Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Publico abaixo dois artigos sobre o modernismo português, que estão disponíveis na internet nos endereços indicados antes de cada um deles.O orfismo foi um
movimento literário fundado por um grupo de literatos portugueses nos
primórdios do modernismo, tendo como membros proeminentes Mário de Sá-Carneiro e
Fernando Pessoa.
O grupo fundou
uma revista a que deu o nome de Orpheu, que originou a denominação do movimento,
que, aliás, corresponde à primeira fase do modernismo em Portugal.
A revista não
congregava apenas literatos, mas artistas de uma maneira geral. Assim fizeram
parte do grupo Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Raul
Leal, Luís de Montalvor e o brasileiro Ronald de Carvalho, responsável pela
publicação no Brasil. Essa revista se constituiu no porta-voz do pré-modernismo
português, recebendo influências de movimentos artísticos europeus do momento
como o cubismo, e futurismo e outras vanguardas de então.
Em pleno conflito
mundial, em 1915, iniciou-se o orfismo português. Sempre com o intuito de
modernizar o país, a revista Orpheu publicou seu primeiro número em janeiro de
1915, estabelecendo-se que sua publicação seria trimestral.
Seus membros
buscavam novas formas de expressão artística e literária, influenciados pelos
valores dessas vanguardas, os orfistas lançavam um olhar para o mundo e suas
inovações tecnológicas, rompendo definitivamente com o passado e sua feição
simbolista.
Luís de
Montalvor escreve um artigo introdutório para a revista em que afirma: “O que é
propriamente revista em sua essência de vida e cotidiano, deixa-o de ser
ORPHEU, para melhor se engalanar do seu título e propor-se.
E propondo-se,
vincula o direito de em primeiro lugar se desassemelhar de outros meios,
maneiras de formas de realizar arte, tendo por notável nosso volume de Beleza
não ser incaracterístico ou fragmentado, como literárias que são essas duas
formas de fazer revista ou jornal.
Puras e raras
suas intenções como seu destino de Beleza é o do:—Exílio!
Bem propriamente,
ORPHEU, é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou
tormento…
Nossa pretensão é
formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou
arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em ORPHEU o seu ideal
esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos.
A fotografia de
geração, raça ou meio, com o seu mundo imediato de exibição a que
frequentemente se chama literatura e é sumo do que para aí se intitula revista,
com a variedade a inferiorizar pela igualdade de assuntos (artigo, seção ou
momentos) qualquer tentativa de arte —deixa de existir no texto preocupado de
ORPHEU.
Isto explica
nossa ansiedade e nossa essência!”.
Fernando Pessoa
publica nesse exemplar número 1, de janeiro de 1915, num período conturbado
como mais não poderia ser, pois se estava no segundo ano da Primeira Guerra
Mundial, um poema intitulado “Ode Triunfal”, iniciando a empregar um de seus
heterônimos mais produtivos: Álvaro de Campos.
Óde
Triunfal
Álvaro de Campos
“À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos,
ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes
eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do
século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e
por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à
alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de
transmissão!
Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente
de ontem!
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes
eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do
século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e
por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à
alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de
transmissão!
Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente
de ontem!
Eh, cimento armado, betão de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parcks.
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se
ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).
(...)
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento da deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo dos navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!
Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre os dentes o teu cap de duas cores.
(...)
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro ás vossas esquinas.
(…)
Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como queria
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo
isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
(…)
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim.
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus.
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...
Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de
todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das
docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!
Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! Eia
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-há! He-hô! H-o-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!”
Como se pode
perceber pelo tom de todo o poema, trata-se da expressão do ardor futurista
assumido por Pessoa nesse momento. Retrata a insubmissão e rebeldia dos
movimentos modernistas.
No seguinte
endereço eletrônico, há um comentário muito eloquente sobre esse poema que
revela o espírito da época. O que se chama, em alemão de Zeitgeist. Trata-se do
blog de nome Apoio a Português, que traz importantes análises de obras
literárias portuguesas:
(http://apoioptg.blogspot.com.br/2007/05/de-triunfal-de-lvaro-de-campos.html)
“Reconhece uma
evolução ao longo de três fases:
A decadentista, que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas
sensações; a futurista e sensacionista, caracterizada pela exaltação da
energia, de “todas as dinâmicas”, da velocidade e da força até situações de
paroxismo; e finalmente a fase intimista em que o poeta, diante da incapacidade
de realizar o que projetou, entra novamente na abulia, no abatimento, que
provoca um supressíssimo cansaço.
Este poema
integra-se claramente na segunda fase de evolução do poeta a futurista
sensacionista. Esta foi influenciada pelo futurismo de Marinetti e pelo
sensacionismo de Whitman. Se bem que ambos estejam presentes na Ode Triunfal, o
facto é que o sensacionismo acaba por absorver o futurismo.
Neste poema,
merece desde já a nossa atenção o título. Ode remete-nos para um canto de
exaltação. Neste caso o “eu” exalta a máquina, a vida mecânica e industrial, a
civilização industrial, o quotidiano das gentes, ou melhor, as sensações que
defluem do amor à vida moderna em toda a sua variedade. Com o epíteto triunfal
pretende-se vincar, mas também hiperbolizar o sentido de ode. Dá-nos deste modo
logo a sensação de qualquer coisa de grandioso, não apenas no conteúdo, mas
também na forma.
Foi exactamente com
os poemas desta segunda fase de Álvaro de Campos que Fernando Pessoa mais se
afastou do lirismo tradicional. Daqui resulta a dificuldade de analisar estes
poemas.
A rotura com a
lírica tradicional verifica-se mormente na irregularidade das estrofes. Existem
estrofes de quatro versos, de dez, de onze, de dezasseis, etc. Semelhante
irregularidade se detecta na métrica: há versos de cinco a vinte e uma sílabas
e outros em que a contagem se torna difícil, sobretudo quando entram sons que
não são signos linguísticos. Da conjugação destes elementos resulta um ritmo
nervoso e irregular, que traduz a dinâmica vivencial do sujeito poético, a sua
energia interior.
Ao nível da
sintaxe é também possível constatar o afastamento da lírica tradicional. A
quase ausência de subordinação (algumas relativas, poucas comparativas e uma
consecutiva) corrobora esta afirmação. As orações coordenadas marcam
parataticamente o ritmo rápido do poema. Cada oração coordenada exprime um
fenómeno da vida moderna que cruzou o pensamento do sujeito de enunciação. Ao
longo do poema surgem ainda exclamações que sublinham a emoção do sujeito
diante dos fenómenos da vida moderna. Repare-se nos últimos versos: vinte e
cinco são exclamações, sendo apenas três afirmações onde se verifica a presença
do verbo. Os infinitivos marcam também presença nas expressões exclamativas.
Devemos ainda considerar nesta linha de pensamento as repetições e as
enumerações gradativas, permitindo a justaposição de palavras, que brotam
torrencialmente através dessas enumerações falsamente caóticas, que conduzem ao
excesso de expressão definido por José Augusto Seabra. Tudo o que até agora
mencionei, aliado a uma catadupa de figuras (metáforas, comparações, imagens,
apóstrofes, anáforas, etc.) produzem um estilo ferozmente dinâmico que jamais
se produziu em Portugal.
Aparecem também
alguns desvios sintácticos “ fera para a beleza de tudo isto”; “Por todos os
meus nervos dissecados fora”; “frutos de ferro e útil da árvore-fábrica
cosmopolita”.
Há palavras que
não transportam em si interesse lírico. Não obstante Álvaro de Campos como o
escritor parnasiano recorreu a uma série de vocábulos prosaicos até de índole
técnica “fábrica”, “maquinismos”, “dissecados”, “correias de transmissão”,
“êmbolos”, “cargas de navios”, “guindastes”, “chumaceiras”, etc., adaptando a
mudança da vida moderna à mudança no conteúdo ideológico das palavras.
Sendo esta a
primeira obra de Campos, tem o dom de despertar em nós admiração e até espanto,
contribuindo para tal, como já referi, o próprio vocabulário.
O poema inicia-se
com a iluminação das lâmpadas eléctricas. Somos colocados no meio de um
ambiente fabril, em que o sujeito poético escreve num estado febril. Sentimos
de repente um rugir “rugindo os dentes” que nos afasta do tempo dos outros heterónimos.
Estamos num tempo de modernidade
Logo no início da
segunda estrofe somos lançados no meio dos ruídos de todos os elementos que
constituem a dita fábrica. O homem enfraquecido pela febre, exposto aos
barulhos produzidos pelas máquinas, é arrebatado pelos movimentos dos
mecanismos (rodas, engrenagens). O seu ritmo coaduna-se ao ritmo das máquinas
que estão à sua volta. São as papilas, os lábios, os nervos e a sua cabeça que
giram como os mecanismos da civilização moderna. Todo este mundo chega até si
através dos sentidos que estão alerta procurando abarcar tudo.
A maioria das
suas frases são nominais, jogando apenas com verbos conjugados que se referem
ao sujeito poético “tenho febre”, “escrevo”, “sinto”, “canto”. Os verbos no
infinitivo são também recorrentes. A forma como o “ eu” observa e tenta abarcar
o mundo não parece dar-lhe tempo para organizar o seu discurso de outro modo. O
uso recorrente de exclamações, interjeições e onomatopeias: “r-r-r-r-r-
eterno!; “Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios”; “Hup-lá, hup-lá, hup lá
hô...; as apóstrofes “Ó fazendas nas montras”, Ó manequins!, “Ó últimos
figurinos! Ó cais, ó portos, ó comboios!....; as enumerações “Couraças,
canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!; “guerras, tratados, invasões, Ruído,
injustiças, violências” e nas apóstrofes; as anáforas “Olá grandes armazéns,
... Olá anúncios eléctricos... Olá tudo!; “Eh-lá-hô fachadas, Eh-lá-hô
elevadores, Eh-lá-hô recomposições ministeriais!” são os recursos estilísticos
que lhe permitem cantar com excesso de expressão as suas sensações.
Acrescente-se
ainda o recurso a comparações inesperadas “olhando os motores como a uma
natureza tropical”; “Possuo-vos como a uma mulher bela”; “um orçamento é tão
natural como uma árvore e um parlamento tão belo como uma borboleta.”
O excesso de
expressão corporiza-se ainda nas aliterações onomatopaicas “ de ferro e fogo e
força” “ rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando” e “quase silêncio
ciciante”.
Note-se ainda a
frequência de uma série de sequências de três ou mais adjectivos ”Desta flora
estupenda, negra, artificial e insaciável”; “Em vós ó grandes, banais, úteis,
inúteis”; “Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus”; Eia
aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos”. Veja-se ainda uma
série de adjectivos e advérbios que servem a exaltação do belo atroz
“Maravilhosa gente humana que vive como cães”; “fauna maravilhosa do fundo do
mar da vida”; “Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transtlânticos!”; “ruído
cruel e delicioso da civilização”. Agora os advérbios “Progressos dos
armamentos gloriosamente mortíferos”; “Amo-vos carnivoramente /
Pervertidamente”
Termina de forma
abrupta o furor do eu que exalta o seu amor pela civilização, passando o tom a
ser de uma certa fatalidade da morte, a ternura perdida na infância e o
mistério do mundo.
Campos
aproxima-se de Caeiro no recurso ao verso livre e na importância conferida à
sensação. Mas o que no mestre é a “sensação das coisas como são” em Campos, o
que salta à vista é a fome de um mundo de sensações novas. Daí que sinta o bem
como sente o mal, o mórbido como sente o saudável, o normal como sente o
anormal, única forma de “ser toda a gente e toda a parte” e “sentir tudo de
todas as maneiras”.
Assim o que é
serenidade epicurista em Caeiro é ânsia futurista do novo Homem (segundo
Marinetti deveria este ser isento, saudável, amoral, dominador e livre de todas
as peias) em Campos “que como uma febre e um cio e uma fome agita” o impele a
querer sentir tudo de todas as maneiras.” (FIM DO ARTIGO)
Ainda na linha do
pensamento que envolve o orfismo, há um artigo do escritor Gabriel Viviani,
comparando o pensamento de Fernando Pessoa e o de Mário de Sá-Carneiro, cujas
observações são muito interessantes. Transcrevo abaixo o texto completo que
está disponível em:
http://www.debatesculturais.com.br/o-ser-em-conflito-analise-da-obra-de-sa-carneiro-e-fernando-pessoa/
“Diz o poeta
Mário de Sá-Carneiro, nuns versos sem título: “Eu não sou eu nem sou
outro, Sou qualquer coisa de intermédio”. O jovem nascido numa família de
militares não fingia a dor confessada: naquela personalidade corroía a angústia
da afirmação do Ser. Apesar da origem burguesa, jamais conseguiu adaptar-se às
convenções sociais. Abandonou o curso de direito na cidade de Coimbra, supondo
encontrar em Paris a vida idealizada. Qual vida? Talvez nem mesmo o poeta
soubesse definir. O que lá encontrou foi uma existência boêmia, em contraste
absoluto com os desígnios originais – a viagem de Sá-Carneiro, custeada pelo progenitor,
tinha como finalidade concluir os estudos na Sorbonne. O poeta sofreu as
oscilações de uma personalidade problemática, envolveu-se com uma prostituta,
publicou livros que tiveram excelente acolhida junto a um público sofisticado,
agitou o meio literário português lançando a revista O Orpheu – ao
lado de outros escritores modernistas, como Fernando Pessoa – e, em Abril de
1916, bastante jovem, suicidou-se com estricnina.
Os versos de
Sá-Carneiro expressam a aflição do autor sem o subterfúgio de heterônimos. O
que lá está é o poeta. Contudo, o tema que neles encontramos é justamente a
indefinição do ser, o dilema de perceber-se “qualquer coisa de intermédio”.
Seria impossível ler a obra de Sá-Carneiro e não compreender o seu fervente
desejo de plenitude. Quer ser completo, quer tudo com profunda intensidade.
Quero ser Eu
plenamente, confessa. Quer, portanto, o ideal! Um dos principais fundadores do
modernismo português revela assim sua veia romântica. Sabe-se insatisfeito com
a existência medíocre e relativa, vida pela metade, diluída em satisfações
fugidias.
Ser plenamente. O
desejo de Sá-Carneiro não tinha, porém, suficiente objetividade:
Quero sentir. Não
sei… perco-me todo…
Não posso
afeiçoar-me nem ser eu…
Que os poetas
jamais se sentiram inteiramente adaptados às circunstâncias do mundo,
Baudelaire já o havia exprimido no seu Albatroz. O jovem lusitano
talvezexperimentasse essa inadequação, não encontrando na sociedade o lugar
adequado, sendo obrigado a vestir o fato de outro, como escreveu Álvaro de
Campos. Seu ser íntimo não correspondia com o ambiente que o rodeava. Sua
vocação literária não reconhecia-se em Coimbra ou na Sorbonne, excedia o comum
de uma rotina profissional. Portanto, Mário de Sá-Carneiro projeta na obra
poética a vida tão idealizada, supondo encontrar ali:
Toda a ternura
que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza
que eu pudera ter sentido,
Todos os cenários
que entretanto Fui…
Se o jovem era
vítima da vocação artística, se se movimentava desajeitadamente no convés da
sociedade, repartido entre a realidade estéril e os cenários projetados, é
também preciso admitir que a cultura vigente na Europa do período encontrava-se
eivada por quase cinco séculos de pensamento subjetivista, idealista,
relativista e niilista. Não, Mário de Sá-Carneiro jamais empunhou
conscientemente tais bandeiras nos versos que escreveu, jamais defendeu
qualquer escola filosófica específica, mas ali estava inegavelmente um homem do
seu tempo.
Tempo de
descrença profunda, que não por acaso produziu a visão sombria do
existencialismo.
O ser e o não-ser
reverberaram nos versos de Sá-Carneiro, mas já se “estranhavam” há mais de dois
mil anos no debate filosófico. Pode-se afirmar, inclusive, que o pensamento dos
gregos evoluiu a partir dos problemas metafísico e ontológico, já desde os
pré-socráticos até Sócrates, Platão e Aristóteles – o ser claramente se
identificando com a divindade e o não-ser com a contingência do material. A
influência da Grécia na formação da cultura Ocidental é inegável, e é inegável
também que a teologia cristã da Patrística e da Escolástica bebeu nessas mesmas
fontes. As ideias de Platão e o Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles se
fundiram à verdade revelada do cristianismo, e o conceito de Deus como Ser em
essência e da existência humana como dependente do Ser de Deus tornou-se
consequência necessária dessa aproximação. O indivíduo existe porque Deus “é”,
portanto, seu substrato ontológico permanece garantido pelo Ser da divindade.
Daí concluímos que a existência do homem depende de um fator ab extrinseco,
cuja manifestação na criatura dá-se, não obstante, intrinsecamente.
Tão certo quanto
haver a filosofia dos gregos e a teologia dos cristãos estabelecido a origem do
Ser em Deus, é a modernidade ter de lá retirado com o objetivo de encontrá-la
nos mais diferentes lugares. Já Descartes afirmava que a realidade primordial
do homem é o seu ‘pensar’: Cogito, ergo sum… Penso, logo existo! Sim, é fato
que ele, em última instância, vai buscar em Deus sua garantia ontológica, mas é
indubitável também que sua conclusão existencial não parte da divindade, e sim
do seu “pensar”. Se Descartes é o pai do subjetivismo ou se o subjetivismo é a
má interpretação de Descartes, o fato é que a ruptura acontece: o “existo
porque Deus existe”substitui-se pelo “penso, logo existo”. O existir fica
dependente do sujeito pensante. Outros filósofos ou correntes de pensamento se
esforçaram, de maneiras diversas, na tentativa de materializar o Ser. A
História é a materialização do Ser em Hegel, sua evolução dialética o modo como
o Ser se desenvolve, e o Estado sua plena realização. Sorvendo nestas fontes de
Hegel, o socialismo utópico entende que a sociedade atual ainda não “é”
plenamente: será plenamente só quando o estado socialista já não encontrar
resistência. O conflito existencial está, portanto, no cerne da cultura
moderna, conclusão a que chega Paul Tillich, no livro A Coragem de Ser.
O desejo que
Mário de Sá-Carneiro expressa é o mesmo que aflige os modernos: desejo de ser.
Sente o impulso de sair de si, de tornar-se outro, de já encontrar a plena
realização do eu. Como os utopistas, projeta a realização num universo
imaginário, esconjurando a realidade atual, tão diferente da vida que lhe
apetece viver:
Desfiles, danças
– embora
Mal sejam uma
ilusão.
– Cenário de
mutação
Pela minha vida
afora!
Sofre, no
entanto, a desilusão. Thomas Morus já explicara o significado da palavra
utopia: lugar nenhum. O caminho para a realização do ser não é a fuga da
realidade, nem tampouco a idealização de um destino hipotético, de uma vida
imaginária. Quando o indivíduo alimenta-se com fantasias, acaba experimentando
o sabor amargo do fracasso. Cedo ou tarde, o mundo, tal como ele é, se impõe
forçosamente, e aí o que sobra é o lamento:
Quase o amor,
quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio
e o fim – quase a extensão…
Mas na minh’alma
tudo se derrama…
Entanto nada foi
só ilusão!
De tudo houve um
começo… e tudo errou…
– Ai a dor de ser-quase,
dor sem fim… –Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se
elançou mas não voou…
O estado
intermediário entre aquilo que se “é” de verdade e aquilo que se pretendia
“ser” torna-se um limbo. O indivíduo que ali permanece vaga como as angustiadas
almas do Hades. A fantasia está desfeita, o malogro escurece completamente sua
existência, como um corvo à espreita da morte inevitável. Já desesperou de
encontrar novos caminhos, pois se por um lado não tem qualquer intenção de
voltar ao que era antes, supõe também impossível atingir a meta outrora
sonhada. O nada é seu destino! Sim, o niilismo foi outra das tendências daquele
momento histórico. A completa ausência de significado na vida conduzia à busca
tenebrosa pela extinção total. Se o mundo não tem sentido, se só o que existe é
sofrimento, deve-se mergulhar no nada! Os personagens de Dostoievski retratam
perfeitamente tais indivíduos. Também Mário de Sá-Carneiro optou pelo nada
absoluto… O conflito do ser cansou-o ainda na juventude. Seus versos antecipam
o suicídio:
A minha vida
sentou-se
E não há quem a
levante,
Que desde o
Poente ao Levante
A minha vida
fartou-se.
Além das
afinidades fraternal e intelectual, Mário Sá-Carneiro e Fernando Pessoa
compartilham a questão do ser. Quando se lê certos versos de Pessoa,
comparando-os aos do colega, chega-se mesmo a imaginar que, caso se atribuísse
a autoria ao outro, até o crítico especializado encontraria dificuldades de
perceber o equívoco. Não pretendo começar aqui o debate a respeito de quem
teria sido influenciado por quem… O tema é espinhoso, e exigiria pesquisas e
espaço mais amplos. Da leitura de ambos os poetas fica, contudo, a certeza de
que, de modos diversos, travaram uma luta contra o conflito do ser, o primeiro
expressando-se visceralmente e o segundo intelectualmente ou metafisicamente
ou, por que não, ironicamente. O poema intitulado Esta velha angústia, do heterônimo
Álvaro de Campos – de todos, aquele que vive o conflito de maneira mais radical
e mesmo histérica – fala por si:
Mas não: é este
estar entre,
Este quase,
Este poder ser
que…
Isto.
Tema de
complexidade semelhante ao de identificar supostas influências exercidas de um
poeta sobre o outro é determinar, com exatidão, até que ponto o Fernando Pessoa
ele-mesmo encontra-se presente nos heterônimos. Onde é que a realidade termina
e onde tem início a ficção? O crítico literário ou o apreciador dos versos pessoanos
provavelmente jamais conseguirá chegar a um consenso, pois há indícios de que o
próprio bardo lusitano edificou a obra no limite entre o real e a fantasia. O
poeta é um fingidor, ele escreve. A João Gaspar Simões, confessa: “O ponto
central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho
continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a
despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo… O crítico sabe que, como
poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como
dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão
alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a
sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que
eu, puramente, me esqueci de sentir”. São, portanto, ficções construídas sobre
alicerces reais, transmutações de si mesmo, variações a respeito do tema
pessoano. Seus versos confessam o que “é” o poeta e também o que “não é”. Por
isso o poema que lá começava afirmando: O poeta é um fingidor… Segue
dizendo: Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que
deveras sente.
Adolfo Casais
Monteiro crê que o nascimento dos heterônimos foi completamente espontâneo, não
sendo um projeto delineado com ampla sutileza de detalhes. Sua opinião é
baseada na correspondência que manteve com o poeta, e entendo ser bastante
crível. Seja como for, deliberadamente ou não, os principais heterônimos de
Fernando Pessoa abordam a problemática do ser e do não-ser, sob aspectos
diferentes, com perspectivas também diferentes. Que o criador desses
personagens era dono de uma formação clássica – e não esqueçamos que a cultura
clássica é, em essência, o dualismo grego –, os estudiosos não têm dúvidas; daí
é possível concluir que a temática do ser e do não-ser estava entranhada no seu
pensamento.
Álvaro de Campos
é, dos três, o que corporifica o dualismo de modo conflituoso, tal como
observamos. Quanto aos outros dois, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, aquele
aparentemente vive a solução prática do problema, enquanto este pretende a
solução teórica. Fiquemos com Álvaro, a princípio… É nos versos deste heterônimo
que identificamos maior semelhança entre Pessoa e Sá-Carneiro. Seu criador ousa
denominá-lo “o mais histericamente histérico de mim”, pois o poeta a si
mesmo se considera histero-neurastênico, com “tendência orgânica e
constante para a despersonalização e para a simulação”. Ora, Álvaro de Campos é
a própria despersonalização e simulação, característica que compartilha com
Mário de Sá-Carneiro. O heterônimo deseja ser outro também, quer
desesperadamente se desvencilhar daquilo que é:
Na casa defronte
de mim e dos meus sonhos, Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas
que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes,
porque não são eu.
Pesa-lhe sobre os
ombros a impressão de ser um falhado, de não haver alcançado um objetivo
qualquer. Eis o lamento que está presente na conhecida Tabacaria:
Fiz de mim o que
não soube,
E o que podia
fazer de mim não o fiz.
Aqui se manifesta
a tal “qualquer coisa de intermédio” de Sá-Carneiro, o mesmo “estar entre” que
o heterônimo já confessara. O desejo de ser não é completamente realizado,
obrigando o poeta a viver no limbo da indefinição da personalidade. Também como
Sá-Carneiro, no entanto, Álvaro de Campos admite sequer ter um objetivo
definido:
Falhei em tudo
Como não fiz
propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
Que não se diga,
porém, ser Álvaro de Campos o decalque desprovido de originalidade de
Sá-Carneiro. Se o dilema que os incomoda é o mesmo, se a fonte daquele
mal-estar é compartilhada, a maneira como ambos reagem mostra-nos
discrepâncias. Mário de Sá-Carneiro vive radicalmente o inconformismo da
inadequação, jamais se prostra à vida prática, assumindo por completo a
responsabilidade do êxito ou do fracasso. Quanto a Álvaro, ser ou não-ser é
intelectualização, o heterônimo não tem a coragem de experimentar, de fato, o
radicalismo defendido em versos. Deseja “… ir ser selvagem, entre árvores
e esquecimentos”, pouco antes fala de abandonar lógicas e sacadas, mas continua
existindo como engenheiro. Sente o impulso e, logo em seguida, o cansaço da
realização. Seu lado abúlico – herdado de Fernando Pessoa – manifesta-se em
Adiamento, por exemplo, ou mesmo nos versos da Tabacaria. Se para Mário de
Sá-Carneiro a possibilidade do meio-termo não existe, e seu dilema é angústia
eradicalismo, para Álvaro de Campos ser radical exigiria tomar decisões, coisa
bem contrária à sua natureza, e por isso o dilema que confessa, é somente
angústia e conformismo:
Baste, sim baste!
Sou eu mesmo, o trocado,O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem
riso, o bobo com grande fato de outro, A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos
pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a
charada sincopada
Que ninguém da
roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que
remédio!…
O mal sofrido por
Álvaro de Campos é o de viver no pensamento constantemente. Ali se percebe
aprisionado por elucubrações, girando sempre na vertigem do “quase-ser”, do
“querer-ser”, do saber “não-ser”. Quisera sair da imaginação e mergulhar na
realidade do mundo! O desejo de abandonar todas as lógicas, deitar fora os
fatos da sociedade a fim de ir “ser selvagem” é seu lado romântico. Sabe, no
entanto, que não basta somente “estar” próximo a natureza, é necessário “ser” a
natureza… O encontro com Alberto Caeiro torna-se, então, acontecimento decisivo.
Chama-o de mestre! Caeiro mostra-se o ideal buscado por Álvaro, embora o
conceito de idealismo esteja distante dos versos bucólicos daquele mestre.
Que
deslumbramento é, afinal, o que Alberto Caeiro promove no poeta engenheiro?
O que encanta e
surpreende o discípulo: a filosofia anti-filosófica, a metafísica
anti-metafísica do mestre, a perfeita comunhão, comunhão pacífica confessada
entre o poeta e a Natureza. Por não se pensar a si mesmo senão como
participante do Todo, Caeiro é o protótipo do ser liberto, desprovido das
amarras sociais, das tradições, da civilização tecnológica. O ideal do
movimento romântico manifesta-se naquela personalidade, e o mestre conhece“naturalmente” o “…
ser selvagem, entre árvores e esquecimentos”, que Álvaro de Campos não
conhecerá jamais. Pois se Álvaro sabe-se um prisioneiro das próprias reflexões
e também da sociedade, Caeiro não sabe senão o esquecimento de si, sendo
espontâneo como a tempestade e o amanhecer:
Procuro despir-me
do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minha emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
Caeiro não se
encontra, portanto, preocupado com desvendar “… o sentido íntimo das
coisas…”, nele não há despersonalização, nem tampouco o desejo de ser outro.
Seu existir é no agora, seu fruir é no tempo presente, sentindo o perfume das
flores quando há, e não desejando sentir quando não há. Desejo e realidade nele
compartilham o mesmo idioma, caminham juntos, e Caeiro não compreenderia o
idealismo do querer “deixar de ser” e projetar, no futuro, a felicidade que já
está disponível. Carpe diem, dir-se-ia. Quem sabe… Mas o poeta não compreende
filosoficamente, senão naturalmente. Vive, a princípio, sem o conflito do
pensar, segundo admite:“Acho tão natural que não se pense”. Crê em Deus? Se
Deus identificar-se com a Natureza… Para além disso, Caeiro prefere não
cogitar.
Significaria,
caso o fizesse, perder o presente e não conquistar nada de realmente confiável. “Para
mim pensar nisso é fechar os olhos / E não pensar”. Contudo, o mestre rejeita a
alcunha de materialista. Rejeitaria se o aproximássemos da espiritualidade
franciscana? Sim, provavelmente… S. Francisco de Assis experimentava, de modo
transcendente, o contato com Deus na natureza; Alberto Caeiro, por seu turno,
aquilo que experimenta experimenta no âmbito da pura imanência.
O curioso deste
heterônimo é o destino dado a ele por Fernando Pessoa. Se Caeiro significava a
solução da problemática “ser e não-ser”, nele inexistindo os intermináveis
dilemas existenciais de Álvaro de Campos, Mário de Sá-Carneiro e, decerto, do
próprio Pessoa, como explicar que também o poeta bucólico acabasse caindo, ao
final, na prisão do pensamento? Os poemas do Pastor Amoroso revelam Caeiro
abandonando a vida do imediato para envolver-se nas teias da própria
interioridade. O amor… O amor tira o poeta do mundo natural, e o aprisiona no
pensamento. Sonha aquela que é objeto do seu desejo, projeta sua figura no
espaço, troca a realidade pela imaginação:
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Outro verso do
Pastor Amoroso diz:
Como o campo é
vasto e o amor interior…!
Rompe-se a
comunhão estabelecida entre o poeta e a Natureza. Seu ser desencontra-se com o
ser das coisas, e o diálogo que antes era harmônico, torna-se dúbio. Caeiro já
não sabe com a mesma distinção o mundo físico, porque o amor transformou-lhe o
significado. É que a vida íntima, atrofiada no passado, agora transborda,
contaminando a realidade natural. “Todos os dias acordo com alegria e
pena. / Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava”, escreve.
Seuromantismo do “ser selvagem” abre espaço para outro aspecto: o do intimismo
romântico. Sim, pois não é somente o cartesianismo que aprisiona o indivíduo na
consciência, também o movimento romântico descobre a intimidade. Caeiro cede,
portanto, ao dilema da civilização moderna: o dualismo entre a alma e a
matéria, o abismo entre a consciência e a realidade exterior. O rompimento é
lamentado pelo heterônimo: “Talvez quem vê bem não sirva para sentir”. Um
destino, sem dúvida, peculiar. Fernando Pessoa constrói o estilo ideal de vida
desejado para si e para os reflexos ficcionados de sua personalidade, e, ao
término, frustra-o como todas as utopias.
Supõe-se, então,
que não exista qualquer solução verdadeira para a problemática do ser e do
não-ser. Chegara a tal conclusão o criador do universo de heterônimos? Teria
compreendido que a única saída é mesmo aceitar o dilema com resignação,
conformar-se com o pouco ou nada que se “é”, e não esperar qualquer acréscimo
do idealismo ou das divindades? O misto de estoicismo e epicurismo que compõe a
personalidade de Ricardo Reis parece induzir a esse caminho. O outro discípulo
de Caeiro não compartilha aquele histrionismo de Álvaro de Campos, não escreve
raivosamente, ao contrário, é portador de um estilo medido e sofisticado. Sua
tranquilidade não advém da esperança sobrenatural, nem tampouco da confiança
humana. Ser calmamente, para Ricardo Reis, significa simplesmente admitir a
insignificância:
Melhor destino
que o de conhecer-se
ão frui quem
mente frui. Antes, sabendo,
Ser nada, que ignorando:
Nada dentro de
nada.
A crença na
inevitabilidade do destino está no centro do pensamento de Ricardo Reis. Sendo
um helenista, abraça o conceito tão caro à cultura grega. O conhecido mito do
eterno retorno é a origem dessa visão negativa sobre o destino da humanidade:
independente da atitude do homem, o cosmos encontra-se fadado a destruições e
ressurgimentos contínuos. Preso no interior desse círculo, o indivíduo jamais
conseguirá ser o dono de si. A tríade clássica, Sócrates, Platão e Aristóteles
representa, de certo modo, a ruptura e o abandono do mito do eterno retorno no
pensamento antigo. Quando o Estagirita estabelece a “causa final”, oferece ao
ser humano a esperança da finalidade definitiva. O otimismo desses três é o
ápice da filosofia grega! Que foi feito do velho mito? Não desapareceu
absolutamente. Sua influência exerceu-se, ainda, entre os epicuristas e os
estóicos. Os primeiros mergulhando na satisfação dos prazeres morais e
intelectuais, pois a distância dos deuses impossibilitava o acesso ao sentido
sobrenatural. Se o homem está aprisionado na realidade material, se a morte é
realmente inevitável, e tudo para além bastante duvidoso, pouco resta a nós
senão aproveitar a vida. Quanto ao estoicismo, sua resignação aos limites da
existência nasce justamente dessa fatalidade do destinohumano. É preciso
suportar as desgraças que se abatem sobre nós, “estoicamente”, porque seria
inútil confrontar o destino.
As rosas amo dos
jardins de Adônis,
Essas vólucres
amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em
que nascem,
Em esse dia
morrem.
A luz para elas é
eterna, porque
Nascem nascido já
o sol, e acabam
Antes que Apolo
deixe
O seu curso
visível.
Assim façamos
nossa vida um dia,
Inscientes,
Lídia, voluntariamente,
Que há noites
antes e após
O pouco que
duramos.
Perecer é o termo
inescapável para as rosas, bem como para o bardo e sua musa. Viver é um dia, do
nascer ao pôr-do-sol, e não há nada que se possa fazer. Rebelar-se? Tolice. O
verdadeiro prêmio por conhecer esse fato é não ser mais necessário
inquietar-se: o que tiver que ser será. O destino precisa cumprir-se,
inevitavelmente. Então que se ame as rosas de Adônis, que se goze os prazeres
da Natureza, à espera do momento decisivo. Aí está, em Ricardo Reis, o
conformismo estóico unido ao hedonismo de Epicuro.
Como seu discurso
responde a problemática do ser, tão presente na obra pessoana? Certamente não é
desejando “ser outro”, como Álvaro de Campos, desiludindo-se como Sá-Carneiro.
O mestre Caeiro ensinou a Ricardo Reis a naturalidade, e este interpretou-a afastando-se
do paganismo anti-metafísico do primeiro, forjando a passividade daquele que se
reconhece do modo que “é”, independente da vontade dos deuses, alheio às
expectativas, desprovido das idealizações. Ser é ser, e pronto! Compreendendo
as limitações, adequando-se às medidas do que lhe é natural, sem aguardar nada
além disso, nem tolerar menos também.
Para ser grande,
sê inteiro: nada
Teu exagera ou
exclui.
Sê todo em cada
coisa. Põe quanto és
No mínimo que
fazes.
Assim em cada
lago a lua toda
Brilha, porque
alta vive.
Seria a resposta
final de Fernando Pessoa, a conclusão definitiva sobre o dilema do ser? Não
ouso afirmar. O quebra-cabeças do genial lusitano furta-se a deduções
inquestionáveis. Também não me parece correto que o leitor ou o crítico se proponha
a identificar, na obra do poeta, certa objetividade que talvez não fosse
intenção do autor. Pode-se imaginar, por exemplo, que os heterônimos jamais
representaram a tentativa de compreender o dualismo do ser, mas sim a forma de
realização de sua personalidade multifacetada. Se Mário de Sá-Carneiro
sentiu-se frustrado diante da impossibilidade de “ser outro” na realidade,
Fernando Pessoa aplacou a angústia sendo muitos na literatura. O que faltou ao
primeiro? Por que suicidou-se? Quem sabe o senso de humor do amigo! Afinal de
contas, aquele que escreveu Adiamento e Poema em Linha Reta, não poderia
terminar com frascos de estricnina.” (FINAL DO ARTIGO)
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