Há um escritor gaúcho João Simões Lopes Neto (1865-1916)
produziu literatura regionalista de alta qualidade. Suas obras mais conhecidas
são os Contos Gauchescos e as Lendas do Sul que se diferenciam apenas
pelo tom, os contos são de tom sério e as lendas, de tom humorístico. Escolhi para
divulgasr neste espaço a lenda O Papagaio.
- O PAPAGAIO
O reverendo padre Bento de São Bento —
que o senhor talvez conhecesse, não? — Era um santo homem paciente — paciente!
paciente! — como naquela época não houve outro.
Nos circos de borlantins muita coisa
curiosa tenho apreciado: cachorros sábios, cabras que fazem provas, cavalos
dançarinos e burros que, a dente, pegam o palhaço pelo... atrás das pantalonas.
Mas a paciência para esse ensino não se pode comparar com a do reverendíssimo.
O padre Bento, farto de aturar
sacristães, e não querendo estragar a sua paciência, que lhe estava na massa do
corpo, resolveu dizer as suas missas... sozinho.
Preparava as galhetas, o missal etc.
Depois, pachorrentamente paramentava-se e pachorrentamente esperava a hora de
oficiar. Chegada a hora, encaminhava-se para o altar, e começava e concluía,
parte por parte, tudo muito em ordem.
Mas o filé, o bem bom, era quando
entrava a ladainha. Ele cantava o nome do santo e uma vozinha esquisita, porém,
muito clara, respondia logo: ora pro nobis! E os fiéis, em seguida, pela
pequena nave afora: ora pro nobis!
Dessas ladainhas assisti eu a muitas
na capelinha de São Romualdo, que era próxima à nossa casa, na vila de...
Agora: sabem quem cantava as ladainhas
do padre Bento?
Era o Lorota, um papagaio amarelo,
criado na gaiola e muito bem falante...
Com ele me diverti muitas vezes:
— Lorota, dá cá o pé!
E ele, ensinado pelo padre,
correspondia, amável.
Coitado!
O padre morreu, o Lorota, não tendo
mais a quem dar contas, fugiu.
Passaram-se os anos.
Uma vez, estava eu na serra, numa
espera de onça, quando senti, confesso — não medo, mas um arrepio... de frio —
quando ouvi, das profundezas do mato, uma ladainha religiosa. E pausada,
afinada, bem puxada, em suma!
Seria um sonho? Estaria eu errado na
tocaia das onças, e em vez de estar na floresta cheia de bichos ferozes, estava
na vizinhança d'algum convento, d'alguma capela, d'alguma romaria?
E a ladainha, compassada e cheia,
vinha-se aproximando:
— Bento São Bento.
— Ora pro nobis.
— Santo Atanázio.
— Ora pro nobis.
— São Romualdo.
— Ora pro nobis.
Eu mergulhava os olhos por entre os
troncos, os cipós e as japecangas a ver se bispava uma cor de opa, uma luz de
tocha, uma figura de gente. Nada!
Nisto, a ladainha pousou nas árvores,
por cima de mim. Pousou, sim, é o termo próprio, porque quem cantava era um
bando de papagaios e quem puxava a ladainha era o papagaio do padre Bento, era
o Lorota!
A paciência do bicho... Ensinar
direitinho, aos outros, a cantoria toda!
Pasmo daquele espetáculo, e duvidando,
quis tirar uma prova real. Perguntei para cima:
— Lorota? Dá cá o pé!
Pois o papagaio conheceu a minha voz,
conheceu, porque logo retrucou, com a antiga resposta que ele sempre me dava:
— Romualdo é bonito! Bonito!...
E para obsequiar-me fez um — crrrr! —
como aviso de comando, e recomeçou a ladainha:
— Bento São Bento.
— Ora pro nobis.
— Santo...
Nisto tremeu o mato com um berro
pavoroso... O Lorota e seu bando bateram asas. Eu olhei em frente: a sete
passos de distância estava agachada, de bocarra aberta, pronta para o salto,
uma onça dourada, uma onça ruiva, uma onça de braça e meia de comprido!
E na aragem do mato ainda soou um
vozerio distante:
— Bento São Bento.
— Ora... pro... nobis...
— São... Ro... mual... do...
— Ora... pro... nobis...
Nenhum comentário:
Postar um comentário