sábado, 9 de agosto de 2014

LITERATURA DO RIO GRANDE DO SUL - João Simões Lopes Neto (1865-1916)


Há um escritor gaúcho João Simões Lopes Neto (1865-1916) produziu literatura regionalista de alta qualidade. Suas obras mais conhecidas são os Contos Gauchescos e as Lendas do Sul que se diferenciam apenas pelo tom, os contos são de tom sério e as lendas, de tom humorístico. Escolhi para divulgasr neste espaço a lenda O Papagaio.

- O PAPAGAIO

O reverendo padre Bento de São Bento — que o senhor talvez conhecesse, não? — Era um santo homem paciente — paciente! paciente! — como naquela época não houve outro.
Nos circos de borlantins muita coisa curiosa tenho apreciado: cachorros sábios, cabras que fazem provas, cavalos dançarinos e burros que, a dente, pegam o palhaço pelo... atrás das pantalonas. Mas a paciência para esse ensino não se pode comparar com a do reverendíssimo.
O padre Bento, farto de aturar sacristães, e não querendo estragar a sua paciência, que lhe estava na massa do corpo, resolveu dizer as suas missas... sozinho.


Preparava as galhetas, o missal etc. Depois, pachorrentamente paramentava-se e pachorrentamente esperava a hora de oficiar. Chegada a hora, encaminhava-se para o altar, e começava e concluía, parte por parte, tudo muito em ordem.
Mas o filé, o bem bom, era quando entrava a ladainha. Ele cantava o nome do santo e uma vozinha esquisita, porém, muito clara, respondia logo: ora pro nobis! E os fiéis, em seguida, pela pequena nave afora: ora pro nobis!
Dessas ladainhas assisti eu a muitas na capelinha de São Romualdo, que era próxima à nossa casa, na vila de...
Agora: sabem quem cantava as ladainhas do padre Bento?
Era o Lorota, um papagaio amarelo, criado na gaiola e muito bem falante...
Com ele me diverti muitas vezes:
— Lorota, dá cá o pé!
E ele, ensinado pelo padre, correspondia, amável.
Coitado!
O padre morreu, o Lorota, não tendo mais a quem dar contas, fugiu.
Passaram-se os anos.
Uma vez, estava eu na serra, numa espera de onça, quando senti, confesso — não medo, mas um arrepio... de frio — quando ouvi, das profundezas do mato, uma ladainha religiosa. E pausada, afinada, bem puxada, em suma!
Seria um sonho? Estaria eu errado na tocaia das onças, e em vez de estar na floresta cheia de bichos ferozes, estava na vizinhança d'algum convento, d'alguma capela, d'alguma romaria?
E a ladainha, compassada e cheia, vinha-se aproximando:
— Bento São Bento.
— Ora pro nobis.
— Santo Atanázio.
— Ora pro nobis.
— São Romualdo.
— Ora pro nobis.
Eu mergulhava os olhos por entre os troncos, os cipós e as japecangas a ver se bispava uma cor de opa, uma luz de tocha, uma figura de gente. Nada!
Nisto, a ladainha pousou nas árvores, por cima de mim. Pousou, sim, é o termo próprio, porque quem cantava era um bando de papagaios e quem puxava a ladainha era o papagaio do padre Bento, era o Lorota!
A paciência do bicho... Ensinar direitinho, aos outros, a cantoria toda!
Pasmo daquele espetáculo, e duvidando, quis tirar uma prova real. Perguntei para cima:
— Lorota? Dá cá o pé!
Pois o papagaio conheceu a minha voz, conheceu, porque logo retrucou, com a antiga resposta que ele sempre me dava:
— Romualdo é bonito! Bonito!...
E para obsequiar-me fez um — crrrr! — como aviso de comando, e recomeçou a ladainha:
— Bento São Bento.
— Ora pro nobis.
— Santo...
Nisto tremeu o mato com um berro pavoroso... O Lorota e seu bando bateram asas. Eu olhei em frente: a sete passos de distância estava agachada, de bocarra aberta, pronta para o salto, uma onça dourada, uma onça ruiva, uma onça de braça e meia de comprido!
E na aragem do mato ainda soou um vozerio distante:
— Bento São Bento.
— Ora... pro... nobis...
— São... Ro... mual... do...
— Ora... pro... nobis...


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