Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
BOA-NOITE
«Veux-tu donc partir? Le jour est encore éloigné;
C'etait le rossignol et non pas l'alouette,
Dont le chant a frappé ton oreille inquiète;
Il chante la nuit sur les branches de ce
grenadier,
Crois-moi, cher ami, c'était le rossignol.» (Shakespeare)
BOA-NOITE, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em
cheio.
Boa-noite, Maria! É
tarde... é tarde...
Não me apertes assim
contra teu seio.
Boa-noite!... E tu dizes —
Boa-noite.
Mas não digas assim por
entre beijos...
Mas não mo digas
descobrindo o peito,
— Mar de amor onde vagam
meus desejos.
Julieta do céu! Ouve... a
calhandra
Já rumoreja o canto da
matina.
Tu dizes que eu menti?...
pois foi mentira...
... Quem cantou foi teu
hálito, divina!
Se a estrela-d'alva os
derradeiros raios
Derrama nos jardins do
Capuleto,
Eu direi, me esquecendo
d'alvorada:
"É noite ainda em teu
cabelo preto..."
É noite ainda! Brilha na
cambraia
— Desmanchado o roupão, a
espádua nua —
O globo de teu peito entre
os arminhos
Como entre as névoas se balouça
a lua...
É noite, pois! Durmamos,
Julieta!
Recende a alcova ao
trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas
cortinas...
— São as asas do arcanjo
dos amores.
A frouxa luz da
alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus
contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus
pés divinos
Ao doudo afago de meus
lábios mornos.
Mulher do meu amor! Quando
aos meus beijos
Treme tua alma, como a
lira ao vento,
Das teclas de teu seio que
harmonias,
Que escalas de suspiros,
bebo atento!
Ai! Canta a cavatina do
delírio,
Ri, suspira, soluça,
anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite
ainda.
Que importa os raios de
uma nova aurora?!...
Como um negro e sombrio
firmamento,
Sobre mim desenrola teu
cabelo...
E deixa-me dormir
balbuciando:
— Boa-noite! —, formosa
Consuelo!..
Antônio de Castro Alves |
Este poema foi
publicado por Castro Alves, em Espumas Flutuantes, no mês de agosto de 1868.
Comentário:
A epígrafe do poema de Castro Alves é de Shakespeare, porém
da tradução francesa do grande dramaturgo inglês.
Numa tradução livre, veja-se, em português:
“Queres ir? O dia está longe. É o canto do rouxinol e não o
da cotovia que tocou teu ouvido preocupado. Ele canta na noite nos ramos da
romãzeira. Creia-me, querido amigo, que é o rouxinol.”
O poema Boa-Noite, como está acima, foi publicado em 1868,
no livro “Espumas Flutuantes” única obra de Castro Alves publicado em vida, e
narra através de um diálogo (com características de monólogo) uma aventura
amorosa que se desenrola em dez estrofes, de quatro versos cada, onde percebemos o
envolvimento lírico do poeta com a (s) amada (s) através dos ritmos e formas da
natureza, que testemunham e fundam o drama da separação dos amados, no domínio
do tempo, entre a escuridão da noite e os primeiros raios da aurora.
O momento em que a cena se desenvolve é fundamental, pois
toda a aventura amorosa acontece entre a luz da noite e a luz do dia, entre o
fim da noite e o raiar da aurora. Trata-se de um instante fugaz: no tempo da
noite, aparece o cabelo negro da amada, que se desdobra em quatro (Maria,
Julieta, Marion e Consuelo).
O próprio título do poema, Boa-noite, funciona, pragmaticamente,
na ocorrência do poema, como um gesto dúbio de despedida, que pelo conjunto das
circunstâncias, apela mais para uma circunstância de perda, de morte. Essa
circunstância é anunciada já pelos versos da epígrafe de “Romeu de Julieta”, de
Shakespeare, em que retrata a primeira fala de Julieta, na cena V, do drama shakespeariano,
reforçada pelo sobrenome de Julieta, ou seja, Capuleto, e confirmada ainda pelo
verso que descreve a natureza: “negro e sombrio firmamento”.
Na cena do drama de Shakespeare a que o poema alude, conhecida
como “o jardim de Capuleto”, Romeu se apressa em ir-se embora, uma vez que o raiar do dia se aproxima. Fica evidente que
Castro Alves apela para a mesma circunstância, o encontro furtivo entre os
amantes, cuja morte está prestes a acontecer.
Esse apelo instaura as ações de ambos os textos nas mesmas
circunstâncias, em que amor e morte são propostos como tema central, ou talvez,
melhor dizendo, instaura a ação do poema de Castro Alves nas mesmas
circunstâncias da tragédia do dramaturgo inglês.
No verso: “São as asas do arcanjo dos amores.”, o poeta traz
à cena a imagem de Eros, a divindade grega do amor em sua dimensão de
incompletude. O deus grego é filho do deus Poros, a abundância, e da mendiga Penia,
a extrema carência. A circunstância apela para a imagem de um amor que se nutre
da abundância, mas que traz em si, intrínseca e inexoravelmente, uma eterna carência, relembrando que o amor
carnal é marcado por exuberante copiosidade, mas apela para uma eterna
ausência de completude da mendicância perene.
Essa realidade da natureza de Eros no amor humano é
reforçada no seguinte verso: “Mar de amor onde vagam meus desejos.” O mar é
metáfora do perene movimento de inquietude e insatisfação eterna.
O poeta busca, então, figuras suaves nas estrofes a seguir:
na terceira, em que o canto da calhandra é comparado ao hálito da amada; na quarta
estrofe, na qual o cabelo preto é a noite; na quinta estrofe, em que o peito é a
lua; na sexta, na qual as cortinas são as asas do arcanjo dos amores; na sétima,
onde a lâmpada lambe; na oitava, onde das teclas dos seios saem harmonias e
escalas de suspiros; e, por fim, na décima e última estrofe aparece o cabelo da
amada apontado como um negro e sombrio firmamento, conforme já foi mencionado anteriormente. É um conjunto de magens, produzindo um cenário de sensualidade e morbidez, a um só tempo.
O poeta trabalha, neste poema, com quatro figuras femininas que se resumem
numa só. Primeiramente, emprega a imagem de Julieta, a suicida personagem de
Shakespeare, desde a epígrafe. Retoma essa imagem no interior do poema
explicitamente em Capuleto, sobrenome da jovem.
Ainda na primeira estrofe, introduz o nome de Maria, que
envolve as mais míticas lembranças, desde a sagrada virgem, até as tantas
outras que a história apresenta. De modo donjuanesco, o poeta, eu seu eu
poético, assume-se amante de múltiplas mulheres na imagem das multifacetadas personagens, da santa à cortesã.
Apresenta também a figura de Marion. Trata-se de Marion
Delorme, sensual musa inspiradora tanto do poeta francês Alfred de Vigny,
quanto do narrador romântico Victor Hugo. Era uma ilustre cortesã francesa,
rica, bela, religiosa e mística. Teve muitos amantes de prestígio, entre os
quais se destaca o rei Luís XIII. Suicidou-se com uma dose de antimônio na
idade de apenas 36 anos.
A outra figura feminina é Consuelo, uma cantora lírica. Na
realidade, Consuelo é, a um tempo, personagem e título de um romance da
renomada escritora francesa George Sand, pseudônimo da feminista do século XIX Amandine
Lucie Aurore Dupin. A narradora ter-se-ia fixado em uma cantora real de seu
tempo, cujo nome seria Pauline Viardot. Representa, na narrativa da romancista,
o triunfo da pureza moral sobre as múltiplas tentações.
O conjunto de sensualidade, necessidade de partir e desejo
de permanecer com a amada envolvem o poema todo. Ao mesmo tempo em que esse
amor que se manifesta por uma e por múltiplas mulheres esconde um secreto
anseio de morte que perpassa o espíritos dos poetas românticos do século XIX. Erotismo,
volúpia e morte são traços permanentes do poema.
Há uma profunda paixão física, carnal e espiritual, que
envolve prazer e dor, alegria e sofrimento, porque é sempre incompletude erótica.
Eros herdou de seu pai Poros a abundância do amor e do desejo, mas de sua mãe
Penia a carência e a incompletude. Nesse “pathos”, que é, simultaneamente,
prazer e dor, gozo e sofrimento, enquanto vive a sensação amorosa do presente,
pressente a morte inevitável que o espreita na curva desconhecida do destino.
Essa duplicidade mantém o poeta numa tensão entre a realidade e a demência.
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