposição na montanha é um rito iniciático que implica um regressus
ad uterum, um novo nascimento com nome novo e um acréscimo de
poder. O herói salvo, uma vez crescido, assume uma atitude hostil e vitoriosa
contra a família que o expôs.
Esta ligeira introdução ao longo tema da criança exposta
(assunto, aliás, já desenvolvido em parte no Vol. I, p. 89) objetiva ligar
etimologicamente Édipo à sua exposição, que, por sinal, é uma espécie de
herança. Com efeito, Lábdaco, segundo Delcourt, significaria coxo, pois que seu
nome estaria ligado a Labda, mera variante de lambda (l nome da décima primeira
letra do alfabeto grego). Labda, consoante Heródoto, Hist. 5,92, era filha de
Anfíon, rei de Tebas, e mãe de Cípselo, tirano de Corinto. Ora, Cípselo é assim
chamado por etimologia popular, porque fora exposto numa wpé^ (kypséle),
"cofre, vaso cilíndrico", denominado mais tarde "o cofre de
Cípselo".
Com respeito à etimologia de Labda (Lábdaco) temos uma pista
preciosa no Etymologicum Magnum, s.u. Βλαισός (blaisós),
"com os pés voltados para fora": "labda: cambaio, paralisado:
aquele que tem os pés voltados para fora, semelhante à letra A. É por isso que
a mulher de Eécion, mãe de Cípselo, rei de Corinto, era chamada Lambda".178[7] Na
realidade, Labda e Lábdaco eram certamente alcunhas, que, pela própria forma,
atestam não apenas sua origem popular, mas também designam uma anomalia179[8]
Labda e Lábdaco são pois, respectivamente, a mãe e o avô de dois
recém-nascidos, considerados maléficos mesmo antes do nascimento, e por isso
mesmo condenados à morte.
Desse modo Labda, Lábdaco, Cípselo e Édipo não seriam nomes,
mas cognomes, que designariam, para os dois primeiros, uma deformidade, e, para
os dois últimos, um episódio relativo à sua libertação. E era assim, frisa
Delcourt, que "os Gregos compreendiam e interpretavam Kýpselos e
Oidípus". O mito de Cípselo e Édipo, pensa a autora, se origina do hábito
de se exporem os recém-nascidos deformados. Mas, acrescenta ela, como ambos são
vitoriosos e os antigos não podiam admitir que seus heróis fossem fisicamente
deficientes, atribuiu-se o defeito físico maléfico a um antepassado próximo: no
caso do rei de Corinto, a Labda, e no do rei de Tebas, a Lábdaco e Laio, cuja
etimologia popular traduziria "o esquerdo, o cambaio". Fica, pois,
justificada, ao menos do ponto de vista "religioso e etimológico", a
exposição de Édipo.
Charles François Talibert – Édipo e Antígone |
Voltemos ao casamento de Laio e Jocasta. As tradições
arcaicas relativas ao oráculo que anunciava a morte de Laio por Édipo são
desconhecidas. A mais antiga delas se encontra em Ésquilo, na tragédia Os Sete contra Tebas, encenada em 476 a.
C, bem antes, portanto, de Édipo Rei.
Em Os Sete contra Tebas, 745-748,
diz-se apenas que "por três vezes, em Pito, seu santuário profético,
centro do mundo, Apolo revelara a Laio que ele deveria morrer sem filhos, se
quisesse salvar a cidade (Tebas)". A predição de Delfos nada diz a
respeito do casamento de Édipo com Jocasta. Igualmente, em Eurípides, na
tragédia Fenícias (408 a.C.?), cujo
assunto é o mesmo que em Os Sete contra
Tebas, o oráculo pítico prevê a morte de Laio e a luta dos filhos de Édipo
pelo reino de Tebas; mas não há referência oracular alguma ao casamento deste
com a mãe. Na realidade, em Édipo Rei
há dois oráculos: um nos versos 711sqq., em que Jocasta narra ao filho e esposo
como um "falso oráculo" predissera a Laio que ele seria assassinado
pelo próprio filho; e outro nos versos 791sqq., em que Édipo diz a Jocasta que
o mesmo Febo Apolo lhe vaticinara que ele desposaria a mãe e mataria o pai. Como
se observa, a distância entre as duas predições da Pítia é de cerca de vinte e
um anos, porquanto a primeira foi feita a Laio, após o nascimento do filho, e a
segunda diretamente a Édipo, pouco antes de matar o pai e casar-se com a mãe,
tornando-se rei de Tebas.
Cronologicamente, o primeiro a reunir os dois vaticínios,
superpondo-os anacronicamente e atribuindo-o a uma revelação de Apolo a Laio,
mas antes do nascimento de Édipo, foi Nicolau de Damasco (séc. IV p. C), em
cujo Frag. 15 se lê: "O deus diz a Laio que ele teria um filho que o
mataria e se casaria com a própria mãe".
Embora ameaçado por três vezes pelo Oráculo de Delfos,
conforme se mostrou linhas atrás, Laio assim mesmo resolveu ter um filho com
Jocasta. Nascido o menino, o rei, lembrando-se do veto de Apolo, apressou-se em
livrar-se do mesmo. Há duas versões bem diferentes na exposição de Édipo. Na
primeira, o futuro rei de Tebas é colocado num cofre e lançado ao mar, mas
salva-se porque o λάρναξ (lárnaks) (sarcófago) chegou a Corinto ou Sicione. Parece ser
esta uma das tradições mais antigas, de
resto bem atestada na cerâmica, num escólio aos versos 26 e 28 das Fenícias de
Eurípides e na Fábula 66 de Higino.180[9]
Acrescente-se, além do mais, como faz notar agudamente
Delcourt, que a exposição na água deve ser a mais antiga das duas, primeiro
porque não é mencionada pelos poetas trágicos; segundo, ela não se presta para
explicar o nome do exposto. A exposição sobre um monte, no caso específico de
Édipo, tornou-se a preferida, já que, através da mesma, se passou a ter um
sinal específico (os pés inchados ou os calcanhares perfurados) para um
reconhecimento futuro e um aítion, um motivo, que lhe explicasse o nome. Na
segunda, ele é simplesmente abandonado no monte Citerão.
Na versão de Sófocles, Édipo
Rei, 718sq., Laio ligou os pés do menino e mandou expô-lo num monte
deserto, que sabemos pela própria tragédia ter sido o Citerão.
Curioso é que Sófocles não menciona o motivo da exposição,
mas Ésquilo e Eurípides o explicitam. O autor de Os Sete contra Tebas, 742sq.,
fala da falta antiga e Eurípides diz ainda com mais clareza que se trata do
amor criminoso de Laio por Crisipo. Em Sófocles, Édipo Rei, 718, Laio amarrou o menino pelos tornozelos antes de
mandar expô-lo. Em outras versões a criança tem os calcanhares perfurados por
um gancho e os pés atados por uma correia. De qualquer forma, seguindo ainda o
raciocínio de Marie Delcourt, "os pés inchados se constituem num absurdo,
qualquer que seja o ângulo de análise. Um recém-nascido abandonado no mar ou num
monte está sujeito à morte, com os pés amarrados ou livres. Vários gramáticos
antigos pressentiram o problema e tentaram solucioná-lo: um escólio ao v. 26
das Fenícias explica que os pais de
Édipo o mutilaram, a fim de que o menino não fosse recolhido e educado. Com
efeito, na época histórica, pessoas às quais não se podia atribuir qualquer
intenção filantrópica recolhiam entre os meninos abandonados os que lhe
pareciam perfeitos e robustos, e entre as meninas as que prometiam ser
belas".181-[10]
Os "pés inchados" ou "furados" até
Sófocles jamais serviram de sinal de identificação. Na Odisseia, como se viu,
os deuses revelam a Epicasta a identidade do marido, mas não se fala em sinais
que levassem a semelhante reconhecimento.
A verdade é que somente a partir de Sófocles (Édipo Rei,
1030-1036) é que surgem as cicatrizes como sinal de reconhecimento e
justificativa etimológica. Em versões tardias da tragédia atribui-se o nome de
Forbas ao Mensageiro, o pastor de Corinto, que recolhe o filho de Jocasta e
mais tarde lhe vai revelar o significado das cicatrizes que trazia nos
calcanhares. Vale a pena lembrar uma ponta do diálogo entre o Mensageiro e
Édipo:
Mensageiro ("Forbas") — Naquele dia, meu filho, eu
fui teu salvador.
Édipo —De que desgraça era vítima, quando me recolheste?
Mensageiro — As junturas de teus pês poderiam testemunhá-lo.
Édipo — Ai de mim'. Vara que relembrar tão antiga ignomínia?
Mensageiro —Fui eu quem soltou os ferros que atravessavam
teus pés.
Édipo — Certamente carrego desde a infância tão vergonhosa
afronta.
Mensageiro — A semelhante circunstância deves o
nome que tens.
(Édipo Rei, 1030-1036)
Após Sófocles, Oidípus, "Pé-Inchado" (ou
"Pés-Inchados"?), "exibe ainda suas cicatrizes como sinal de
reconhecimento em dois resumos, sem indicação de fonte".182 O
primeiro é a Fábula do chamado Segundo
Mitógrafo do Vaticano, cujo teor é o seguinte:
"um dia, quando Édipo se calçava, sua mãe viu-lhe as
cicatrizes e, reconhecendo o filho, gemeu desesperadamente". O segundo é a
fábula 67 de Higino: "O velho Menetes 183 , que havia exposto
Édipo, reconheceu-o como filho de Laio pelas cicatrizes nos tornozelos".
No denominado "Resumo de Pisandro", de época
tardia, Jocasta reconhece primeiro o assassino pelas armas de Laio, e em
seguida seu filho Édipo, pelas fraldas e colchetes encontrados com o
palafreneiro de Sicione, que salvou o menino, que lá chegara num cofre.
Seja como for, a não ser no plano simbólico, o sinal dos pés
inchados ou perfurados de Édipo constituem um absurdo em matéria de reconhecimento.
Não é possível que Jocasta, após tantos anos de casamento, não tivesse visto os
pés deformados do filho e marido! Somente a literatura tardia os viu e
valorizou...
Édipo expõe o enigma da Esfinge - Louvre - Paris |
Mas, como acentua Delcourt, quando um grande artista ou
dramaturgo como Sófocles repete um episódio simultaneamente absurdo e supérfluo
como este, é que o fato lhe deve ter sido imposto por uma mitopéia anterior.184
4
Criado pelo pastor de Corinto, segundo uma variante, o qual
o recebera do pastor de Laio no monte Citerão, ou encontrado por Peribéia junto
às praias do mar em Corinto e levado para a corte de seu marido e rei local
Pólibo, ou ainda conduzido para a mesma corte pelo pegureiro Forbas, o fato é
que Édipo, na maioria das versões, foi criado e educado na corte de Corinto como
filho de Pólibo e Mérope (nome de Peribéia na versão de Sófocles, Édipo Rei,
775, 990), que não tinham descendentes. Observe-se, de caminho, que Pólibo em
outras versões aparece como rei ora de Corinto, ora de Sicione ou Antédon e
ainda de Platéias.
Uma infância e adolescência tranquilas prenderam o
"futuro" sucessor de Pólibo à corte de Corinto; mas, tão logo atingiu
a maioridade, o jovem príncipe, por motivos que variam muito, abandonou seus
pais adotivos. 183.[11]
A tradição mais antiga é a de que Édipo saíra de Corinto em
busca de uns cavalos que haviam sido furtados do reino de seu pai. Mais tarde
os trágicos introduziram motivos psicologicamente mais complicados. A mais
conhecida é a de Édipo Rei, 779sqq.: num banquete, um dos convivas, após
ingerir muito vinho, chamou-lhe πλαστός (plastós), vale dizer, um filho postiço. Apesar da indignação
dos "pais" pelo insulto, Édipo não se conformou e, às escondidas,
partiu para Delfos. Em vez de receber da Pítia uma resposta à pergunta que lhe
fizera, a sacerdotisa de Apolo o expulsou do templo sagrado, vaticinando-lhe
algo terrível: ele estava condenado a matar o pai e unir-se à própria mãe. Não
mais regressando a Corinto, por terror de que o oráculo se cumprisse,
dirigiu-se, guiado pelos astros, para algum lugar da terra onde jamais se
cumprissem as tremendas profecias de Apolo...Foi exatamente nesse percurso para
algum lugar, ao atingir um trívio (Édipo Rei, 1398sq.) na encruzilhada de
Pótnias, marco de separação entre Delfos e Dáulis, que Édipo se encontrou com uma
carruagem que lhe vinha em sentido contrário.
John Henry Füssli – La morte di Edipo, 1784 |
Tratava-se de Laio com sua comitiva. Ao todo, de acordo com
o texto de Édipo Rei, 752, cinco pessoas: o rei, o arauto, um cocheiro e dois
escravos. O cocheiro e o próprio rei, no relato de Édipo, quiseram afastá-lo do
caminho, com o emprego de violência, jieòç |3íav (pròs bían), diz o texto, ÉdipoRei, 805. Como se estivesse fora de
si, tomado pela cólera, Ôi'ôpYfiç (di'orguês), Édipo Rei, 807, Édipo, usando
seu terceiro pé, o bastão, o que permitia a um deformado ficar "em
pé", feriu mortalmente o cocheiro; o rei, que estava à espreita, golpeou-o
duas vezes na cabeça com o aguilhão. A reação foi instantânea: com um só golpe
de bastão o herói prostrou a Laio. Em seguida liquidou os demais componentes da
comitiva real... Isto ele pensava! Um dos escravos, exatamente aquele que
outrora o conduzira ao Citerão, salvou-se com a fuga. Jocasta recebeu por ele a
notícia da morte do esposo, mas recebeu-a totalmente incorreta e mentirosa: o
rei e três de seus acompanhantes haviam sido mortos por salteadores. O escravo
que fugiu, permitindo que um forasteiro matasse a todos os outros da comitiva,
mentiu por vergonha, adulterando o acidente; e, para ocultar sua covardia,
afirmou que a carruagem fora atacada por bandoleiros.
Seus recalques pesaram-lhe tanto, que suplicou à rainha que
o mandasse para o campo, a cuidar do rebanho. Existe uma variante veiculada por
Nicolau de Damasco, talvez no Frag. 15, segundo a qual Laio partira para Delfos
em companhia de Epicasta e encontrou casualmente em Orcômeno a Édipo, que vinha
de Corinto, de onde partira έπί ζήτησιν
Ίππων (epì
dzétesin híppon), a fim de recuperar os cavalos furtados a Pólibo. Os dois
viajantes disputaram a passagem. O "filho de Pólibo" matou o arauto e
a Laio, que veio em socorro de seu servidor, mas poupou a Epicasta. Em seguida,
o príncipe se escondeu nas montanhas. A rainha enterrou ali mesmo os mortos e
retornou a Tebas. Édipo, após algum tempo, seguiu de Orcômeno para Corinto,
entregando a "seu pai" a carruagem e os animais pertencentes a Laio.
O restante do mito segue a versão tradicional.
Uma parte do Oráculo de Delfos estava cumprida. Faltava a
segunda para formar os σύμβολον (sýmbolon), o "encaixe".
Oedipus and Antigone - Stanislaw Brodowski |
Antes, porém, de se prosseguir com Édipo em sua busca,
voltemos a Tebas. Lá deixamos o casal Laio-Jocasta. O rei já recebeu seu
quinhão, mas vamos ver por que se dirigia ao Oráculo de Delfos e pela quarta
vez.
Tudo parecia tranquilo em Tebas, após a "morte" de
Édipo, quando repentinamente a cidade é assolada por um monstro, a Esfinge, que
se postara às portas de Tebas e devorava a quantos não lhe decifrassem o
enigma, ou, segundo outros, dois enigmas. Como a flor da juventude tebana
estivesse sendo destruída diariamente pelo flagelo, Laio resolveu ir a Delfos
para saber como livrar a cidade de tamanha desgraça. Foi essa viagem que
ensejou o encontro mortal com o filho outrora exposto.
Antes de retornar em definitivo a Édipo, teremos que
resolver, ou melhor, completar o comentário a dois problemas sérios: a justa
mortal entre Laio e seu filho e a vitória deste sobre a Esfinge.
Acerca da luta entre o rei de Tebas e Édipo, isto é, entre o
filho e o velho rei pela posse do trono, já se falou bastante amplamente no
Vol. I, p. 82-83. Vamos, por agora, apenas reiterar as ideias centrais e
ampliar um pouco as que nos parecem mais significativas. O mesmo faremos ao
abordar a vitória do herói sobre a Esfinge, o casamento com Jocasta e o
desfecho do mito no Édipo em Colono.
O mito de Édipo como um todo simbólico será focalizado no fim do presente
capítulo. Nossos guias aqui e lá serão particularmente Sófocles, M.-A. Potter,
Marie Delcourt e as variantes mais significativas do mitologema.
Consoante a pesquisadora belga, uma vez mandado expor pelo
pai, Édipo certamente haveria de desforrar-se do mesmo. Os poetas, no entanto,
e acrescentemos, sobretudo os trágicos, disfarçaram o caráter vingativo do
acontecimento: primeiro, lançaram pai e filho numa luta, numa justa, sem se
conhecerem; segundo, minimizaram a responsabilidade do herói no momento do
golpe fatal, uma vez que Laio o agredira primeiro. Além do mais, insiste a
autora, os poetas "poderiam ter ido ainda longe nesse mascaramento, fazendo
com que Édipo, por exemplo, matasse a Laio, como Perseu a Acrísio, isto é, de
maneira desastrada e inteiramente involuntária. Tal fato não diminuiria a
responsabilidade do herói em face dos deuses, porque para estes o que conta não
é a intenção criminosa, mas o ato em si. De outro lado, se isto acontecesse, o
encadeamento psicológico dos acontecimentos seria mais facilmente admitido.
Ora, se os poetas não agiram assim, é porque o tema do parricídio lhes foi
imposto por uma tradição mais antiga, que estampava entre pai e filho uma
hostilidade bem mais forte do que aquela que subsiste nas obras do século V
a.C. Semelhante conflito não se encaixa na moldura dos mitos de exposição.
Provém, isto sim, de um contexto mítico diferente, a luta entre Pai e
Filho".185-[12]
Esse antagonismo está presente em inúmeros mitologemas de
todas as culturas. Potter, aliás citado por Delcourt, numa obra de longo fôlego
186[13]
, tentou encontrar um denominador comum para essa rivalidade secular.
Segundo o pesquisador britânico, esta se origina de costumes primitivos:
exogamia, matriarcado, poliandria, poligamia, liberdade sexual pré-matrimonial
e divórcio, que, uma vez deixados para trás, reaparecem como extraordinários e
se inscrevem num contexto histórico. Desse modo, pai e filho podem defrontar-se
incognitamente. Só após a morte de um deles é que o sobrevivente, por meio de
algum sinal, toma conhecimento da identidade do adversário. Assim, as
circunstâncias acessórias são amplamente analisadas pelos mitógrafos, com a
finalidade de tornar verossímil a criação do filho longe do pai. Consoante
Potter, é normalmente este que se afasta da mulher grávida, tornando-se mais
raro que se separe a criança quando ainda muito pequena. A seguir tal esquema,
a história tem seu ponto de partida no próprio âmbito familiar. Desse modo, a
luta que termina com a morte do pai ou do filho resulta simplesmente de um
estado social anterior àquele que foi posteriormente elaborado no seio da
família.
Embora concorde em parte com a argumentação de Potter,
Delcourt acha que o núcleo do problema foi omitido: o conflito de gerações, a
cujo respeito falamos no supracitado Capítulo V do Vol. I, p. 82-83.
Em síntese, o problema para Delcourt se equaciona da
seguinte maneira: o velho antagonismo, quer seja entre pai e filho, avô e neto
ou entre pai e pretendente à mão da princesa é sempre uma luta pelo poder, cujo
desfecho é invariavelmente a vitória do mais jovem. Essa disputa entre pai e
filho, ao que tudo indica, fazia parte de um rito, o combate de morte que, nas
sociedades primitivas, permitia ao jovem rei suceder ao velho rei. Mas, desde
que a sucessão patrilinear se tornou a norma vigente, surgiu o contexto
familiar com todos os problemas morais que lhe são inerentes. Destarte, na
justa de morte que se travava pela sucessão, todas as atenuantes possíveis
foram introduzidas, a fim de mitigar o impacto dos combates primitivos. Jamais
um poeta trágico pôs em cena um parricídio consciente. Se Édipo mata a Laio e
Telégono a Ulisses, a ação é simplesmente o resultado do cumprimento de um
oráculo. No caso específico de Édipo, os trágicos, julgando que a atenuante
oráculo era insuficiente, transformaram a morte de Laio num acidente de
caminho. Desse modo, o parricídio ou é substituído por um simples
destronamento, ou é realizado, mas como resultante de um erro, embora se tenha
o respaldo de um oráculo. Em ambos os casos, porém, os poetas evitam colocar em
cena o mais horrendo dos crimes aos olhos da patriarcal sociedade grega. A
despeito, no entanto, de seu horror pelo parricídio, os trágicos tiveram muitas
vezes que tratar em público de uma hostilidade de fato entre homens de gerações
diferentes, o que patenteia a importância que possuíam a sucessão por morte na
pré-história grega e o peso das velhas tradições. Os testemunhos mais curiosos
desse rito arcaico se encontram nas teogonias, de onde a morte está ausente
porque os deuses eram imortais, mas nas quais há sangue, mutilação e violência,
conforme tentamos mostrar nas p. 190-192 e 334-336 do Vol. I.
A luta de morte entre o velho e o novo rei reflete o
simbolismo da fecundação. Em verdade, um rei envelhecido já é, de certo modo,
um soberano deposto, pois a função do rei, por ser ele de origem divina, é
fecundar e manter viva e atuante sua força mágica. Perdido o vigor físico, ou
não mais funcionando a força mágica, o rei terá que ceder seu posto a um jovem
capaz de manter acesa a chama da fecundação e da fertilidade dos campos, uma
vez que, num plano mágico, o poder fecundador do monarca está ligado à
fertilidade da terra. Donde se conclui que a sucessão por morte fundamenta-se
no princípio da incapacidade, por velhice, de exercer a função real. A razão,
repita-se, é de ordem mágica: quem perdeu a força física não pode transmiti-la
à natureza por via de irradiação, como deveria e teria que fazer um rei.
Eis, em síntese, a visão, a leitura deste mitema por parte
de M-A. Potter e Marie Delcourt.
Com semelhante enfoque, que aliás é lógico do ponto de vista
da autora, ela aproveita para discordar de Sigmund Freud e dizer que o método
de abordagem do mito de Édipo por parte do pai da psicanálise é inteiramente
diverso daquele de Potter. Enquanto este estuda os episódios periféricos do
mitologema, o psiquiatra austríaco se coloca de cheio e de imediato no coração
do problema, que é o conflito.
Para uma ideia mais clara da extensão e profundidade das
consequências de semelhante conflito, passemos em revista o que Freud tem a
dizer a este respeito.
"Se para os modernos o Édipo Rei tem o mesmo fascínio
que para os contemporâneos de Sófocles, o fato decorre não do contraste entre o
destino e a vontade humana, mas da natureza toda particular do material
temático revelador dessa oposição. Talvez em nosso íntimo se faça ouvir uma voz
que nos manda aceitar o poder arrebatador do destino em Édipo, poder que não
nos comove em tragédias outras como Die Ahnfrau.187-[14]Haveria
de fato, na trama de Édipo, um motivo capaz de explicar a força daquele
comando: somos levados a imaginar que a sina de Édipo poderia ter sido a nossa,
e que a maldição do oráculo recaísse sobre nós. É possível que o primeiro
impulso sexual da criança se dirija para a mãe, como para o pai se volta o
primeiro sentimento de ódio, conforme atestam os sonhos. Édipo, que mata o pai
e desposa a mãe, realiza um dos sonhos de nossa infância. Mas nós outros, mais
felizes do que ele, na medida em que não nos tornamos neuróticos, logramos
desviar do alvo materno os impulsos sexuais e nos libertamos do ciúme em
relação ao pai. A nós adultos nos repele o confronto com uma personagem que
realizou um desejo interdito, mas que foi nosso na infância; e tal repulsa se
faz com o mesmo ímpeto com que foram recalcados os anseios infantis. O poeta,
desvendando a falta cometida por Édipo, nos faz voltar os olhos para o nosso
íntimo e reconhecer os impulsos, que sobreexistem, ainda que recalcados. E o
contraste na fala do coro nos atinge, fere o nosso orgulho e abala as certezas
que acalentamos desde a infância:
'Eis Édipo,
que decifrou os famosos enigmas,
poderoso e
invejado de todos. Em que terrível abismo
de
infortúnio sucumbiu!'
Como o próprio Édipo, vivemos inscientes dos desejos que
ferem nossas convicções éticas, aos quais nos sujeita a natureza.
Conhecendo-os, preferimos apagar da memória as cenas de nossa infância". 188-[15]
Comentando essa passagem de Freud, acrescenta Erich Fromm:
"A concepção do Complexo de Édipo, tão magnificamente
apresentada por Freud, tornou-se uma das pedras angulares de seu sistema
psicológico. Aí está, segundo ele, a chave de uma autêntica compreensão da
história e da evolução da religião e da ética. Assegurava que o Complexo de
Édipo constitui o mecanismo fundamental do desenvolvimento da criança, e que
nele estão a causa do desenvolvimento patológico e o 'cerne das neuroses'.
A referência aqui é ao mito de Édipo, tal como o apresenta a
tragédia de Sófocles, Édipo Rei".189[16]
Carl Gustav Jung, sem negar a teoria do Complexo de Édipo,
deu-lhe outra dimensão. "Embora reconhecendo o muito que devia a
Freud", Jung recusou-se a aceitar in
totum a importância exclusiva que o pai da psicanálise atribuía ao trauma
infantil, à preponderância da sexualidade ou à universalização de suas
implicações psicológicas.188.
Na realidade, a diferença entre as concepções junguiana e
freudiana do Complexo de Édipo decorre, entre outros fatores, da revisão da
teoria da
libido.
Vejamos o que nos diz Mallahy ao tratar dessa revisão:
“Em The
Psychology of the Unconscious, surgida em 1912, Jung advoga uma completa
revisão do conceito de libido. Uma visão 'descritiva' ou freudiana é posta em
confronto com uma interpretação 'genética' ou junguiana. Pelo prisma
descritivo, o instinto sexual é apenas um entre muitos, porém dotado de caráter
especial. Neste sentido, a libido pode ser 'deslocada'; e quando represada, é
capaz de refluir para outros canais. Os instintos não sexuais podem receber
'afluxos' da libido.
Pela
interpretação 'genética' considera-se que os múltiplos instintos, inclusive o
sexual, são oriundos de uma como unidade, a 'libido primordial'. A teoria da
evolução sustenta que um sem-número de funções complexas, hoje destituídas de
qualquer caráter sexual, eram originalmente derivações do impulso geral de
propagação da espécie. Na ascensão ao longo da escala zoológica ocorreu um
importante desvio de energia do instinto de procriação. Assim, por exemplo, uma
parte da energia despendida na produção de óvulos e de esperma foi 'transposta'
para a criação de mecanismos de atração e proteção da prole. Tais mecanismos
mantêm-se graças a uma libido diferenciada especial. Classificar de sexual esta
energia deslocada e 'dessexualizada' seria tão impróprio quanto pretender que a
catedral de Colônia, por exemplo, seja uma 'formação mineralógica' só porque se
utilizaram pedras em sua construção". 190[17]
E mais adiante
acrescenta que "Tendo chegado a tal conceito de libido, Jung rejeita
categoricamente a ideia de que atividades tais como a sucção do seio materno
tenham qualquer caráter sexual. Em vez disso, sustenta que durante a lactância
só ocorre a função nutritiva, que a um tempo proporciona alimento e prazer. E
posto que o sugar o seio materno proporciona satisfação e prazer, é petição de
princípio afirmar-se que a sucção tenha caráter sexual. A experiência do prazer,
qualquer que seja ele, não é sinônima de sexualidade ou de prazer sexual. Se
supusermos que o sexo e a fome coexistem lado a lado, estaremos projetando a
psicologia dos adultos na vida mental e na experiência da criança. E se existe algum
instinto sexual nessa quadra da vida, deve tratar-se sem dúvida de um instinto
embrionário. Afirmar que o impulso do prazer tem caráter sexual equivale a
dizer que a fome é também um desejo sexual só porque 'busca' o prazer através
da satisfação".191-[18]
Insistindo em que
a sexualidade do inconsciente é tão-somente um símbolo, e que sua referência é
prospectiva e não retrospectiva, Jung não atribui uma significação muito grande
ao incesto como tal. Refere ele que, "Em princípio, a coabitação 'com uma
velha' dificilmente seria preferida às relações sexuais com uma mulher jovem. A
mãe só psicologicamente parece ter adquirido significação incestuosa".192[19] A
base mesma do desejo incestuoso tem sua origem no anelo de regredir à infância,
ou seja, de retornar ao aconchego da proteção paterna e confundir-se com o
organismo materno para voltar a nascer. Assim, se a um objetivo real
'retirarmos' a libido sem nenhuma compensação 'real', isto é, sem nada oferecer
que ocupe o lugar da libido —processo esse que Jung chama de introversão —as
consequências serão graves e inevitáveis para o indivíduo. A libido, uma vez
recalcada, irá reativar formas prematuras de adaptação à vida. E o adulto,
dessa forma, não irá necessariamente encontrar muitas dificuldades na vida
antes que sejam despertadas as suas mais antigas, inigualadas e imperecíveis
recordações infantis: a primeira e fundamental relação por ele experimentada
com respeito aos pais. Afirma-se ainda que a religião organizada oferece uma
reanimação regressiva e sistematizada da imagem dos pais, ao mesmo tempo
proporcionando uma paz e proteção cuja origem está na experiência pregressa com
os pais. A par disso, os sentimentos místicos religiosos envolvem vivências e
recordações inconscientes aureoladas de ternura que remontam à primeira
infância.193-[20]
O fato de a
Escola de Zurique não atribuir ao incesto um significado especial, como o fez a
Escola de Viena, ou de reinterpretá-lo, não quer dizer que Jung não o aceite.
Muito pelo contrário, ele insiste em que não abandonamos o desejo incestuoso.
"Na religião", diz ele, "e através dos símbolos religiosos,
cometemos inconscientemente o incesto. A religião já não representa mais um
ideal ético; seus símbolos, ritos e cerimônias consubstanciam uma transformação
inconsciente do desejo de incesto. Céu e terra convertem-se em pai e mãe. O
povo existente na terra aparece como filhos, irmãos191.e irmãs. E
assim permanecemos crianças e satisfazemos, sem o saber, os nossos anseios
incestuosos.
A humanidade não
se conforma, sem renitência, em ser despojada da certeza esperançosa da
infância, quando as pessoas vivem como apêndices dos pais, inconsciente e
instintivamente, sem noção consciente do eu. O homem também reagiu com profunda
animosidade à interrupção brutal da harmonia que caracteriza a existência
animal, na qual não vigoram interdições morais de qualquer espécie. E tal
interrupção foi marcada, entre outras coisas, pela proibição do incesto e pelas
leis do casamento".194-[21]
Eis, em síntese,
o que pensa Jung sobre o incesto. Não se trata, portanto, na psicologia
analítica junguiana, de se negar o Complexo de Édipo, mas de atribuir-lhe uma
nova dimensão.
Já Erich Fromm é
por demais severo no julgamento da teoria freudiana. Indaga ele se Freud
"teria razão ao sustentar que o mito (o de Édipo Rei na versão de
Sófocles) confirma a tese de que todo menino acalente desejos incestuosos
inconscientes, com o corolário do ódio ao pai, de modo a confirmar-se a teoria
e justificar-se a denominação de Complexo
de Édipo. Um exame mais detido da questão, no entanto, levanta algumas
dúvidas sobre o postulado freudiano. A questão mais pertinente é a seguinte:
sendo justa a interpretação freudiana, seria de esperar que o mito nos dissesse
que Édipo encontrou Jocasta sem a saber sua mãe, que se tomou de amores por ela
e em seguida matou a quem desconhecia ser o próprio pai. Mas o mito nada revela
nesse sentido, nem nos fornece qualquer indicação de que Édipo tenha sido
atraído por Jocasta ou que por ela se haja apaixonado. A única razão apontada
para o casamento de Édipo e Jocasta é que a rainha, por assim dizer, estava
ligada ao trono. Será lícito, portanto, admitir que um mito cujo tema central é
a relação incestuosa entre mãe e filho omita totalmente o elemento de atração
que deveria aproximar os dois protagonistas? De todos os pontos é esse o mais
importante, sobretudo se nos lembrarmos que, nas versões mais antigas do oráculo,
a predição do casamento de Édipo só aparece mencionado uma única vez: na versão
de Nicolau de Damasco, que no parecer de Karl Robert tem por base uma fonte
relativamente recente.
Ademais, Édipo é
descrito como o herói intrépido e sábio que se converte em benfeitor de Tebas.
Como entender que esse mesmo Édipo pudesse cometer o que aos olhos de seus
contemporâneos era o mais odioso dos crimes? Tem-se respondido que a essência
mesma da concepção grega de tragédia está em que os fortes e os poderosos são
de súbito abatidos pelo infortúnio. Resta examinar se a presente interpretação
é satisfatória ou se outra melhor se nos oferece.
A questão que
acabamos de examinar é suscitada por uma meditação sobre o Édipo Rei. Se
limitarmos o nosso exame a apenas essa tragédia, sem levar em conta as duas
outras peças da trilogia de Sófocles —Édipo
em Colono e Antígona —não chegaremos a qualquer resposta decisiva. Mas pelo
menos nos será possível formular legitimamente uma hipótese: a de que o mito pode ser entendido não como
o símbolo do amor incestuoso entre mãe e filho, mas como símbolo da revolta do
filho contra a autoridade paterna na família patriarcal; e que o enlace de
Édipo e Jocasta vale apenas como elemento secundário, como indicação da vitória
do filho que, ao assumir o lugar do pai, assume também todas as prerrogativas
paternas. (Grifos na presente transcrição).
A validade desta
hipótese pode ser comprovada por um estudo do mito de Édipo em suas múltiplas
versões, e particularmente na versão apresentada por Sófocles nas duas outras
peças que perfazem a trilogia: Édipo em
Colono e Antígona". 195-[22]
Prosseguindo em
sua análise do mito de Édipo em sua crítica à teoria freudiana do Complexo de Édipo, mas agora com base na
"trilogia", Erich Fromm argumenta que o tema fundamental nas três
tragédias é o conflito entre pai e filho, devendo-se, por isso mesmo, descartar
a interpretação freudiana de que o antagonismo entre ambos em Édipo Rei seja a rivalidade inconsciente
provocada pelos "anelos incestuosos de Édipo". Com efeito, se em Édipo Rei este mata a Laio, que tentara
tirar-lhe a vida; se em Édipo em Colono
o mesmo Édipo dá livre curso a seu ódio e rancor contra os filhos Etéocles e
Polinice; se em Antígona está
presente o conflito entre Hêmon e seu pai Creonte; se não existe nenhum
vislumbre de incesto entre os filhos de Édipo e Jocasta e entre Hêmon e sua mãe
Eurídice, deve-se concluir que também em Édipo
Rei o verdadeiro problema é a controvérsia entre pai e filho, e não o
incesto. Aplicando à sua análise a tese brilhante de Johann Jakob Bachofen, Das
Mutterrecht, "O
Matriarcado", em que se estuda o matriarcado como força político-social da ginecocracia, isto
é, do poder senhorial feminino, Fromm infere que a hostilidade pai-filho, que é
realmente uma constante na "trilogia" sofocleana, deve ser
compreendida como uma investida da derrotada ordem matriarcal, representada por
Édipo, Hêmon, Antígona... contra a vitoriosa sociedade patriarcal, alicerçada
em Laio, Jocasta, Creonte...Personagens claramente ligadas às deusas-mães
ctônias, aos lugares a estas consagradas, como o santuário de Deméter na cidade
beócia de Eteono, onde havia igualmente um santuário dedicado a Édipo, ao
bosque sagrado das Erínias, agora convertidas em Eumênides, em Colono, onde por
sinal Édipo desaparecerá tragado pela Terra-Mãe; e ainda à caverna, símbolo do
útero materno, aonde Antígona foi lançada viva.
Não há dúvida de
que a segunda parte do comentário de Fromm está correta quando conclui com
Bachofen que o antagonismo e a hostilidade entre pai e filho (que podem ser
igualmente entre avô e neto, como entre Acrísio e Perseu) devem ser entendidos
como um conflito de gerações, como a luta entre o velho e o novo rei, e
sobretudo como uma contestação do matriarcado agonizante pelo patriarcado vitorioso.
Também aplicamos esta análise à trilogia esquiliana Oréstia e à
"trilogia" de Sófocles acima citada, aliás com base em Bachofen e no
próprio Erich Fromm.196-[23] Este
é, igualmente, o ponto de vista da erudita Marie Delcourt, conforme vimos
expondo. Esta é mais uma leitura entre as muitas que se podem fazer do Édipo Rei, vale dizer, apenas uma das
possíveis interpretações do mito na tragédia, e não uma análise psicológica.
Conrad Stein, que
faz preceder a obra de Delcourt, Oedipe
ou la Légende du Conquérant, de um estudo sobre o
Édipo Rei segundo Freud, fala com muita argúcia da "subordinação da coisa
literária à coisa analítica" 197[24],
já que se está fazendo uma análise psicológica, no caso elaborada por Freud.
Parece que Fromm confundiu as duas coisas.
No tocante à
primeira parte da apreciação do mesmo autor a respeito do Complexo de Édipo, há
uma pergunta que é considerada por ele como muito significativa. Trata-se, o
que é verdade, da ausência total, no mito, de uma atração de Édipo por Jocasta:
se196.FROMM, Erich. a interpretação de Freud fosse correta, como explicar que o
herói se apaixonou pela rainha de Tebas sem saber que a mesma era sua mãe?
Para se responder
a esta pergunta, basta que se faça do mito uma leitura sincrônica. Desaparecendo
a ideia de tempo linear, o mito surgirá como uma totalidade e, admitindo-se que
"os primeiros impulsos sexuais sejam dirigidos à mãe", teremos um
"Édipo permanente". Além do mais, Jocasta figura na análise
psicológica como um τόπος συμβολικός (tópos symbolikós), como um "lugar simbólico", o que,
de resto, neutraliza outra observação sem muito sentido: a de que o herói,
vencedor da Esfinge, teria preferido uma jovem a uma mulher já meio idosa...
Feito este corte,
aliás um pouco longo, mas necessário para se posicionarem divergências e
convergências no tocante ao conflito pai-filho e suas consequências, voltemos à
argumentação de Delcourt.
Opondo-se radicalmente à teoria freudiana, a
pesquisadora belga vai bastante além: insurge-se contra a tese que postula para
o mito uma elaboração inconsciente. Talvez se possa ver em semelhante atitude
uma reação contra a tendência invasora e a popularidade crescente da
interpretação psicanalítica em matéria de mitologia. Suas afirmações, nesse
sentido, são contundentes: "Seja-me permitido dizer, por agora, que, se as
tendências psíquicas fizeram que se fixassem certos temas míticos, por lhes ter
dado vivacidade e uma popularidade excepcionais, eu não acho que essas
tendências psíquicas os tenham criado. Em segundo lugar, em vez de insistir
acerca do ciúme sexual do menino, julgo que se deveria dar ênfase à impaciência
com que o filho adulto suporta a tutela de um pai envelhecido. A hostilidade
entre ambos me parece muitas vezes provocada menos por uma libido recalcada do
que pela vontade de governar. Se isto é correto, temos o direito de associar ao
mito de Édipo outros contos, como o de Pélops, em que um pai luta contra o
pretendente de sua filha. E o tema central, no caso em pauta, não é mais a
justa entre pai e filho, mas um conflito de gerações".198-[25]
Quando, mais
tarde, a temática penetrou no âmbito da família organizada, criaram-se todas as
atenuantes possíveis para transportar o antagonismo entre pai e filho num duelo
de desconhecidos: a criança fora exposta e a morte do pai passou, por isso
mesmo, a ter o respaldo de um oráculo...
Já é tempo,
entretanto, de retomarmos com Édipo a sua (ou nossa?) caminhada fatídica.
5
Temendo que a
previsão da Pítia se cumprisse, horrorizado com a ideia de "matar o
pai" e se unir à própria mãe, por via das dúvidas, "o filho de Pólibo
e Peribéia" (Mérope, segundo Sófocles) resolveu não mais regressar a
Corinto e tomou resolutamente o caminho de Tebas. Esta, no momento, estava
assolada por um grande flagelo. Um monstro, a Esfinge, postada no monte Fíquion,
às portas da cidade, devorava a quantos não lhe decifrassem o enigma, que mais
tarde se transformou em dois enigmas, como se verá, embora só um tenha sido
proposto a Édipo. Muitos jovens tebanos, inclusive Hêmon, filho de Creonte,
irmão de Jocasta e regente do trono desde a morte de Laio, já haviam servido de
pasto à "cruel cantora", assim chamada não propriamente porque
formulasse os enigmas em versos hexâmetros, mas por ser uma alma-pássaro,
segundo se mostrou no Vol. I, p. 247, ela cantava para encantar.
A respeito da
Esfinge já se disse o suficiente no Vol. I, p. 245-252. Ampliaremos um ou outro
aspecto e enfatizaremos unicamente alguns dados, para que se possa dar unidade
ao mitema.
Como se viu no
supracitado Vol., p. 245, houve uma aproximação devida à etimologia popular
entre a Fix hesiódica e
"tebana" e a Esfinge. É que, a par de Φιξ (Phíks), Fix, parece ter existido uma forma
Σφιξ (Sphíks),
Sfix, que, muito cedo, por etimologia popular, à base da simples sonoridade,
passou a fazer parte da família de Σφίγγειν (sphínguein), "envolver, apertar, comprimir,
sufocar", donde o substantivo Σφίγξ (Sphínks) Esfinge.19[26]-9
Esta aproximação "etimológica" contribuiu muito para fazer da
Esfinge um monstro opressor, um pesadelo, um incubo, função que complementa sua
atribuição primitiva que era de alma penada. Consoante Marie Delcourt, o ser
mítico (monstro feminino com rosto e, por vezes, seios de mulher, peito, patas
e cauda de leão e dotado de asas) que os gregos denominaram Esfinge, foi por
eles criado com base em duas determinações superpostas: a realidade
fisiológica, isto é, o pesadelo opressor, e o espírito religioso, quer dizer, a
crença nas almas dos mortos representadas com asas. Estas duas concepções
acabaram por fundir-se, uma vez que possuíam e ainda possuem certos aspectos
comuns, principalmente o caráter erótico e a ideia de que, quando se dominam os
pesadelos, os íncubos e fantasmas, o vencedor recebe, como dádivas dos mesmos,
tesouros, talismãs, reinos e uma consorte real.
A Esfinge é,
pois, a junção de dois aspectos: o pesadelo opressor e o terror infundido pelas
almas dos mortos.
Na realidade, a
Esfinge pertence simultaneamente a duas categorias de seres, que correspondem a
dois enfoques diferentes: irmã de Efialtes, o monstro é um pesadelo, um demônio
opressor; irmã das Sereias, a "cruel cantora" é uma alma penada. Com
efeito, Sereias, Queres, Erínias, Harpias, as Aves do Lago de Estinfalo . ..
são, em princípio, almas dos mortos. Assim como existem várias Sereias, teria
havido várias Esfinges. O mito de Édipo, no entanto, privilegiou de tal forma
uma delas, que as demais caíram no esquecimento. E, por isso mesmo, graças à
literatura, todas as imagens mais ou menos diferentes, relativas à Esfinge,
cristalizaram-se em torno da mulher-leão alada (...). Pois bem, todos esses
seres possuem um traço comum: são ávidos de sangue e de prazer erótico.
Nos monumentos
mais recentes, todavia, a Esfinge aparece sempre associada a Édipo, uma vez
que, nos mais antigos, segundo se mostrou na mesma p. 247 do Vol. I, ela surge
sempre como demônio devorador, erótico e opressor. Foi graças à literatura que
a "cruel cantora" perdeu seu caráter de incubo. Uma nota da Suda, no
entanto, uma passagem dos Sete contra Tebas de Ésquilo e uma referência de
Pausânias ainda nos mostram alguns vestígios do antigo monstro erótico
opressor: na Suda, s.u. Meva^ixal CKPÍYYEÇ (Megarikaì sphíngues),
"Esfinges megáricas", lê-se: "Esfinges megáricas: é assim que
são chamados os prostituídos. Daí talvez o nome de esfinctes com que são designados
os efeminados". Na tragédia de Ésquilo, Sete contra Tebas, 541-543, assim
é descrito o escudo de Partenopeu (um dos sete chefes) que estampava uma Esfinge:
A Esfinge devoradora de carne crua, cuja
imagem,
cinzelada em relevo e fixada por pregos,
brilha intensamente:
a Fix tem sob ela um
dos Cadmeus.
Devoradora e sob ela definem
perfeitamente o caráter antigo do monstro: devorador
e incubo.
Pausânias, na
Descrição da Grécia, 5,11,2, comentando uma composição que decorava os pés do
trono de Zeus em Olímpia, assim se expressa: "sob cada um dos pés
dianteiros (do trono de Zeus) jazem crianças tebanas arrebatadas pelas
Esfinges".
Como se vê, foi a
literatura que transformou a Fix num monstro inquiridor, sem tirar-lhe,
todavia, o apetite...
A presença hostil
da Esfinge às portas de Tebas é diversamente explicada. Consoante Eurípides,
nas Fenícias, 810, foi o deus Hades
ou Plutão quem a colocou ali, fato que lhe marcaria apenas o funesto aspecto da
morte; talvez o responsável tenha sido o violento Ares, ainda irritado com a
morte do Dragão por Cadmo; outros dizem, segundo dois escólios das Fenícias,
934 e 1.031, que foi Dioniso, que jamais perdoou a oposição de Penteu e dos
Cadmeus, "seus irmãos", à penetração do culto do "êxtase e do entusiasmo"
em Tebas...A explicação mais aceita, entretanto, e é a adotada por Apolodoro,
Biblioteca, 3,5,8 e pelo "Resumo de Pisandro", é de que o flagelo
fora enviado pela deusa Hera, a fim de punir o amor contra naturam de Laio
por Crisipo. Desse modo a protetora dos amores legítimos teria imposto aos
Tebanos um Παράνομος έρως (paránomos éros), a saber, um outro "amor criminoso",
um íncubo-papão, que só comia jovens, desde que fossem belos, como foi o caso
de Hêmon, filho de Creonte.
De qualquer
forma, a Esfinge devorava a quantos não lhe respondessem ao enigma proposto.
Com respeito a
enigma, em grego α’ίνιγμα,(aínigma),
do v. αἰνίσεσθαι (ainíssesthai), "falar por meios-termos, dizer
veladamente, ar a entender", significa, etimologicamente, "o que é
obscuro ou equívoco". Consoante Delcourt, o que é uma realidade, os gregos
tinham verdadeira fascinação por enigmas, cuja decifração se transformava nas reuniões
sociais numa demonstração de habilidade e talento. Ateneu (séc. II-III p. C.)
consagrou todo o livro X do Dipnosofistas (Banquete de sábios) à interpretação de
adivinhas.
No tocante à
origem, admite-se que o enigma seja um tema muito antigo, que certamente estava
relacionado com um casamento, já que existem numerosos contos em que o herói
conquista a princesa com resposta precisa a uma questão difícil; mas, assim
mesmo, o enigma seria a terceira etapa, já depurada, de algo muito mais
violento. A primeira seria um corpo-a-corpo com o monstro; a segunda, a posse
sexual, presumindo-se, não obstante, uma luta prévia; e a terceira seria o
enigma. Qualquer das três "provas", todavia, vencido o monstro, dava
ao herói a posse de tesouros, de um reino e a mão da Princesa. Marie Delcourt
acha que talvez a ordem da luta do "incubo
contra o 'conquistador' deveria
ser outra: o sexo, os golpes e a inquirição e acrescenta que é inútil
investigar qual a realidade mais arcaica que se esconde sob o questionamento
imposto a Édipo. Tal interrogatório "faz arte da mitopéia primitiva, que
era bem mais rica do que aquela a que os poetas deram colorido e beleza.
Igualmente, o tema do corpo-a-corpo não é, como eu havia pensado, mais recente
que o amplexo aplicado ao jovem pelo incubo e mais antigo que o enigma. As
velhas tradições ofereciam certamente as três variantes. Os poetas escolhiam
aquela que melhor satisfizesse a seus desígnios".200[27] E,
mais adiante, pondera que o adversário monstruoso é uma soma de significados
superpostos e, no caso específico da Esfinge, essas significações são claras.
Quer se trate de um incubo ou de uma inquiridora, a Esfinge é simultaneamente
uma alma penada. As asas, o talento musical, a ciência e a insaciabilidade
estabelecem sua ligação com o mundo das sombras. Quanto ao combate entre o
jovem e o monstro, Delcourt acredita tratar-se de uma reminiscência de provas
iniciáticas por que passava todo adolescente, reservando-se as mais terríveis e
difíceis para os futuros chefes. 201[28] De
qualquer forma, e esta é a communis opinio,
o tema da Esfinge questionadora só aparece a partir do mito tebano de Édipo e
sua vulgarização se deveu à literatura, particularmente à grande tragédia de
Sófocles, Édipo Rei.
Em geral os
monstros, segundo Delcourt, questionam mais a memória do que a inteligência de
seu interlocutor. Perguntam, as mais das vezes, determinados nomes ou segredos
e, não raro, o herói ou inimigo, para não morrer, deve conhecer "o nome
esotérico de certos seres ou coisas". Frequentemente o questionado deve
saber o nome de seu questionador. Aquele, porém, dificilmente pode ser retido
na memória e é necessário que se tenha muita sorte ou a intervenção de seres sobrenaturais,
para que as sílabas mágicas possam ser lembradas. Mas, se seu nome for
corretamente pronunciado, o monstro desaparece ou é reduzido à impotência.
No mito de Édipo
acontece algo de significativo: a Esfinge não pergunta ao filho de Laio pelo nome
dela, mas pelo dele.
Recordemos o
enigma:202[29]
"Existe um bípede sobre a terra e quadrúpede, com uma só voz, e um
trípode, e de quantos viventes que vagueiam sobre a terra, no ar e no mar, é o
único que contraria a natureza; quando, todavia, se apoia em maior número de
pés, a rapidez se enfraquece em seus membros". A segunda versão, bem mais
simples, é a seguinte: "Qual o animal que, possuindo voz, anda, pela
manhã, em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à tarde, com três?"
Respondendo corretamente que era o homem, Édipo está muito sutilmente
fornecendo não seu nome individual, mas o de sua espécie. Que significaria essa
resposta? Marie Delcourt chama a atenção para o fato de que na palavra Oidípus
em grego compreenderia dípus, "dois pés" e, desse modo, o nome
próprio do iniciando expressaria o nome comum da espécie. Existe igualmente uma
tradição segundo a qual Édipo decifrara o enigma sem pronunciar a resposta: à
pergunta da Esfinge ele tocou a fronte e o monstro compreendeu que o jovem se
designava a si próprio para responder à questão proposta. Nos versos 533-535
dos Trabalhos e Dias, Hesíodo compara o homem idoso e portanto arqueado a uma
trípode, teútouç (trípus), de três pés, que é o homem no seu entardecer:
Então os mortais, semelhantes a um tripé,
com o dorso arqueado e os olhos fincados na
terra,
vagueiam curvados para escapar à branca neve.
É bem possível
que a adivinha acerca de que são dois, três, quatro tenha circulado por longo
tempo antes de penetrar no mito de Édipo, em função da assonância Οἰδίπους (Oidípus), δίπους (dípus), τρίπους (trípus), τετράπους (tetrápus),
isto é, Édipo, de dois, três, quatro pés.203 [30]É
bom relembrar que Ο’ιδίπους (Oidípus),
"o de pés inchados", o deformado, já é um homem τρίπους (trípus),
"de três pés", por apoiar-se num bordão. Jogando com seu próprio
nome, Édipo conseguiu vencer a Esfinge.
De um ponto de
vista simbólico, o enigma pode ser interpretado como uma prova iniciática, uma
vez que, sendo o incubo uma alma penada, tudo o que tange à outra vida, apesar
do pouco que se conhece dos Mistérios, comporta uma série de perguntas e
respostas. O iniciado deverá conhecer o segredo dos nomes e das coisas, a fim
de que possa, em seu longo caminhar através das emboscadas das trevas, sair
para a luz. Outros veem no aínigma a transposição da agonia que acompanha
certos pesadelos e determinados sonhos: como se luta, às vezes, para sacudir o
monstro constritor ou para encontrar, nos sonhos, a palavra certa, decifrar
textos ilegíveis e responder a determinadas perguntas! O alívio do despertar
seria a resposta correta...
Não parece fora
de propósito acrescentar que existem, em todas as culturas denominadas
impropriamente primitivas, enigmas relativos apenas à conquista de uma bela
esposa, como se a mulher já não fosse de per si um aínigma, aliás καλόν ἀινιγμα! Estão neste caso as
questões propostas ao rei Salomão pela rainha de Sabá "que foi
experimentá-lo com enigmas" e "não houve nenhum que o rei ignorasse
obre o qual lhe não respondesse" 1Rs 10,1-3). Ignora-se, infelizmente, o
conteúdo desses enigmas. Sem sair da Sagrada Escritura, pode-se afirmar que, em
geral, os enigmas do Antigo Testamento são propostos sob a forma de parábola,
quer dizer, uma equação entre uma imagem e uma ideia abstrata, muito
semelhantes a sonhos que se devem interpretar, como os que se encontram em Ez
17, Dn 8, Gn 40-41. "Nos tempos modernos", o mais significativo
conjunto de enigmas, com vistas à mão da princesa, é o que a bela Turandot
propunha a seus pretendentes. A quarta narrativa das Sete Imagens de
Mohammed-Yusuf, chamado Nizami de Gangia, autor do século XII, relata a
história da lindíssima Turandot, encerrada num castelo encantado. Seus
pretendentes deveriam reunir quatro condições para tê-la como esposa: ser
honestos, vencer os guardas misteriosos do castelo, apoderar-se de um talismã e
conseguir o consentimento do pai da futura mulher. Muitos já haviam tentado e
seus crânios enfeitavam as ameias do castelo... Um corajoso príncipe, no
entanto, orientado pelos conselhos do pássaro Simurg, conseguiu vencer as três
primeiras dificuldades. O pai consentiu no casamento, desde que o pretendente
resolvesse três enigmas que a princesa lhe proporia. Turandot enviou ao
pretendente duas pérolas. De imediato, este compreendeu a simbologia: "A
vida se assemelha a duas gotas de água" e mandou de volta as pérolas com
três diamantes, o que significava que "a alegria podia prolongar-se".
Turandot devolveu as duas pérolas com os três diamantes, mas acrescentou-lhes
açúcar. A interpretação do herói foi a seguinte: "a vida é uma mistura de
desejos e prazeres". Adicionou leite na caixa em que estavam as joias e a
reenviou à futura esposa com o enigma inteiramente solucionado: "como o
leite absorve o açúcar, assim o verdadeiro amor absorve o desejo". E
Turandot deu-se por vencida.
Acerca desse tema
Cario Gozzi (1720-1806) escreveu uma peça tragicômica em cinco atos, que há de
servir de inspiração à composição musical de Karl M. Weber (1786-1826) e às
óperas Turandot de Ferruccio Busoni (1866-1924) e de Giacomo Puccini
(1858-1924), esta última, aliás, terminada por Franco Alfano e Vicenzo
Tommasini.
Édipo derrotou,
pois, a Esfinge com a resposta: é o homem. A vitória do herói tebano não teve o
auxílio dos deuses: ele a eliminou sozinho. Perseu, na luta contra as Górgonas,
além do cavalo Pégaso e de armas e talismãs que lhe emprestaram os deuses, teve
o respaldo das ninfas; Héracles, na busca dos pomos de ouro do Jardim das
Hespérides, foi assistido por Nereu e Prometeu. Belerofonte o foi por Atená ou
Posídon. Édipo, ao revés, sem a assistência de qualquer deus ex machina, venceu a Esfinge de Tebas, não
porque recebera qualquer auxílio divino, não porque adivinhava, não porque
podia, mas porque sabia. E "sabia demais". Esse tipo de saber, aliás,
provocar-lhe-á a derrocada.
Para se
justificar, todavia, o saber de Édipo não é necessário construir etimologia por
assonância como fazem o seguro Michel Foucault 204[31]
et alii, postulando como primeira parte do composto Οἰδί-πους (Oidí-pus)
a forma Οἰδα (oîda), denominado
"perfeito segundo" Εἰδω (eído),
"eu vejo, eu sei", com cujo infinitivo (F) ιδείν ((F)idêin),
"ver, saber" se relaciona o latim uidëre, "ver". O primeiro
elemento do substantivo Οἰδί-πους (Oidí-pus), Édipo, tem por base o v. οἰδείν (oidêin),
"inchar" e nada tem a ver com oîda, "eu sei".
O próprio título
da grandiosa tragédia de Sófocles, Οἰδί-πους Τύραννος (Oidípus Týrannos), Édipo Rei, conforme acentua Foucault 205[32],
já é um índice de que Édipo, através do saber, chegou a Τύραννος (týrannos) 206[33],
isto é, ao poder. O saber de Édipo é um saber de iniciação e o iniciado triunfa
pelo que sabe e não pelo que pode.
Derrotada, a
"cruel cantora" precipitou-se no abismo. Outras versões dão-lhe um
fim diferente: no lécito (vaso pequeno) chamado de Boston, Édipo liquida o
monstro a golpes de clava ou talvez com seu bordão; num aríbalo (vaso pequeno
semelhante a uma bolsa), encontrado na ilha de Chipre, a Esfinge, caída aos pés
do herói, recebe o golpe de misericórdia; em Apolodoro, 3,5,7,8 e Diodoro, 4,6
ela se mata de desespero.
Com a morte
trágica de Laio, já que o trono não poderia ser ocupado por mulher, no caso
Jocasta, Creonte, irmão da rainha, assumiu o poder. Mas, como a luta e a
vitória sobre um monstro são coroadas com a conquista de um reino e o casamento
com a princesa ou rainha, "o povo tebano" exigiu que o destruidor da
Esfinge, como salvador de Tebas, ocupasse o trono dos Labdácidas. Creonte
facilmente abriu mão do sólio tebano, ou porque se sentisse mais à vontade e
exercesse de igual maneira o poder juntamente com Édipo e Jocasta, sem as
preocupações e apreensões impostas pelo cetro, como ele próprio confessa em Édipo Rei, 581 e 584sqq., ou por
gratidão ao vencedor da "cruel cantora", que lhe devorara o filho
Hêmon. Ao trono se seguiu o casamento com a rainha. .. Nas Fenícias de Eurípides, 47sqq., Jocasta narra como seu irmão Creonte lhe prometera a mão àquele
que decifrasse o enigma da virgem engenhosa e como, por acaso, fora Édipo quem
compreendera os cantos da Esfinge.
Durante anos
Édipo e Jocasta viveram felizes. Se no relato homérico o casal não possuía
filhos, em Édipo Rei tem quatro: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene. Uma
família tranquila, se as Erínias o tivessem permitido... Foi então que novo e
terrível flagelo se abateu sobre a pólis dos Labdácidas.
E as Erínias
de Laio, as terríveis punidoras do sangue parental derramado, por que demoraram
tanto a manifestar-se? Como agudamente observa Marie Delcourt, se nas versões
mais antigas do mito deve ter havido uma luta encarniçada entre Laio e Édipo,
como se explica que este último não tenha sido perseguido pelas Erínias de protegê-los
contra os nobres. A julgar por Atenas (Pisístrato), Corinto (Cípselo), Siracusa
(Hierão) e Samos (Polícrates), a tirania incentivou a agricultura; despendeu
grandes somas em construções públicas, dando oportunidade de trabalho a
centenas de operários; apoiou as competições, incentivou a formação musical e
atlética do povo grego, acolheu em suas luxuosas cortes poetas e artistas.
Psicologicamente, no entanto, como se verá, no caso de Édipo, a insegurança do
poder acabará por destruir o saber do tirano, seu pai, como o foi Fênix (Il.
IX, 454sqq.), pelo simples fato de haver, a pedido de sua mãe enciumada, possuído
a amante do pai? Em Homero, segundo se mostrou, só funcionam as Erínias
maternas, mas Píndaro, nas Olímpicas, 2,3,45sqq. (o que parece ser uma crítica
ao bardo da Ilíada e da Odisseia) faz que as Vingadoras liquidem para sempre os
descendentes masculinos dos labdácidas:
A terrível Erínia viu o parricídio
e fez perecer uma raça destemida:
os filhos de Édipo reciprocamente se deram a
morte."
É que entre Homero e Píndaro a concepção das
Erínias evoluiu: no primeiro elas parecem perseguir apenas aqueles contra os
quais são invocadas; no segundo, converteram-se em potências morais" 207[34],
que punem o sangue parental derramado. Desse modo, "o tema da cólera do
morto, a qual não aparece em Homero, mas que é formalmente sugerida por
Píndaro, ocupa todo o início de Édipo Rei. Por que Tebas novamente é assolada
por uma peste? Simplesmente porque o assassino de Laio não foi punido. Mas quem
é o criminoso? A temática da peça é precisamente a busca do parricida. O
incesto é descoberto por acréscimo. Religiosamente falando, o mesmo não
desempenha papel algum importante na tragédia".208[35]
No auge de sua
realeza e poder, Édipo é convocado pelo povo para novamente salvar a cidade. O
soberano, Cônscio de suas responsabilidades, já enviara seu cunhado Creonte a
consultar o Oráculo de Delfos. A resposta de Apolo foi direta e incisiva: a
nódoa que mancha Tebas é o assassino de Laio, cuja busca e captura são
energicamente ordenadas pelo rei com imprecações aterradoras. Afinal, o
assassino do antigo rei de Tebas é igualmente séria ameaça à pessoa do rei
atual e portanto ao poder. Aliás, no áspero diálogo que Édipo mantém com o
adivinho cego Tirésias, o que sabe, e com seu cunhado Creonte, a ideia fixa do
vencedor da Esfinge é de que Tirésias serve de instrumento a Creonte: ambos desejam
tomar-lhe o poder! É que, não tendo como descobrir quem matou a Laio, Édipo, a
conselho de seu cunhado, mandou vir o mántis,
o adivinho de Tebas, que, mergulhado na escuridão de sua cegueira, tudo sabia
por dádiva de Zeus, embora Sófocles a atribua a Apolo. Tirésias procura
esquivar-se do cerrado interrogatório do marido de Jocasta e só à custa dos
insultos recebidos, acusado que foi de mentor da morte de Laio e de aspirar ao
poder juntamente com Creonte, é que acabou revelando a dolorosa verdade: Édipo
matara o próprio pai e vive em sórdida comunhão com os seres que lhe são mais
caros. Em outros termos, está casado com a própria mãe e é pai de seus
irmãos... O diálogo com Creonte ainda é mais violento. A tônica é sempre a
mesma: a ambição, o mando, a sede do poder cegaram o irmão de Jocasta! Como
judiciosamente enfatiza Foucault "somente em Édipo em Colono se verá um
Édipo cego e miserável gemer ao longo da peça, dizendo: 'Eu nada sabia, os
deuses me pegaram em uma armadilha que eu desconhecia'. Em Édipo Rei ele não se
defende de maneira alguma ao nível de sua inocência. Seu problema é apenas o
poder. Poderá guardar o poder? É este poder que está em jogo do começo ao fim
da peça".209[36]
Guindado ao trono, sem direito "consanguíneo" ao mesmo, mas com respaldo
do povo, por causa de alguma façanha memorável, o týrannos, detentor do saber,
não admite ser despojado do poder, que acaba por cegá-lo, extirpando-lhe o
saber.
Foi necessária a
intervenção enérgica da rainha para que o marido e o irmão interrompessem o
violento duelo verbal em que se empenhavam "acerca do poder", o ponto
nevrálgico da insegurança de Édipo. Procurando tranquilizar o marido, Jocasta
põe em dúvida o saber de Tirésias: afinal o Oráculo não predissera que Laio
seria assassinado pelo próprio filho? Se este, tão logo nasceu, foi exposto, e
se o rei foi morto num trívio por bandoleiros, onde está a veracidade dos
adivinhos, porta-vozes do Oráculo? E acrescenta enfática: "Dessa feita
Apolo não realizou a predição: nem o menino matou o pai, nem Laio foi
assassinado pelo filho, algo terrível que tanto temia" (Édipo Rei,
720-722). A fala da rainha, no entanto, em vez de aquietar, incendiou a alma do
esposo: o rei fora assassinado num trívio... E mais adiante outros pormenores
fornecidos por Jocasta levam Édipo a um quase desespero: a chacina tivera por
cenário a Fócida, na encruzilhada de Delfos e Dáulis; Laio estava, na ocasião
do crime, com uma idade equivalente à de Édipo no momento, era alto, muito
parecido com o rei atual; viajava numa carruagem com uma escolta de cinco
homens e tudo se passara pouco antes de o herói ter sido proclamado rei: as
coincidências eram muito claras: o pavor transtornou a fisionomia do vencedor
da Esfinge! Só lhe restava uma saída, uma derradeira esperança, como ele próprio
confessa (Édipo Rei, 771): o fato fora narrado à rainha e aos Tebanos por um
servo que fugira ao massacre e ele afirmara que o rei e o restante de sua
comitiva haviam sido mortos por salteadores estrangeiros. Se o escravo
confirmasse a versão, o rei de Tebas estaria fora de quaisquer suspeitas. O
rei, porém, não se tranquiliza: quer ver de imediato e interrogar pessoalmente
o escravo de Laio, que estava longe, no campo, pastoreando os rebanhos.
A partir da
concisa, mas clara narrativa de Jocasta, Édipo não mais buscou o assassino de
Laio, mas passou a buscar-se a si próprio. Mordido pela inquietação e o
remorso, desfilou para a rainha um longo flashback, desde sua infância feliz na
corte de Pólibo, em Corinto, até o dia em que, chamado de filho postiço por um
bêbado, decidiu buscar a verdade no Oráculo de Delfos, que lhe vaticinou o
assassinato do pai e o casamento com a própria mãe...Afastando-se o mais
possível de Corinto, matou no trívio a pessoa descrita pela esposa, bem como a
seus acompanhantes...Se o escravo não confirmasse que o rei de Tebas fora morto
por vários assaltantes, estaria condenado a matar seu pai Pólibo e a se casar
com sua mãe Mérope!
Por instantes o
negro céu de Tebas tornou-se azul. Um mensageiro de Corinto (o mesmo que o
recolhera no Citerão) vem anunciar a morte de Pólibo e dizer que o Istmo
inteiro fizera do rei de Tebas o seu rei. E os Oráculos, para que serviam?
Pólibo está morto e não foi pelas mãos do rei dos Tebanos! O júbilo de Édipo é
incontido, mas persiste uma certa preocupação: Mérope, sua mãe, ainda vive,
Jocasta o reanima:
Quanto a ti, não deves temer o conúbio com
tua mãe:
quantos mortais já não compartilharam
em sonhos o leito materno.
(Édipo Rei, 980-982)
Édipo, todavia,
não precisava temer uma possível união com Mérope, pois que esta, segundo o
mensageiro de Corinto, não era a mãe do herói ...Jocasta se retirou. Tudo
estava demasiado claro para ela: enforcou-se no palácio. Édipo foi até o fim.
Só depois de achar-se nos pungentes diálogos com os dois pastores, o de Tebas,
que o expusera, e o de Corinto, que o recolhera, é que se deu por vencido:
Ai de mim! Tudo se desvendou.
Ó luz, oxalá possa contemplar-te pela última
vez!
Ficou bem claro que eu não deveria ter
nascido de quem nasci,
Não deveria viver com
quem vivo e matei
a quem não deveria matar!
(Édipo Rei, 1182-1185)
Como um louco,
penetrando no palácio, onde pendia o corpo de sua mãe e esposa e,
arrancando-lhe das vestes os alfinetes de ouro com que a rainha se adornava,
com eles rasgou os próprios olhos.
Sua súplica
derradeira a Creonte foi que este o exilasse imediatamente.
Eis em síntese a
lindíssima versão poética de Sófocles.
É oportuno
acrescentar que em outras variantes do mito Jocasta não reconhece o
filho-esposo através da narrativa do escravo de Corinto, mas, segundo o
"Resumo de Pisandro", pelo boldrié e pela espada de Laio, que estavam
em poder do mesmo. É sabido que o vencedor se apossava das armas do vencido,
não pelo valor que estas possuem, mas pelo mana
que das mesmas irradia. O infortunado filho de Jocasta, no relato homérico,
segundo se viu, "despojou" a Laio. Outras variantes insistem em que o
reconhecimento se fizera através das cicatrizes dos pés inchados e deformados
de Édipo. No que tange à morte trágica da rainha, Marie Delcourt defende uma
hipótese sumamente interessante: o suicídio da filha de Meneceu teria sido um
ato de vingança contra Édipo. Para a Autora, com efeito, "Epicasta parece
ter-se matado para vingar-se do filho e não por desespero, como a Jocasta
trágica. Como se explicaria tal fato? Um ódio tão grande implica uma mitopéia
diferente da que é relatada pelos trágicos. A Jocasta de Sófocles é antes
mulher de Édipo que viúva de Laio; Epicasta, ao revés, fica ao lado de Laio
contra o filho. Quando se examina mais atentamente o texto homérico, observa-se
que Epicasta desposou o filho sem conhecê-lo, mas nada se diz a respeito da
ignorância de Édipo".210[37] Este,
na Odisseia, é caracterizado como "vencedor maldito", que reina sobre
Tebas "pela vontade funesta dos deuses", mas cujo destino é
"sofrer muitos males".
O suicídio de
heróis e particularmente de heroínas por ódio e vingança é fato comum no mito:
Ájax, que se matara por vergonha e ódio, se recusa, por rancor a Ulisses, a
dirigir-lhe a palavra, quando da invocação dos mortos (Odisseia, XI, 563sqq.);
igualmente Dido, em Vergílio, Eneida, 6, 469sqq., faz ouvidos moucos às ternas
palavras e desculpas de Enéias, cena que parece ser uma imitação da narrativa
homérica citada; também Fedra, por ódio, vergonha e vingança contra Hipólito,
se mata, arrastando o jovem e inocente filho de Teseu a um fim trágico
(Eurípides, Hipólito, 1286sqq.).
Embora, no relato
homérico, Édipo não se cegue e continue a reinar sobre os Tebanos, em Sófocles,
além do exílio solicitado a Creonte e imposto pelas próprias imprecações do
herói no início da tragédia, o filho de Jocasta (Édipo Rei, 1270sqq.) vazou os
próprios olhos, a fim de que os mesmos não
mais lhe testemunhassem as misérias e crimes.
Do ponto de vista
simbólico, todavia, a cegueira que Édipo se infligiu possui um sentido mais
profundo. As trevas externas geram a luz interna. A ἀναγνώρισις (anagnórisis),
"a ação de reconhecer" e de reconhecer-se começa efetivamente a
existir quando se deixa de olhar de fora para dentro e se adquire a visão de
dentro para fora. Mergulhado externamente nas trevas, o herói se encontrou. Se
Édipo, porque sabia, conquistou o poder, a hipertrofia desse mesmo poder
sufocou-lhe o saber. Sua cegueira estabeleceu em definitivo a ruptura entre o
saber e o poder: cego, o herói agora sabe, mas não pode. Não mais, como deixa
claro Foucault, estamos na época dos týrannoi, dos tiranos, mas na era de
Péricles, no século da democracia, que não sabe, mas pode. Tanto que em Édipo Rei os únicos a saber, além dos
deuses e os adivinhos, são os humildes, os pastores, que não podem, mas sabem.211[38]
Por isso mesmo,
em sua tragédia Antígona, que é um confronto entre a consciência individual e o
despotismo sofistico, Sófocles mostrou com muita clareza que a característica
básica de sua personagem central, Antígona, é o direito de opor uma verdade sem
poder a um poder sem verdade. Voltemos, porém, a Édipo. Cego e condenado ao
exílio, mercê de suas próprias imprecações lançadas contra o "assassino de
Laio", o príncipe permaneceu ainda em Tebas por algum tempo. O poder
passou a ser exercido por Etéocles e Polinice, que, por duas vezes, o tendo
desacatado e injuriado, acabaram por ser amaldiçoados pelo pai. Este, além do
mais, vaticinou que ambos morreriam violentamente, lutando um contra o outro,
assunto já tratado na Tebaida e que Ésquilo retomará em sua tragédia Os Sete
contra Tebas. Expulso da cidade pelos filhos, Édipo, guiado por Antígona, errou
por longo tempo através da Grécia, até que um dia, na lindíssima tragédia
imaginada por Sófocles, Édipo em Colono, chegou ao demo de Colono, onde nascera
o grande dramaturgo ateniense. Como nesse "bairro" de Atenas houvesse
um bosque consagrado às Eumênides, o peregrino reconheceu que era este o local
apontado pelo Oráculo como o término de seus sofrimentos e humilhações.
Inteligentemente, Sófocles fez coincidir a chegada de Édipo ao demo ático de
Colono com o início da famosa expedição dos Sete contra Tebas. 212[39]
Como a presença do herói decidiria, consoante o Oráculo, o êxito da luta, Creonte,
em nome dos Tebanos, e Polinice, vêm pedir o auxílio de Édipo. Ao primeiro o
filho de Jocasta repele, tendo a Teseu por protetor, e ao segundo rechaça e
amaldiçoa mais uma vez.
Após prometer a
Teseu, que lhe concedera asilo, a proteção de Atenas contra toda e qualquer
invasão tebana (Édipo em Colono, 605-623 e 1533-1536), uma vez que possuir o
sepulcro do herói significava ter uma muralha inexpugnável contra os inimigos
externos, Édipo se prepara para o grande mergulho.
"Troveja
Zeus ctônio". Após trocar a indumentária, fazer as abluções rituais e
recomendar as filhas a Teseu, encaminhou-se, acompanhado apenas pelo rei de
Atenas, para seu leito de morte: a terra se abriu suavemente e Édipo retornou
ao seio materno. A uma pergunta do corifeu, o Mensageiro dá a seguinte resposta
(Édipo em Colono, 1583-1584):
Corifeu —Morreu o infortunado?
Mensageiro —Saiba que Édipo conquistou uma
vida que não tem fim.
Sofrer para compreender, diria Ésquilo. O Citerão foi redimido por
Colono.
É difícil
"coordenar" o mito de Édipo, por ser ele um daqueles que chegaram até
nós em "transposições literárias". Claude Lévi-Strauss viu bem e
assim expressou o problema: "O mito de Édipo chegou-nos em redações
fragmentárias e tardias, que são todas transposições literárias, mais inspiradas
por um cuidado estético ou moral do que pela tradição religiosa ou o uso ritual,
se é que tais preocupações tenham alguma vez existido a seu respeito".213[40] De
qualquer forma, o mito continua!
Édipo é o herói que
se encontrou na fuga. Perfazendo uma longa caminhada, o filho de Laio e Jocasta
fechou o mandala (termo sânscrito que significa círculo): de Tebas ao Citerão, deste
a Corinto, da corte de Pólibo a Delfos, do Oráculo de Apolo ao trívio, da morte
de Laio ao monte Fíquion, da vitória sobre a Esfinge ao casamento com Jocasta e
do reencontro com o saber ao mergulho final no seio da Grande Mãe, Édipo completou
o círculo urobórico. Everardo Rocha escreveu com propriedade a esse respeito: "Se
quisermos visualizar o percurso traçado pelo caminho de Édipo, fugindo do destino
e reencontrando-o o para dolorosamente e cumpri-lo, podemos perceber que Édipo acaba
por dar uma volta completa num círculo. Sua vida pode ser expressa num esquema circular
que demonstra o paradoxo de sua existência: quanto maior a tentativa de fuga, mais
próximo está o encontro".214[41] O
autor estampou, em seguida, o que denominou "O Caminho de Édipo" e que nós chamaríamos o Uróboro Iniciático de Édipo:
6
O Mito de Édipo215[42] tem
merecidamente recebido múltiplas interpretações. Desde Sófocles, em que a
tragédia "política" Édipo Rei
visaria "também à condenação do týrannos sofista, passando pela versão de
Bachofen, em que se chocam o matriarcado agonizante e o vitorioso patriarcado
até as "versões mais modernas" do ódio e do amor em Sigmund Freud, da
libido primordial em Jung, do mito da origem em Lévi-Strauss, da busca da
verdade em Michel Foucault, o fato é que o mito de Édipo tem sempre alguma
coisa que ainda não foi dita. Basta ler estudos bem recentes, como os que se
estampam em O Enigma em Édipo Rei 216[43]
e nos Cadernos de Psicanálise 217[44] ,
para se concluir que Édipo se transforma como Proteu e se remitifica sempre que
abordado. Cresce, avoluma-se e cada tradução se transmuta em novo mito. Se
Édipo decifrou o enigma da Esfinge, "o homem" ainda não conseguiu
desvendar o enigma de Édipo.
Algo se disse
acerca dos enfoques sobretudo de Freud, Jung, Erich Fromm e Michel Focault, mas
deixamos, de propósito, para encerrar este capítulo, a visão panorâmica do mito
de Édipo elaborada por Paul Diel. Apresentaremos, pois, uma síntese da
interpretação de Diel 218[45],
introduzindo-lhe, todavia, para efeito de maior clareza, algumas alterações e
acréscimos.
"O Oráculo
de Delfos predisse a Édipo que ele mataria o pai e desposaria a própria mãe. A
primeira parte de tão funesto presságio já está presente (substituindo-se pai
por avô) no mito de Perseu; e tudo quanto se disse àquele respeito é válido
igualmente para o mito do infortunado filho de Laio. Por ser o Oráculo
equívoco, isto é, "lóxias", Édipo matará seu pai carnal e toda a
fabulação dramática se baseia neste fato. O herói, todavia, assassinará também
seu pai mítico e é sobre tal simbolismo que se fundamenta o sentido oculto do
mitologema.
Existe,
no entanto, uma diferença fundamental entre Édipo e Perseu. A mãe do primeiro,
Jocasta, não foi fecundada por Zeus. Édipo não é descendente do pai dos deuses
e dos homens, o "enviado" do espírito. A Pítia não diz que ele será
um vingador mítico: a predição permanece equívoca sob esse aspecto, tornando-se
impossível deduzir de imediato se o herói matará o pai mítico sob sua
significação positiva ou negativa.
Mas
Laio, advertido por Apolo e temendo que o filho, uma vez adulto, o depusesse do
trono e assassinasse, mandou expô-lo num monte, com o fito de eliminá-lo. A
exposição, que afasta a criança de seus verdadeiros pais, é o primeiro índice da
importância que os pais míticos, o pai-espírito e a mãe-terra possuirão para
elucidar o sentido velado do mitologema. Uma outra diferença entre Édipo e
Perseu é que Laio, antes de abandonar o filho no monte Citerão, mandou
cortar-lhe os tendões ou perfurar-lhe os calcanhares ".
Já
se viu no Vol. I, p. 335, que também Tifão cortou os tendões dos pés de Zeus,
inutilizando-o por completo. Símbolo típico, o pé configura a alma: seu estado
e sua sorte. O mito compara, destarte, o caminhar do homem pela vida com sua
atitude psíquica. Com efeito, os atributos "ferido, calçado com uma única
sandália" como Jasão, acrescentam ao símbolo uma qualidade particular que
lhe orienta, de modo preciso, a interpretação. É o caso de Aquiles, cujo pé
vulnerável configurava a vulnerabilidade de sua alma: a propensão do herói à
cólera causou-lhe, por fim, a ruína. Toda a força e violência do gigante Talos,
conforme se viu no Vol. I, p. 175, terminaram por completo, quando Medéia,
descobrindo-lhe o ponto vulnerável, cortou-lhe uma pequena veia na parte
inferior da perna.
Os
tendões cortados do herói tebano traduzem, pois, um enfraquecimento dos
recursos da psiqué, uma deformação psíquica que há de caracterizar a vida
inteira da personagem. Diferentemente de Zeus, Édipo permanecerá um mutilado.
Sua alma somente poderá ser curada pela força de Zeus, pai mítico de todos os
homens. O filho de Laio só se reerguerá através do impulso da espiritualização.
Diga-se
aliás, de passagem, que esse reencontro consigo mesmo, essa espiritualização
tão almejada, o herói os conquistou, ao menos dramaticamente, na tragédia de
Sófocles Édipo em Colono. Certamente o "sofrer para compreender"
esquiliano produziu através do autor de Édipo
Rei seu esperado efeito catártico. Veremos isto no fecho desta exposição.
A
importância da mutilação na história do filho de Jocasta encontra-se estampada
no próprio nome do herói. Como se mostrou, Οἰδίπους
(Oidípus) significaria o de pés inchados, supostamente por lhe terem mutilado
os tendões. "Ora, esse pé inchado retrataria a psiqué inflada pela
vaidade, daí a impossibilidade que tem Édipo de perfazer com tranquilidade a
caminhada através da existência: sua alma permanecerá ferida. Ora, o homem
psiquicamente mutilado é o neurótico. Édipo, conforme se verá, é o símbolo heroico
do homem em geral, mais ou menos psiquicamente deformado, oscilando entre
neurose e banalização; e o preço da vitória sobre esta é a queda nas garras da
neurose".
Caracterizado
como um odd number, um aleijado, a situação do herói está perfeitamente
definida. O homem psiquicamente mutilado, cuja psiqué ferida se inclina para a
neurose, é esmagado entre as engrenagens das duas possibilidades que o Oráculo
de Delfos deixou bem claras. Édipo, na realidade, desejava combater e levar de
vencida o espírito negativo, mas seu temor excessivo em face da inclinação
perversa fê-lo fracassar e cair no erro que procurava evitar. Não ousando reconhecer
e confessar a própria fraqueza, atacá-la de frente e sublimá-la, o herói a
recalcou e somatizou. "Sacrificou o espírito positivo, o espírito da
verdade, a verdade em função de si mesmo. O neurótico cometeu, assim, um erro
trágico: tentando fugir do destino, o cumpriu. Símbolo do neurótico, Édipo
converte-se igualmente em vítima do erro trágico: seu pai real, Laio, possui,
do ponto de vista do plano simbólico, o significado da banalização. O herói o
mata por excesso de neurose e converte-se em culpado para com o espírito
positivo.
Perdendo-se
cada vez mais na aventura da existência, 'desposando a Terra-Mãe',
desencadeando, com isso, seus desejos neuroticamente exaltados, ele não
encontra outra saída para escapar ao somatório de culpas, a não ser 'matar' seu
pai mítico sob sua forma verídica: o espírito". O que esperava ser o meio
de escapar à culpabilidade, vale dizer, não matar seu pai real e mítico,
transforma-se no motivo que o conduz ao parricídio. Esperando fugir à Moîra,
não mais regressando para junto do pastor de Corinto, para não matar o próprio
pai, acabará por cumprir inelutavelmente as predições da Pítia.
O
símbolo dos tendões cortados permite, desse modo, precisar a postura espiritual
e mítica do herói, anunciada pelo oráculo. Mas tal configuração traduz
igualmente a atitude de Édipo em relação a seu pai real. "Uma das causas
típicas da neurose é o comportamento dos pais que, incapazes de detectar as
carências psíquicas dos filhos, preparam-lhes as enfermidades da alma. O mito
enfatiza suficientemente a insensibilidade de Laio. Ora, a indiferença dos pais
e, em consequência, o sentimento de abandono por parte da criança, são
precisamente os índices típicos da educação deficiente que altera os dotes da
alma, quer dizer, que 'corta os tendões'. Em cada neurótico as causas da
deficiência se estampam co-determinadas pela história de sua primeira infância.
Édipo, já se mostrou através de uma variante do mito, foi educado fora do lar
paterno por um pastor que o encontrou e adotou como filho. Seu verdadeiro pai,
pela tentativa mesma de fazê-lo perecer, tornou-se responsável e está na raiz
da enfermidade psíquica do filho. Havendo o mito indicado com clareza a marca
indelével deixada por Laio no filho, e tendo sido suficientemente elucidada
pelos símbolos a situação da criança neurótica, pode-se concluir que o pastor
não é mais que o substituto do rei de Tebas. Seu papel de educador não passa de
um fato real sem importância para a simbolização, deixando a fabulação de
insistir sobre o assunto.
Édipo
já adolescente, instruído pelo oráculo da sina que o aguardava e, convencido de
que o pastor era seu pai, o abandonou, temendo ser coagido pela fatalidade a
cumprir a predição. Dirigiu-se para Tebas, onde reinava Laio".
A
região se encontrava devastada pela Esfinge, que devorava a quantos não lhe
decifrassem o enigma. Como todo monstro ou flagelo que assola uma cidade, a
Esfinge traduz os resultados funestos para os domínios de um rei perverso.
Laio, ignorando que a solução do enigma haveria de apontá-lo como culpado,
promete considerável recompensa a quem libertasse a cidade do monstro que a
destruía. Caminhando em direção a Tebas, o herói resolveu enfrentar a 'cruel
cantora'. As circunstâncias portanto de sua decisão não o caracterizam como
herói libertador. Miticamente falando, ele não é um 'enviado da divindade',
pois que, além de ambicionar a recompensa prometida por Laio, não está
revestido da armadura suprema simbolicamente outorgada pelo divino: a força da
espiritualização-sublimação. Sua arma de confiança é a sutileza do intelecto.
Antes
de chegar a Tebas, porém, fugindo ao destino, Édipo está prestes a cumpri-lo.
Passando por um trívio, encontra-se com uma carruagem que lhe barra a passagem.
Profundamente irritado com a ordem de desviar-se, num acesso de raiva, o herói
mata com seu bastão de peregrino o condutor do carro. A façanha está longe de
ser heróica. Édipo ignora que a vítima é o rei de Tebas. Continuando seu
caminho, vai ao encontro da Esfinge; e, consequência muito clara do reino
nefasto, o monstro sobrevive ao rei.
"O
encontro de Édipo com Laio merece um comentário mais preciso. Mesmo que se
levasse em conta apenas o relato mítico, sem aprofundá-lo simbolicamente, a
vaidade de Édipo está bem retratada. A ordem de afastar-se para que a carruagem
do rei pudesse passar o põe de tal maneira colérico, que o futuro rei de Tebas
perde completamente o controle. É de se supor que o rei viajasse sem as
insígnias do poder; caso contrário, Laio estaria acompanhado de sua guarda e a
ação criminosa teria sido repelida ou vingada. Nesse encontro fatídico, por
conseguinte, o rei aparece como 'um qualquer', o que naturalmente intensifica
ainda mais a cólera do jovem príncipe. Em função de seus pés mutilados, o
vencedor da Esfinge não pôde afastar-se com a rapidez ordenada. A enfermidade
contraída em seus primeiros dias de vida desperta com toda a amargura acumulada
e com toda a vaidade gerada pelo recalque da consciência de sua mutilação e de
sua supercompensação imaginativa. Além do mais, ter que ceder sempre 'o
caminho' a não-importa-quem, a todos, enfim, deve ter sido o tormento e a
humilhação mais profunda da criança adotada, mais ou menos tolerada. Se se
substitui o estado de pé mutilado, que impede o filho de Jocasta de ceder
rapidamente o caminho pelo simbolismo da significação psicológica, aparece com
nitidez a situação de um neurótico, não importa qual. Seu ódio latente é
alimentado por sua psiqué mutilada desde a juventude. A incapacidade de
movimentar-se livremente pela estrada da vida, 'a enfermidade', torna-se
suportável tão-somente pelo consolo falso e imaginativo da vaidade. Sua alma
machucada, no entanto, apresenta-se vulnerável a toda e qualquer afronta e nada
fere mais profundamente a psiqué doentia de um neurótico que ser tratada, não
importa por quem, sem a devida consideração. Eis por que Édipo não permitirá
ser tratado com desprezo e responderá a semelhante ofensa com incrível
violência, em razão de um motivo suplementar, que, por mais decisivo que seja,
reflete apenas o outro lado de sua hipersensibilidade nervosa. Tendo decidido
confrontar-se com a Esfinge, Édipo se deleita em sua imaginação por desempenhar
o papel de herói, persuadido de que fadado a escalar o mais alto grau de
realização espiritual: acredita-se um libertador da cidade, símbolo do mundo.
Este é um traço marcante, talvez o mais característico do neurótico
adolescente: reprimido e sofredor em função de sua própria deficiência, projeta
sua enfermidade psíquica no meio circundante, exagerando assim, através da
denúncia, a insatisfação sempre atual da vida humana. Transformando a própria
incapacidade em autossuficiência, arvora-se em um predestinado reformador do
mundo. Explica-se, destarte, por que o herói não cedeu espaço à carruagem de
Laio nem permitiu que o menosprezassem. Afinal, alimenta secretamente o projeto
de realizar o que ninguém tentara antes: defrontar-se com a Esfinge, libertar a
cidade e o mundo do flagelo que os oprimia.
Na
medida em que o monstro configura a culpa do soberano de Tebas, torna-se
patente que 'rei e Esfinge' são, do ponto de vista simbólico, duas figuras que
desenvolvem um mesmo tema. Omito, que o estampa, frisa-lhe a importância por
uma repetição que permite enfatizar a atitude claudicante do herói. Assim, sua
vitória, primeiro sobre o rei, e depois sobre a Esfinge, é um triunfo aparente.
O crime cometido no trívio e a investida furiosa contra o pai configuram, num
plano simbólico, uma primeira alusão ao propósito vaidoso de Édipo de decifrar
o enigma da Esfinge: a culpa de Laio, o erro banal do mundo (...)". Como
toda e qualquer cavidade (antro do dragão, inferno) o trívio é o símbolo do
inconsciente e a luta que ali se trava é projeção de um combate que se
desencadeia no inconsciente de Édipo. Ora, todo conflito psíquico se reduz à
discórdia inicial entre o espírito e a matéria, sublimação e perversão.
Semelhante conflito se resolve no plano da consciência e da função
harmonizante, traduzida pelas divindades olímpicas, pelo auxílio que as mesmas
prodigalizam ou recusam, consoante o mérito do ser humano, isto é, segundo sua
escalada em busca da espiritualização-sublimação. "O crime perpetrado no
trívio, porém, mostra que Édipo está longe de resolver conscientemente seu
conflito intrapsíquico: este, de natureza inconsciente, permanece, por enquanto,
insolúvel. A discórdia inicial, reduzida a um conflito inconsciente,
degrada-se, por efeito da força da exaltação imaginativa, colocando-se entre
dois polos antagônicos: a materialização e a espiritualidade exaltadas, a
primeira pela banalização e a segunda pela neurose. Todo neurótico carrega
secretamente consigo esse conflito, que se pode traduzir pela elevação exaltada
(recalque dos desejos) e queda banal (desencadeamento dos mesmos). O encontro
com Laio configuraria esse conflito 'assassino', a ambivalência perversa que
dilacera a alma do 'coxo', do neurótico? É preciso não perder de vista que a
arma empregada nos combates míticos, no caso em pauta, a arma do crime, possui
uma significação simbólica: a arma caracteriza tanto o herói quanto o inimigo
com que se luta. Uma vez que o adversário mítico reflete o perigo interior do
herói, a arma torna-se representativa da situação conflituosa como as asas para
Ícaro, o escudo para Perseu. A arma do crime assinala claramente a problemática
de Édipo: coxo, o herói precisa de um bastão para permanecer de pé ou caminhar.
Ver-se-á mais adiante, no 'combate' com a Esfinge, que é uma repetição
significativa da luta com Laio, a grande importância desse 'permanecer de pé'.
O bastão serve de apoio ao herói. A muleta corrige de maneira inábil a
enfermidade do pé mutilado: a vaidade, muleta psíquica, é o corretivo
desajeitado da alma mutilada. Édipo, por conseguinte, o neurótico, só permanece
psiquicamente de pé, apoiando-se na muleta de sua vaidade e é esta que o torna
agressivo: usa do bastão-muleta, a vaidade, tanto para atacar quanto para
suprimir em si mesmo, para recalcar, para 'matar' seu próprio adversário
interior, sua própria tentação banal.
Com
efeito, a arma assassina torna-se igualmente característica para o adversário
assassinado. Usado para matar, o bastão se equivale à clava, que traduz
simbolicamente a ruína da banalidade. O rei assassinado com o bastão-clava é o
tirano banal. As desgraças que devastam a região de Tebas, configuradas pela
Esfinge, são a submissão aflitiva e a sedição, bem como os índices da desordem
pública, isto é, a devassidão e a vaidade banal com suas consequências: o
embrutecimento, a preguiça e a intriga. "Simbolicamente, a violência
contra o rei Laio é apenas a caricatura de uma luta heroica, retratando
tão-somente um combate mítico, partícipe de uma significação típica que faz do
perigo interior o monstro ou inimigo exteriormente combatido. A tradução do
mitologema deve eliminar essa exteriorização simbólica, já que, em virtude
desta, qualquer personagem da fabulação perde sua individualidade.
As
ações individuais, quer sejam do herói ou de seus adversários, são apenas um
meio com que se expressa a perspectiva geral do funcionamento psíquico. O
rei-pai converte-se em pai mítico sob sua forma negativa. Mutilador da alma,
ele é o símbolo da alma mutilada do herói. Representante da banalidade
convencional, torna-se a configuração generalizada da tendência à banalização.
Adversário de Édipo, Laio espelha a adversidade interior do mesmo. O rei-pai,
assassinado no trívio, não em virtude de um combate heroico, mas de um crime,
representa a tendência inconsciente de Édipo, do neurótico, que se inclina para
uma desinibição banal.
O
crime traduz a atitude do neurótico relativamente à tentação que o atormenta
(que o tiraniza) e que o mesmo deseja suprimir (matar) por força de sua
exaltação vaidosa para com o espírito. O verdadeiro crime de Édipo tem um valor
simbólico. Ele mata o pai não apenas sob seu aspecto real, mas sob a forma do
pai mítico negativo e o assassina como um coxo de alma, usando seu
bastão-vaidade. O herói torna-se, destarte, culpado para com o espírito e
prepara-se para cumprir o oráculo, não só conforme a aparência da fabulação (a
morte do pai real), mas ainda segundo seu simbolismo profundo.
Disposto
a resolver perversamente o conflito de sua alma, desejando 'matar' sua
contratentação culposa (que sobreviverá como sobreviveu o enigma da culpa do
rei, a Esfinge), o herói avança em direção à aventura decisiva de sua vida.
A
fim de escapar ao tormenta de sua culpabilidade crescente, não lhe resta afinal
outra saída, se não cumprir integralmente o oráculo de eliminar em si mesmo o
espírito acusador, a saber, o pai mítico sob sua forma positiva".
Após
a morte de Laio, um novo elemento de predição oracular, cujo cumprimento é uma
consequência do desaparecimento do rei, domina o mitologema: Édipo desposará
sua própria mãe.
Espalha-se
a notícia da morte do soberano. Sem sucessor, o trono e a mão de Jocasta são
prometidos a quem libertar a cidade do monstro, liberando-a simultaneamente da
desordem e do flagelo.
"Matando
em Laio o reino da perversidade, o herói já venceu a Esfinge, mero símbolo
duplicado da perversidade do rei, configurado em toda a sua monstruosidade.
A
Esfinge, metade mulher metade leão, traduz, desse modo, a devassidão e a
dominação perversa. Em certas representações, a cauda do monstro termina em
forma de cabeça de serpente, espelhando assim, como Quimera, a deformação das
três pulsões. Diferencia-as o fato de que esta última reproduz a exaltação
imaginária dos desejos que destroem a psiqué, enquanto a Esfinge exprime esta
mesma exaltação sob sua forma ativa, ou melhor, banalmente agitada,
convertendo-se no perigo que assola o mundo. Todos os atributos da 'cruel
cantora' são índices de banalização: só pode ser vencida pelo intelecto, pela
sagacidade, contraponto do embrutecimento banal. Sentada num rochedo, símbolo
da terra, prende-se ao mesmo, como se estivesse fixada nele, traduzindo não
somente a ausência de elevação, mas igualmente a indolência e languidez banal
(...). Apesar das asas, ao contrário das de Pégaso, que traduzem a perversão
sublimada, as da Esfinge de nada lhe servem.
Uma
vez derrotada pelo intelecto, decifrado o enigma, a brutalidade não mais dispõe
de assento e a Esfinge é obrigada a lançar-se do alto do rochedo e esmagar-se
contra a terra e, como o mito o relata, o monstro é tragado pelo abismo, outros
tantos símbolos da banalização vencida (...)".
O
enigma, conhecido de todos, é muito simples: "Qual o ser que anda de manhã
com quatro patas, ao meio-dia com duas e, à tarde, com três e que,
contrariamente à lei geral, é mais fraco quando tem mais pernas? "O enigma
da perversidade só poderia ter uma solução: o homem, porquanto é a única
criatura suscetível de perversão. É significativo que no enigma da Esfinge o
homem é considerado como animal. A banalização reduz o homem a seus instintos
mais abjetos, visualizando-o como simples irracional. A brutalização banal
reconduz o homem à besta. Característica de grande importância é que o enigma,
cuja solução é proposta a Édipo, diga respeito ao pé, símbolo da alma, tema
central do mito. O próprio enigma da banalização, do espírito que morre, deixa
claro que o homem deveria estar de pé, acima da animalidade. Ora, Édipo, em função
da enfermidade psíquica, configuração de sua deficiência física, deve ter-se
arrastado por longo tempo, na infância, sobre os quatro membros; e mesmo na
idade adulta não conseguia manter-se de pé. "Mais que homem-herói, um
jovem envelhecido, estado típico de todo neurótico, o filho de Jocasta
defronta-se com a Esfinge e seu enigma da vida, apoiando-se num bastão, seu
terceiro pé. A inquirição do monstro é formulada a cada ser humano, mas é
adaptada particularmente a Édipo: o enigma da banalização alude à enfermidade
do príncipe, índice de sua neurose. As duas deformações psíquicas são
interdependentes e cada uma delas só se torna compreensível em função de seu
complemento. Explicaria tal fato a solução dada por Édipo, ao menos sob sua
forma verbal, ao enigma da vida proposto pela Esfinge, obrigando-a a
precipitar-se do rochedo?
A
verdade é que todo neurótico pressente o perigo da banalização, mas só o
entrevê afetivamente por excesso de aversão canalizada sobretudo contra a
banalização convencional. O conhecimento afetivo encontra-se em todo neurótico
mais ou menos intelectualizado e delineia com frequência os fundamentos de sua
concepção de vida. Nada exaspera tanto o neurótico quanto o comportamento do
homem convencionalmente banal e coisa alguma realça e infla tanto o potencial
de sua vaidade quanto o cotejo permanente de si mesmo com sua 'contra-imagem'
perversa, desagradável e igualmente desvalorizada. O neurótico, ao mesmo tempo
em que condena o banalizado, ataca e 'mata-o' incessantemente pelo excesso de
sua desvalorização. Esse conhecimento íntimo do enigma da banalização,
atribuído à clarividência parcial da aversão excessiva, tem seu fecho na
percepção puramente verbal e intelectual, desprovida de qualquer força de
liberação (...)
".Édipo,
o neurótico, não percebe que o enigma da Esfinge alude à sua própria
deformação, não se dando conta de que ele mesmo é o homem que deve ficar de pé,
para que se chegue à verdadeira solução da pergunta da Esfinge. Para
compreender perfeitamente não apenas o enigma da banalização, bem como a mais
enigmática verdade da vida ocultando mesmo, era necessário que o herói tivesse
uma visão mais penetrante do que a de sua afetividade intelectualizada, vale
dizer, o espelho do espírito, arma outorgada simbolicamente pela divindade, a
força da espiritualização-sublimação. "Só a clarividência do espírito
poderia revelar a Édipo que o enigma da Esfinge é o reflexo de sua própria
fraqueza, de sua falta vital. Dela o herói permanecerá vítima, apesar de sua
vitória aparente sobre a banalização convencional e seus reflexos: o rei
culpado e a imagem monstruosa do mesmo, a Esfinge".
Com
a morte de Laio, o trono de Tebas está vago. Por força da vitória aparente
sobre o monstro, o herói adquire o direito de ocupá-lo, como libertador de
Tebas. Assumindo o poder, Édipo se casa com Jocasta.
Realizou-se,
no mito, a segunda parte da predição oracular.
"Consoante
o sentido latente, no entanto, o cumprimento do oráculo não se teria devido a
um simples acidente, mas ao desenvolvimento da atividade sublime ou perversa do
herói. O incidente 'casar-se com a mãe' é unicamente o índice simbólico dessa
atividade, o índice revelador de sua sublimidade ou perversidade. No plano
simbólico, a rainha-mãe deve possuir uma significação miticamente profunda. Se
Laio configura o pai mítico sob forma negativa, o espírito pervertido, Jocasta
espelha a mãe mítica, a terra, mas igualmente sob forma simbolicamente
negativa. 'Desposar a mãe' torna-se sinônimo de apego excessivo à terra. Édipo
liga-se à Terra-Mãe, símbolo, no caso, dos desejos exaltados. Elevado ao poder,
o herói defronta-se com a alternativa secreta de sua vida: o enigma subjacente
de toda a sua existência, o conflito intrapsíquico entre a neurose e a
banalização não pode tardar a encontrar sua solução perversa ou sublime. O
simbolismo da mãe desposada denuncia a natureza perversa da solução. Uma vez o
trono, o filho de Laio julga que poderia realizar o sonho de sua adolescência:
acredita-se o libertador sublime da cidade, símbolo do mundo. Seduzido,
todavia, pelo poder, concretiza apenas o sonho perverso, conseguindo liberar
unicamente seus próprios desejos. Fracassa, desse modo, precisamente numa
perversidade que, por estar carregada de traços dionisíacos e titanescos, é apenas
uma forma dessa mesma banalização que o ímpeto da juventude desejou combater.
Desposando a Terra-Mãe, ele continuará a matar o pai mítico, o espírito: esta é
a significação legal do oráculo e o caminho para sua realização integral.
Édipo, entretanto, não resiste à tentação do poder. Abraçando-o em sua mãe,
tradução dos prazeres, não o fará como Laio, homem banal, mas como alguém
inibido por sua própria culpabilidade recalcada. A desordem e o flagelo
continuarão a prosperar na cidade. Discórdia e ciúme a devastarão, não mais
semeados pela intriga banal, mas pelo capricho, a instabilidade, a carência de
continuidade e unidade de direção, características do neurótico. O monstro
vencido é substituído por novo flagelo. A peste assola a cidade, símbolo das
consequências funestas da perversão, que arruína o país".
Tirésias
proclama que a peste, que dizima a cidade, aponta para um grande criminoso
oculto. A opinião do vidente é mais de ordem mágica que mítica e não abrange em
toda a sua profundidade a significação latente e psicológica. A culpa de um só
homem, por mais grave que seja, não provoca a desgraça de um país, a não ser
que o culpado seja o soberano e a mazela uma consequência de seu governo. Cego
por sua vaidade, o rei não pode e não quer compreender uma verdade tão clara e
terrível. Para salvar a cidade, ordena a busca do criminoso.
Através
desse ato, a história de Laio se repete e se reflete na história do filho. O
comportamento de Édipo é apenas uma variante do de Laio, em idêntica situação.
Foi este último quem propôs uma recompensa àquele que decifrasse o enigma.
"Este é comparável ao 'espelho da verdade', em que todo homem deveria se
reconhecer. A Esfinge, aparentada com a Quimera, lembra igualmente Medusa. A
solução de seu enigma chama-se 'homem', todos os homens, inclusive Laio e Édipo.
O enigma de cada uma das formas da perversão, retratada pelos monstros míticos,
visa em primeiro lugar a um homem preciso, aquele que desejaria vencer o
monstro e que, seduzido e cego pela vaidade, será devorado. Para ser psicologicamente
concreta e vitalmente eficaz, a solução adequada não é o homem em geral, nem
tampouco todos os homens. O enigma aponta pessoalmente para cada ser humano. A
solução é 'eu mesmo'. Cada homem em diferentes níveis é presa do espírito
perverso, a vaidade cega. 'Resolver o enigma' converte-se destarte em sinônimo
de 'conhece-te a ti mesmo'. É a significação do sorriso da Esfinge,
simultaneamente misterioso e irônico.
Como
outrora diante do enigma da Esfinge, Édipo, agora, face ao novo flagelo, a
peste, desconhece a alusão pessoal que o designa em primeiro lugar. A exemplo
de Laio, o novo rei deixa a outrem a tarefa de esclarecer o novo enigma. Ao
contrário, porém, do banalizado convencional, o neurótico, mesmo quando se banaliza,
prossegue, do mais recôndito de sua psiqué, a sofrer com sua culpa. Recalcada,
esta conserva uma certa tendência a escalar novamente o consciente e exigir sua
própria dissolução. A história mítica do neurótico seria incompleta se ela
negligenciasse o mais significativo dos conflitos, a luta entre a tendência ao recalque
e a tendência à sublimação.A psiqué neurótica mantém-se, em realidade, ininterruptamente
atormentada por causa da indecisão desse conflito. Segundo sua própria
natureza, o mito, imagem condensada da realidade, concentra essa luta no episódio
final do desfecho.
As
pesquisas realizadas não tardam em se orientar e a apontar o verdadeiro culpado.
Começa então o processo de Édipo, processo psicológico de transformação da
culpa secreta em verdade exteriorizada, que coloca o herói diante de sua plena
responsabilidade".
Surgem
indícios de todas as partes, acusando a Édipo. O tormento da culpabilidade
começa a manifestar-se gradualmente, revelando-se ao herói sob sua forma
monstruosa. A visão de seu próprio erro se lhe impõe tão subitamente, que o rei
de Tebas se torna incapaz de suportar a terrível verdade. Se, na realidade, ele
era um filho adotivo, segundo afirma o pastor que o socorreu, se o homem assassinado
no trívio era seu pai, a rainha desposada seria sua mãe e o oráculo se teria
realizado por acaso e ele seria, ao menos, uma vítima inocente. Mas o que o rei
não pode admitir, mercê do estado enfermo e aterrorizado de sua alma e da vaidade
cega, é a culpabilidade essencial, cujo símbolo é sua sorte exterior.
Conforme
este sentido profundo, o destino do filho de Jocasta não um mero acaso, mas consequência de uma falta.
A verdadeira causa do horror e do desespero que dele se apossaram se deve ao
fato de que tudo aquilo que lhe foi revelado, abstração feita da cortina
simbólica, resultou de sua própria vontade: Édipo matou o espírito, a fim de
usufruir os prazeres terrenos. Traiu o que julgava ser a mola-mestra da vida:
as aspirações de sua juventude.
O
adivinho Tirésias, representante da verdade, porque enviado do espírito, acusa
publicamente o rei e obriga-o a reconhecer os próprios delitos, para que a cidade
se purifique e se livre da peste. Édipo o expulsa. A mãe-esposa Jocasta, em face
da tremenda revelação, se enforca. Do ponto de vista simbólico, a morte da Terra-Mãe,
configuração dos desejos exaltados, significa que os prazeres terrenos abandonam
a Édipo, que, inibido pelo horror, não mais consegue usufruí-los. O rei, no
entanto, continua a questionar e recusa não mais a realidade de sua falta, mas
o reconhecimento da mesma. Teima em fechar os olhos do espírito.
"O
espelho da verdade é colocado diante dele, mas, em vez de reconhecer o erro, o
herói rasga os próprios olhos. Este gesto, expressão do desespero levado ao paroxismo
é ao mesmo tempo a recusa definitiva de ver. Estanca-se a visão interior. A
falta é recalcada em lugar de ser sublimada. O remorso e o pânico não mais
puderam transformar-se em arrependimento salutar. A cegueira vaidosa é completa,
a luz interior se extingue, morre o espírito. Édipo mata o pai mítico, não apenas
sob forma negativa e de maneira simbólica, como fez com Laio; mas, liquidando
em si mesmo a visão da verdade, o herói aniquila o espírito positivo e o assassina
realmente. O filho de Jocasta mata o 'pai de todo homem' assim chamado pelo
mito, porque é o espírito que dá sentido e direção à vida humana.
É
somente neste momento que, consoante seu significado profundo, o oráculo se
realizou plenamente".
A
profunda verdade psicológica do oráculo, porém, não se esgotou no cumprimento
de uma das duas soluções possíveis da situação conflitante do neurótico. A história
mítica deste último permaneceria incompleta se ele espelhasse unicamente o
quadro dos estados sucessivos da perversão, negligenciando a possibilidade de
saná-la.
Édipo
realizou exteriormente o destino predito, mas trata-se de um neurótico que continua
a viver e a sofrer. É precisamente a amplitude de seu desespero em face dos
erros cometidos que se mostra propícia a estimular o retorno para um impulso
sublime, o único capaz de fornecer o remédio. A condição da cura é a
transformação do remorso estéril em arrependimento salutar, da cegueira
recalcada em lucidez interior. Como já se viu muitas vezes, o mito costuma
concentrar duas significações em uma só imagem. A interpretação deve, por isso
mesmo, para evitar arbitrariedade, seguir métodos extremamente precisos. Não só
a introdução de duplo sentido deve partir da imagem mítica, mas, além disso, as
duas significações devem ser diametralmente opostas, completando-se pela
analogia de contraste. Mais que tudo, a introdução do significado complementar
há de seguir a exigência indiscutível de um índice fornecido pelo mito.
Todas
essas condições se acham perfeitamente realizadas no simbolismo dos olhos
vazados, havendo assim necessidade de inversão da situação primeira. Configurando
o remorso estéril e a cegueira recalcada, o símbolo do vazamento dos olhos
exprime com precisão igualmente o significado oposto de um despertar do
arrependimento salutar e da lucidez introvertida. Nessa acepção, Édipo fura os olhos
por arrependimento sublime de se ter abandonado, de haver assassinado o espírito
e de haver desposado a terra, cujos olhos comtemplam tão-somente a sedução.
Cega-se para afastar-se do mundo e de suas seduções, para mergulhar em si
mesmo, a fim de se reconciliar com o espírito traído.
Esta
segunda interpretação é indiscutivelmente exigida pela variante do mito que
relata ter sido Édipo, cego, conduzido por Antígona para Colono, onde se encontrava
o santuário das Eumênides.
A
configuração do refúgio no bosque dessas divindades é, em sentido profundo, a repetição
do motivo simbólico dos olhos vazados. Tal reiteração enfatiza a importância da
dupla significação. Essas deusas "benevolentes" traduzem, na
realidade, um aspecto simbólico de dupla interpretação, cujo significado oculto
torna-se idêntico àqueledos olhos furados. O aspecto complementar da imagem
"Eumênides" é representado pelas Erínias. Aquelas são Erínias, sob o
aspecto benfazejo. As Erínias espelham a culpa recalcada e destrutiva, o
tormento do remorso; as Eumênides traduzem esta mesma culpa, mas conscientizada
e assumida, convertida em sublimidade produtiva e arrependimento liberador. O
simbolismo que substitui aquele dos olhos furados assinala pois que o doente da
alma, o neurótico, cego pelo recalque, atormentado pela culpa, perseguido pelas
Erínias, não pode curar-se a não ser que se torne cego para as seduções e se
conscientize da culpa. Em termos simbólicos, o culpado liberta-se da culpa, das
Erínias, refugiando-se junto às Eumênides, cujo santuário em Atenas possuía o
mesmo poder salutar que o templo de Apolo com sua divisa: Conhece-te a ti
mesmo. A imagem mítica, colocando Édipo em Colono, mostra que o herói, embora simbolicamente
cego para o mundo, tornou-se realmente lúcido em função de si próprio.
Vencedor
perverso da perversidade, acabou por triunfar de maneira sublime do próprio
perigo, a perversão. Refugiado em Colono, mata o pai mítico em si mesmo, o
espírito perverso, e desposa a mãe mítica sob sua forma inocente. Sobrepuja a
determinação oriunda das circunstâncias de sua infância e supera o destino
anunciado pelo oráculo, realizando simultaneamente a predição, compreendida
como símbolo mítico, em toda a amplitude de sua significação oculta.
Símbolo
do neurótico e de seus conflitos, bem como do homem capaz de desvario e de regeneração,
Édipo, arrastado por sua fraqueza na queda, mas arrancando deste mesmo
desmoronamento a força da elevação, acabou por tornar-se uma imagem de herói
vencedor. Mergulhando no seio da Grande Mãe, Édipo afinal se encontrou. De
flagelo de Tebas transformou-se em Ἥρως (Héros), em "protetor", em
defensor de Atenas.
"Os
deuses gregos não eram bons nem justos, eram belos", diz com muita profundidade
o Dr. Paulo Blank. Quem sabe, porém, se esses mesmos deuses, quando o mortal se
encontra, deixam de ser apenas belos, para se tornarem também bons e justos?
173. As fontes mais antigas que se conhecem
acerca de cada um dos labdácidas, exceto as que se referem a Édipo, são as que
se seguem. AGENOR: Heródoto, Histórias , 2, 44; 4,147; 6,46sqq; Apolodoro, Biblioteca,
2,1,4; 3,1 Histórica,; Diodoro Sículo, 5,59,1sqq; Pausânias, Descrição da
Grécia, 5,25,12; Ovídio, Metamorfoses, 2,838; 3,51,97,257; Higino, Fábulas, 6,178,179.
CADMO: Homero, Odisseia, V, 333sqq; Hesíodo, Teogonia, 935sqq; Píndaro,
Píticas, 3,152sqq; Olímpicas, 2,38sqq; Heródoto, Id., 4,147: Eurípides,
Fenícias, 822sqq; 930sqq; Bacantes, 1330sqq; Apolônio de Rodes, Argonáuticas,
4,516sqq; Apolodoro Id., 3,1,1; 4,1; 5,2; 5,4sqq; Diodoro Sículo, Id.,
4,2,1sqq; 5,47sqq; 48; 49; 5,59,2sqq; Estrabão, Geografia, 1,46; 7,326; Nono, ;
10,17,4; 35,5; Ovídio, Id., 3,64sqq; 4,563sqq; Higino, Id., 6,178; 179.
POLIDORO: Hesíodo, Id., 978; Heródoto, Id., 5,59; Eurípides, Fenícias, 8;
Bacantes, 43; 213; Apolodoro, Id., 3,4,2; 3,55; Diodoro Sículo, Id, 4,2; 19,53;
Nono, Id., dionisíacas, l,140sqq; 350sqq; Pausânias, Id., 3,1,8; 15,8; 24,3;
4,7,8; 7,2,5; 9,5,lsqq; 10,1; 12,lsqq; 16,3sqq; 26,3 -5,210sqq; 46,259;
Pausânias, Id., 2,6,2; 9,5,3sqq; Higino, Id., 179. LÁBDACO: Sófocles, Édipo em
Colono, 221; Antígona, 594; Heródoto, Id., 5,59; Eurípides, Fenícias, 8;
Apolodoro, Id., 3,5,5; Pausânias, 2,6,2; 9,5,4sqq; Higino, Id., 76. LAIO:
Sófocles, Édipo Rei, passim; Heródoto, Id., 5,59sqq; Eurípides, Fenícias,
passim; Apolodoro, Id., 3,5,5; 7sqq; Plutarco, Vidas Paralelas, 33; Pausânias,
Id., 4,8,8; 9,2.4; 5.6-12; 15; 26,3-4; 9,5,2; 3; 5; 6; 10,5,3-4; Estácio,
Tebaida, 7,354sqq; Higino, Id., 9; 66; 76.
233
174 . Lico,
segundo se viu linhas acima, era irmão de Nicteu e, portanto, tio da lindíssima
Antíope, a quem Zeus, sob forma de sátiro, fez mãe dos gêmeos Anfião e Zeto.
Grávida e porque temia a cólera de Nicteu, fugiu de casa e refugiou-se em
Sicione, na corte do rei Epopeu. Desesperado com a fuga da filha, Nicteu, após
encarregar a seu irmão de vingá-lo, matou-se. Lico marchou contra Sicione,
matou Epopeu e levou Antíope de volta a Tebas. Foi na viagem de Sicione a
Tebas, em Elêuteras, que as crianças nasceram. O regente de Tebas mandou
expô-las numa elevada montanha, mas os pastores bocais as recolheram e criaram.
Em Tebas, Antíope foi acorrentada e era tratada como escrava. Certa noite, no
entanto, as correntes caíram-lhe misteriosamente das mãos e a princesa foi em
busca dos filhos e os encontrou numa humilde choupana. Não a tendo reconhecido,
entregaram-na a Dirce, esposa de Lico, a qual lhe fora ao encalço. Um dos
pastores, que os havia recolhido, revelou-lhes a identidade de Antíope; e os
gêmeos, após libertarem a mãe, assassinaram a Lico e Dirce, apossando-se do
trono de Tebas. Por causa da morte de Dirce, Dioniso enlouqueceu Antíope, que,
ferida da mania báquica, percorreu a Grécia inteira, até que foi curada e
desposada por Foco, herói epônimo da Fócida.
[4]175
Na evocação dos mortos, Odisseia 280, Ulisses, entre muitos outros eídola, viu
também o da mãe de Édipo. Vale a pena traduzir os dez hexâmetros de Homero: Vi
também a mãe de Édipo, a bela Epicasta. Ela, sem o saber, cometeu um grande
crime,casando-se com o filho, que a desposou após matar e despojar o pai.
Os
deuses rapidamente fizeram que a notícia circulasse entre os homens. Édipo,
todavia, apesar de tantos sofrimentos por funestos desígnios dos deuses,
continuou a reinar sobre os Cadmeus, na muito amada Tebas. Ela, porém, desceu à
mansão de Hades, de sólidas portas, depois de atar, dominada pela dor, um laço
a uma alta viga,
deixando
ao filho, como herança, inúmeros sofrimentos com que as Erínias punem os
delitos cometidos contra uma mãe.
176. LÉVI-STRAUSS,
Claude. Antropologia Estrutural Um. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976, p.
250.
[8]179.
DELCOURT, M. Op. cit. p. 20, citando M. Fohalle e confirmando-lhe a opinião com
a autoridade de Antoine Meillet (Introductíon à l'étymologie comparée des
langues indo-européennes, p. 99) lembra que a vogai a, relativamente rara em
indo-europeu, figura principalmente em nomes de caráter popular, e, em
particular, em nomes de enfermidades.
180.. O escólio (comentário para esclarecer
um texto clássico) aos versos 26 e 28 das Fenícias diz: "Relata-se que
lançaram Édipo no mar, após ter sido colocado num cofre; ele chegou a Sicione e
lá foi criado" (v. 26). "Contam alguns (mitógrafos) que, lançado no
mar dentro de um cofre, o menino foi dar nas praias de Corinto" (v. 28). A
Fábula 66 de Higino reza assim: "Periboca, esposa do rei Pólibo, quando
estava lavando roupa junto ao mar, recolheu, com o consentimento do marido, a
Édipo que havia sido exposto".
183. Esse Menetes ou
Menécio talvez fosse uma personagem do Édipo de Eurípides e figurasse em alguma
mitopéia influenciada por Édipo Rei, porque raramente os trágicos dão nomes a
personagens episódicas, cuja presença serve apenas à economia da peça, exceto,
como frisa Delcourt, se esses nomes equivalem a um adjetivo, como Copreu ou
Lico.
184.Md., p. 26.
187 Die Ahnfrau, "A Avó", peça em
cinco atos do dramaturgo austríaco Franz Grillparzer (1791-1872). Trata-se do
que se convencionou chamar drama fatalista (Schicksalstragödie). Nessas
tragédias fatalistas, o deus ex machina, uma
espécie de fatalidade cega, como a Moîra grega, pesa sobre as personagens como
verdadeira maldição. Na peça em apreço estão presentes todos os ingredientes do
gênero: "a falta, o parricídio, o incesto possível, o bandido
cavalheiresco e, mais que tudo, o espectro de uma avó que aparece cada vez que
uma desgraça atinge a família". Trata-se, com efeito, de terrível flagelo
que atingiu a família dos Condes de Borotin. Uma antiquíssima avó do último
Conde de Borotin foi surpreendida pelo marido e apunhalada nos braços do amante
e, por isso mesmo, todos os seus descendentes, até o último, pagarão pelo
adultério cometido. O fantasma da avó não descansará, enquanto toda a família não
for exterminada.
195.
Só se pode falar de trilogia aqui no caso, latissimo sensu, ao menos
cronologicamente, uma vez que Antígona
talvez tenha sido encenada entre 442-441 a. C; Édipo Rei talvez após 430 a. C. e Édipo em Colono o foi em 401 a. C, após a morte do poeta. Ordenando
as três tragédias "tematicamente" em Édipo Rei, Antígona, Édipo em
Colono, poder-se-ia, assim mesmo, lato sensu, chamá-las uma trilogia. Veja-se a
análise que fizemos desta "trilogia" em Teatro Grego, Tragédia e
Comédia, Petrópolis, Editora Vozes, 1986, p. 45sqq.
203. Vamos
apresentar duas versões do célebre enigma: a primeira, dos inícios do séc. IV
a. C, é a mais antiga de que se tem notícia até o momento; a segunda, tardia, é
uma redução didática da anterior. No século IV a. C, Teodectes, poeta que se
tornou famoso na época, substituiu em sua tragédia Édipo o enigma das fases da
vida pelo do Dia e da Noite, segundo o testemunho de Ateneu, Dipnosofistas,
10,451f: "São duas irmãs: a primeira gera a segunda e esta, que a gerou, é
gerada pela primeira". A resposta é o Dia e a Noite, devendo-se, porém,
recordar que 'Hμέρα (Heméra), Dia, e Νύξ (Nyks), Noite, são
femininos em grego e que, na Teogonia de Hesíodo, segundo se mostrou no Cap.
IX, p. 191, Vol. I, o Dia é gerado
pela Noite e esta, em seguida, é
parida pelo Dia.
212. . Etéocles e Polinice haviam combinado
que cada um ocuparia alternadamente por um ano o trono de Tebas. Findo o
primeiro ano, Etéocles se recusou a entregar o poder a seu irmão Polinice,
originando-se daí a chamada expedição dos Sete contra Tebas. Sob o comando de
Adrasto, sogro de Polinice, sete heróis empreenderam uma expedição contra
Tebas, na qual, como profetizara Édipo, morreram lutando um contra o outro
Etéocles e Polinice.
215 . Acerca especificamente de ÉDIPO, as
referências e fontes mais antigas são basicamente as citadas no corpo do
Capítulo. Vamos reuni-las para efeito apenas de consulta. Homero, Il. XXIII,
676sqq: Od. XI, 271sqq; Píndaro, Olímpicas, 2,42sqq; Ésquilo, Sete contra
Tebas, 745sqq; Heródoto,5,59; Sófocles, Édipo Rei, passim; Édipo em Colono, passim;
Eurípides, Fenícias, 7sqq; 940sqq; Apolodoro, Biblioteca, 3,5,7sqq; Diodoro
Sículo. Biblioteca Histórica, 4,64sqq; Estrabão, Geografia. 8,380; Pausânias,
Descrição da Grécia, 1,28,7; 30,4; 2,20,5; 36,8; 4,3,4; 8,8; 5,19,6; 9,2,4;
5,10sqq; 9,5; 18,3sqq; 25,2; 26,2; 4; 10,5,3sq; 17,4; Higino, Fábulas, 66; 67;
Estácio, Tebaida, 1,61; Ateneu, Dipnosofistas, 10,456b.
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