Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
À beira do Sena, no anoitecer |
Uma dúvida atormenta muita gente na hora de empregar os
artigos indefinidos (um, uma) ou definidos (o, a), especialmente no interior de
uma narrativa.
Para esse emprego, há uma norma geral: Sempre que se
introduz um elemento novo na narrativa, esse deve vir precedido de artigo
indefinido. Exemplificando: “ ‘Um’ homem saiu de Jerusalém para Jericó e caiu na
mão de ‘uns’ ladrões, ...” O artigo é ‘um’, indefinido, porque se trata de
um homem qualquer, até então desconhecido na narrativa. Seguindo a narrativa,
aparece: “Por acaso, a seguir ‘um’ sacerdote passou pela mesma estrada...”.
Também o artigo é o indefinido ‘um’, porque também o sacerdote é novo na
história,
Porém, na sequência da narrativa, o narrador afirma: “... ‘o’
sacerdote viu ‘o’ infeliz, olhou-o, sentiu compaixão dele, mas seguiu seu
caminho...”. Agora, na narrativa, aparece o artigo indefinido ‘o’. Quando o
artigo ‘o’ precede sacerdote, deve-se empregar este definido porque se trata do
mesmo sacerdote já apontado na parábola. Da mesma forma, o artigo ‘o’, que precede
o termo infeliz, refere-se a um elemento conhecido na história, porque o
emprego do artigo não se fixa a um termo e, sim, à sua representação no texto.
Infeliz é uma anáfora de homem, já empregado anteriormente nessa narrativa. (Para
quem não é da área da linguagem, lembremos que a anáfora é a retomada de um
mesmo elemento já citado com um termo diferente, com o intuito de deixar a
narrativa menos monótona.). Esse é apenas um princípio geral: não é absoluto, nem observado por todos os grandes narradores, como se verá mais adisnte.
Abaixo, exponho uma narrativa minha, já publicada em outro
espaço, com os artigos em destaque através de aspas:
Minha avó me contava, e isso
por vezes sem conta, como o exigem as crianças, a lenda de ‘uma’ menina que ia
para ‘o’ armazém, com ‘um’ pote de leite à cabeça, como o faziam todas ‘as’
meninas desses velhos tempos. E eu visualizava ‘a’ garota... ‘os’ pés descalços...
‘os’ cabelos ao vento... ‘o’ pote... ‘o’ leite branco...
Sonhava, dizia vovó, que eu sei, também sonhava muito com seus mais de setenta,
pois venderia ‘o’ leite, compraria vinte ovos, chocaria n‘a’ carijó, teria em
breve vinte pintinhos doirados, trocaria ‘os’ frangos por ‘um’ roliço leitão...
e, em breve, teria ‘uma’ vaca com ‘um’ lindo bezerrinho... e apressava ‘o’
passo, acelerando ‘o’ sonho...
De repente, ‘um’ desnível do caminho, e lá se foram pote e sonho... e
assim quantas meninas e meninos quebraram seus potes vida afora pelos séculos
dos séculos...
O primeiro ‘uma’, referindo-se a menina é indefinido porque
essa menina é um elemento novo em minha história. Veja-se que a palavra avó, se
viesse precedida de artigo, deveria ser o definido ‘a’, pois ela é avó, do
narrador, portanto definida em relação a ele. O artigo ‘o’, precedendo armazém,
esta definido pela menina, pois ancora-se no fato de ser armazém frequentado
por ela.
Mas vejamos mais adiante: ‘os’, precedendo pés e cabelos,
são definidos porque estão contidos na menina; uma vez definida a menina,
define-se tudo o que está nela, são definidos ancorados na palavra menina. O mesmo
vai ocorrer com ‘o’ referente a leite, ‘a’ referente a carijó, e ‘os’
referentes a frangos.
Já, ‘um’ leitão, ‘uma’ vaca, ‘um’ bezerrinho, são elementos
novos introduzidos na narrativa.
Temos, porém, o espaço do contraditório. A narrativa acima
insere-se no modelo tradicional do gênero narrativo. No entanto, há autores
contemporâneos, como Luis Fernando Verissimo e Millôr Fernandes, que não seguem
esses princípios e constroem narrativas de enorme prestígio. Veja-se a fábula
abaixo de Millôr, em Novas Fábulas Fabulosas: (O menininho... Este emprego já
não está de acordo com o que a regra propõe).
A MORTE DA TARTARUGA - Millôr Fernandes
O menininho foi ao quintal e voltou chorando: a tartaruga
tinha morrido. A mãe foi ao quintal com ele, mexeu na tartaruga com um pau
(tinha nojo daquele bicho) e constatou que a tartaruga tinha morrido mesmo.
Diante da confirmação da mãe, o garoto pôs-se a chorar ainda com mais força. A
mãe a princípio ficou penalizada, mas logo começou a ficar aborrecida com o
choro do menino. "Cuidado, senão você acorda o seu pai". Mas o menino
não se conformava. Pegou a tartaruga no colo e pôs-se a acariciar-lhe o casco
duro. A mãe disse que comprava outra, mas ele respondeu que não queria, queria
aquela, viva! A mãe lhe prometeu um carrinho, um velocípede, lhe prometeu uma
surra, mas o pobre menino parecia estar mesmo profundamente abalado com a morte
do seu animalzinho de estimação.
Afinal, com tanto choro, o pai acordou lá dentro, e veio,
estremunhado, ver de que se tratava. O menino mostrou-lhe a tartaruga morta. A
mãe disse - "Está aí assim há meia hora, chorando que nem maluco. Não sei
mais o que fazer. Já lhe prometi tudo mas ele continua berrando desse
jeito". O pai examinou a situação e propôs: - "Olha, Henriquinho. Se
a tartaruga está morta, não adianta mesmo você chorar. Deixa ela aí e vem cá
com o papai". O garoto depôs cuidadosamente a tartaruga junto do tanque e
seguiu o pai, pela mão. O pai sentou-se na poltrona, botou garoto no colo e
disse: - "Eu sei que você sente muito a morte da tartaruguinha. Eu também
gostava muito dela. Mas nós vamos fazer para ela um grande funeral".
(Empregou de propósito a palavra difícil). O menino parou imediatamente de
chorar. "que é funeral?" O pai lhe explicou que era um enterro.
"Olha, nós vamos à rua, compramos uma caixa bem bonita, bastante balas,
bombons, doces e voltamos para casa. Depois botamos a tartaruga na caixa em
cima da mesa da cozinha e rodeamos de velinhas de aniversário. Aí convidamos os
meninos da vizinhança, acendemos as velinhas, cantamos o "Happy
Birth-Day-To-You"pra tartaruguinha morta e você assopra as velas. Depois
pegamos a caixa, abrimos um buraco no fundo do quintal, enterramos a
tartaruguinha e botamos uma pedra em cima com o nome dela e o dia em que ela
morreu. Isso é que é funeral! Vamos fazer isso?" O garotinho estava com
outra cara. "Vamos papai, vamos! A tartaruguinha vai ficar contente lá no
céu, não vai? Olha, eu vou apanhar ela". Saiu correndo. Enquanto o pai se
vestia, ouviu um grito no quintal. "Papai, papai, vem cá, ela está
viva!" O pai correu pro quintal e constatou que era verdade. A tartaruga
estava andando de novo, normalmente. "Que bom, hein?" - disse -
"Ela está viva! Não vamos ter que fazer o funeral!" "Vamos sim
papai" disse o menino ansioso, pegando uma pedra bem grande - "Eu
mato ela!"...
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Veja-se, quem escreve bem,
ultrapassa padrões, modelos e regras. Parece-me que o ‘o’, artigo definido que inicia
a narrativa de Millôr cria a sensação de que é uma sequência narrativa que se
iniciou anteriormente, sendo, essa introdução aparente, um segmento dando continuidade à fala.
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