O monge era extremamente idoso. Beirava um século. E era,
principalmente, muito amado entre o povo da região. Ninguém sabia com segurança
de onde viera.
Um dia, ninguém sabe exatamente quando, ele apareceu nas
ruínas de uma velha fazenda abandonada, naquela região muito pobre, de
agricultores de origem europeia...
Segundo, pretensamente, teria revelado a um professor que o procurara, havia
nascido em lugarejo distante, entrara para a Ordo Cartusiensis, cujos membros são conhecidos também como
monges Cartuxos, que o haviam enviado à Europa onde se preparara para a
vida monástica. Ninguém sabia se continuava ou não ligado a essa entidade.
Para aquele povo simples, nada disso tinha importância
alguma. Com o passar dos anos, como o monge se mantivesse em silêncio absoluto,
como é característica de sua ordem religiosa, ninguém mais o procurava. Apenas
se dirigiam em alguns domingos para o pátio da casa em que ele habitava e
oravam, pois não havia sacerdote na região. Depois, iam-se silenciosos.
Ele nada dizia, porém, sua fama de milagroso e santo crescia
como os arbustos das canhadas crescem, sem que ninguém tome cona deles.
Numa manhã chuvosa, sentado sobre o banco tosco que há muito
construíra em sua saleta rústica, investigava sua própria caminhada
existencial.
Seu pai fora um pequeno proprietário rural, cujo sonho era
ser dono de uma fazenda de mil bois. Tudo o que adquirira, depois de anos e
anos de trabalho duro e dezesseis filhos pobres e semianalfabetos, fora um
pequeno sítio para vinte bois, que suas economias jamais conseguiram lotar.
Emagrecido, alquebrado, com a desilusão na pele e na alma, aguardara
a morte que o haveria de colher com pouco mais de sessenta anos, mirrados e
sofridos.
A pobre mãe, antes sonhara com um dos moços que vira na
cidade. Depois, conformara-se com aquele pobre coitado. E, de degrau em degrau,
fora diminuindo a altura do patamar de seus sonhos. E acabara ali, naquela
choupana miserável, as mãos grossas e calejadas, cercada por aqueles pobres
filhos do desalento, quase sem sonho, esperando o fim inexorável dos
desgraçados todos, ou melhor, de todos nós.
De há muito, Domingos se havia dado conta da
irreversibilidade daquela história. Quando completara doze anos e havia
concluído a escola local, mal sabia ler. Ao visitar a cidade mais próspera dos
arredores, em companhia do pai, viu uma igreja grande e maravilhosa. Jamais
havia contemplado uma construção que se lhe assemelhasse.
Numa distração do pai, que bebia um aperitivo amargo num
bar, o menino correu e embrenhou-se no templo. Atravessou a nave central pelo
comprimento, subiu as escadas ao redor do altar e penetrou na sacristia, em que
os monges se preparavam para o ofício, em canto gregoriano.
Ninguém lhe respondia... até o momento em que um velho monge
apiedou-se dele e o chamou de lado. Explicou-lhe, de modo que sua inocência pudesse
compreender, o que fazia e o que era um monge. Ele simplesmente afirmou que
desejava ser monge.
Naqueles tempos, sem controle nem organização social
suficiente, foi recebido na comunidade, que necessitava de sangue jovem. Nos
primeiros anos, foi aprimorado no estudo e nas línguas e, depois, enviado à
França, onde fez iniciação monástica, numa Cartuxa das montanhas alpinas.
O pai nunca mais soube do menino. Chorou sua perda e foi amaldiçoado
pela esposa pelo resto de seus anos, por ter perdido, para sempre, seu filho mais
velho.
O menino julgou sua nova situação maravilhosa. O que seria
considerado penoso por um jovem urbano de seu tempo, para ele, comparando-se a
situação contemporânea à de sua miserável vida rural, era paradisíaco.
Dedicou-se com todas as suas energias à vida religiosa e aos estudos. Quem o
visse, então, nem mesmo que fosse sua mãe, jamais o reconheceria em seu burel
monástico, branco, de uma alvura celestial.
Monge Cartuxo em oração |
Em poucos anos, tornou-se um especialista em latim, grego e também
em alguns idiomas modernos. Pela sua dedicação e pela integridade de seus atos,
havia, mesmo da parte de seus superiores, uma grande expectativa em relação a
seu futuro, quando revelou a seu abade o desejo de retornar ao próprio país.
Porém, desejava viver isolado, como os antigos anacoretas do
deserto. Depois de muito insistir, esse desejo lhe foi satisfeito. Pois, nessa
ocasião, fixou-se na tapera onde vivera até então, orando e trabalhando, para
prover as próprias necessidades.
Pois, nessa manhã chuvosa, rememorava a vida pregressa e
seus ideais de vida. Também tivera sonhos a começar pela perspectiva paterna,
cuja desilusão foi rápida e irreversível.
Entre os monges, fora gradativamente mudando suas
expectativas, e o espírito se lhe fora transformando no homem simples e santo, que era no momento, embora, em sua contemplação simples da vida e do mundo, não
se considerasse mais do que um homem perfeitamente comum.
Nas proximidades da residência rústica que ocupava, havia um
mato que, pela aclividade do terreno, tornara-se praticamente impetrável.
Domingos andava não mais do que duzentos metros mata adentro e, cercava-o, quase
uma completa escuridão.
Ali permanecia, por horas, sentado sobre um penedo agreste,
recoberto de musgo verde-escuro, orando ao Senhor e agradecendo a bênção de ser
tão feliz, sem necessidade de nada nem de ninguém para viver.
Numa tarde quente de verão, reinava um ar deleitoso na
selva, refrescante e silencioso. Habituara-se, o monge, a perceber mesmo as
mais débeis manifestações dos elementos naturais. Eram os quase imperceptíveis
estalidos dos minúsculos pecíolos secos que se rompiam. O débil esvoaçar de um
minúsculo inseto entre as ramagens. O deslizar de um réptil sobre o folhedo
seco do solo macio.
De repente, quase lhe causando espanto, num ramo muito
próximo de sua cabeça, começa o trinado festivo de um minúsculo pintassilgo.
Tamanho era o silêncio geral, que o redobrar do canto pássaro tornava-se quase
agressivo à sensibilidade da aguda adição do monge, já tão habituada ao
silêncio e à solidão.
Tão perfeitamente harmonizado estava àquele meio, que entendeu
completamente a manifestação do pássaro e sua profunda felicidade, que compartilhou
com ele a própria existência.
Esse trinado era a manifestação da energia universal, movendo a ação sonora do pássaro, que
vibrava nos ares e nas folhagens dos arredores. De um momento, as manifestações
todas do universo invadiram sua alma. Percebia as correntes aquáticas que se
movimentavam no interior das rochas a seus pés.
O crescer de todas aquelas plantas, com a seiva fluindo em
energia e cor, ecoava em seus ouvidos. O perpassar das ondas de todas as
naturezas, que ligam os astros entre si e perpassam o âmago de todas as coisas, vibrava nas entranhas do monge. A luz que o rodeava, apesar de seus olhos
cerrados, penetrava-lhe a cútis, percebendo-se rodeado de raios brilhantes.
As correntes de energia solar alimentavam seu corpo todo e
moviam seu espírito, num estado de profundo êxtase. Passou-se o tempo longamente, sem que o monge Domingos o percebesse.
Quando, muito tempo depois, o povo sentiu a ausência dele, passou a procurá-lo. Abriram os aposentos que o abrigavam. Nada.
Passaram a vasculhar os arredores, encontrando-o, então, petrificado e imóvel, sob
o tosco assento do rochedo. Os primeiros que o viram, afirmavam que de seu
corpo expandiam-se vibrações luminosas. Seu túmulo, no topo da colina, é
visitado por muitos romeiros, que leem sua saga e invocam seu auxílio.
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