quinta-feira, 1 de outubro de 2015

LINGUAGEM – DATIVO ÉTICO

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Em nossos tempos, falar em dativo parece estranho. Acontece que as línguas modernas costumam chamar de objeto indireto ou complemento nominal à ocorrência morfológico-sintática que os gramáticos latinos denominavam de dativo.
Em latim e em grego clássico, não se podia falar de objeto indireto. Esse objeto caracteriza-se por complementar o sentido de um verbo, ligando-se a ele através de uma preposição. Ex.: Os rios dão água aos homens. Flumines hominibus aquam donant. A palavra rio, em latim, pode ser traduzida por flumen (nominativo) e fluminis (genitivo). Como, nesta frase, o sintagma nominal “Os rios” exerce a função de sujeito e está no plural, em latim deve receber a desinência –ES, que marca o nominativo plural, por isso aparece na frase latina a forma FLUMINES.
A forma verbal “dão” em latim pode ser DONANT. O latim prefere a estrutura sintática em que o verbo aparece no fim da frase. A palavra homem, no nominativo singular é HOMO, e no genitivo é HOMINIS. Como, na frase portuguesa, a palavra HOMEM exerce a função de objeto indireto, ou seja, quem dá, dá alguma coisa a alguém, neste caso particular os rios dão água aos homens, esse objeto indireto deve traduzir-se pelo dativo plural latino, da terceira declinação, cuja desinência é –IBUS. Portanto, ficará HOMINIBUS. 
E a palavra água, em latim AQUA para o nominativo singular e AQUAE para o genitivo singular, como exerce, na frase da língua portuguesa a função de objeto direto, em latim passará para o caso acusativo singular, cuja desinência é –AM, resultando, assim, AQUAM. A frase latina será, então:
FLUMINES HOMINIBUS AQUAM DONANT.
Porém, nos idiomas cuja maioria das funções sintáticas é marcada por desinências nominais, não há objetos indiretos. A forma de marcação, como se disse, é desinencial. Assim, o sujeito e o predicativo são marcados com a desinência do nominativo; o objeto direto é marcado com a desinência do acusativo; sendo o objeto indireto e o complemento nominal marcados com a desinência do caso dativo.
A reflexão acima mostra o que é o dativo nos idiomas em que as palavras são declinadas. Ele não é o objeto indireto. Designa-se, nesses idiomas, como objeto dativo. Veja-se que, na frase latina, a palavra HOMINIBUS não vem precedida de preposição, portanto, não se trata de um objeto indireto. Pelos critérios da língua portuguesa, HOMINIBUS é tão objeto direto quanto AQUAM. Por isso, em latim, AQUAM é objeto acusativo e HOMINIBUS é objeto dativo. Creio que, após a reflexão acima, está clara a concepção de dativo.
O termo ético é aplicado ao dativo, pois não se trata apenas do caso dativo, mas de um caso especial de dativo pronominal. Assim como os substantivos, nas línguas clássicas, os pronomes também são declinados. Têm os mesmos casos dos substantivos. Ainda mais, o dativo ético somente se dá com os pronomes clíticos, isto é, aqueles que somente têm sua existência presa a um outro termo da frase. Assim, os clíticos são átonos, isto é, não possuem sílaba tônica, mas apoiam-se na tonicidade do termo a que se prendem.
Em alguns idiomas, como o italiano e o espanhol, alguns clíticos fazem parte das formas verbais. Vejam-se as formas verbais espanholas com pronomes presos a elas: darte (dar-te), regalarselas (presenteá-las), dime (dize-me), haciendole (fazendo-lhe), apenas para exemplificar.
Casos de formas pronominais clíticas italianas presas ao verbo: vederla (vê-la), invitarti (convidar-te), aiutarlo (ajudá-lo), etc.
Em português isso também acontece nos casos de ênclise, ou seja, quando o clítico é colocado após o verbo. A diferença entre a língua portuguesa e o espanhol e italiano consiste me que essa junçao não se faz diretamente ao verbo, mas através de hífen: fazê-lo, contar-lhe, viram-no, etc.
Por fim, esse clítico pronominal está inserido numa situação ética, isto é, como afirma o gramático brasileiro Evanildo Bechara: “...representa aquele pelo qual o falante tenta captar a benevolência do seu interlocutor na execução de um desejo. (...) Ex.: Não me reprovem estas ideias.” BECHARA 2009, p. 424).
Também a linguista e gramaticista portuguesa Maria Helena Mira Mateus aborda esse tema. Então, afirma sobre o caso dativo: “O dativo ético designa tipicamente o locutor, manifestando o seu interesse na situação expressa pela frase. (…) Ex.: Acaba-me depressa os trabalhos de casa!” (MIRA MATEUS, 2003, p. 840).
O fato é que o dativo ético trata de uma situação pragmática marcada pela participação e pelo envolvimento emotivo de uma pessoa a respeito de uma circunstância indicada pelo predicado. É sempre, como se disse, expresso por um clítico pronominal.
Dativo ético é uma expressão já existente na gramática latina, em que o pronome pessoal no caso dativo era usado para indicar a pessoa emotivamente ou moralmente envolvida na ação. Veja-se este exemplo de Cícero: “...tu mihi istius audaciam defendis? (“...E Você me vem para defender a audácia deste homem?").
Em português contemporâneo, a construção com dativo ético é muito comum. Ocorre sempre o afetamento do sujeito pela ação do verbo. Veja o seguinte exemplo muito frequente no dia a dia: Não é que ele me morre. Ou, então: Não é que me morreu o gato. O nome dado ao fenômeno gramatical é um tanto sofisticado, mas o fato representado é muito comum.

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