terça-feira, 6 de maio de 2014

A CONTROVERTIDA FIGURA DE SÊNECA NA CORTE DE NERO - THE CONTROVERSIAL SENECA'S FIGURE OF THE COURT OF NERO

A CONTROVERTIDA FIGURA DE SÊNECA NA CORTE DE NERO
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara

* Trabalho Apresentado no Seminário Internacional de Estudos Históricos - FURG - Rio Grande - 2004 - ISBN85 -7566-033-0

Acomodar-se com a pobreza é ser rico: se és pobre, não é por teres pouco, mas sim por desejares
muito. (Sêneca).
1615 – Museu do Prado – Madri.
Morte de Sêneca– Peter Paul Rubens -
Este estudo aborda as controvérsias na vida do ilustre filósofo romano, nascido em Córdoba, Lúcio Aneu Sêneca (Lucius Annaeus Seneca). A convite de Agripina, mãe de Nero e esposa do imperador Cláudio, foi Sêneca preceptor do cruel e depravado imperador romano.
         Nascido na Espanha, que então fazia parte do Império Romano, sob o reinado do poderoso imperador Augusto, no ano 4 da era cristã, era filho do professor de retórica Marcus Annaeus Seneca, conhecido como Sêneca o Retor.
         Pertencia a uma abastada família cordobesa que se transferiu para Roma no ano 31 d. C., tendo o jovem Lúcio já de há muito, desde o governo de Tibério, migrado para a capital do império. É conhecido como Sêneca o Moço, ou Sêneca o Filósofo, enquanto seu pai às vezes é chamado também de Sêneca o Velho.
         Sua mãe Hélvia, com apenas 16 anos, contraíra matrimônio com o velho orador que então tinha 51. Acreditava ela que somente pela educação se poderia vencer na vida e, por isso, estimulou o filho e depois toda a família a transferir-se para Roma, maior centro cultural desses tempos.
         Aos catorze anos, o jovem espanhol começou seus estudos de filosofia e retórica com o objetivo de fazer carreira política na capital do poderoso Império Romano. Em 26, adoece e vai tratar-se no agradável clima do Egito onde seu tio era governador. Sua tia materna era casada com Gaius Gallerius, governador do Egito. Aí permanece o jovem filósofo por seis anos.
         No Egito, recebe complementação aprimorada em sua formação educacional, mormente no campo religioso. De volta a Roma, retorna à advocacia, profissão que já exercera antes de sua ida para o Egito.
         A esse tempo,  iniciou sua carreira de escritor que o ocuparia até o fim da vida. Sua produção literária está basicamente ligada à filosofia estoica. Também traduziu diversas tragédias gregas e escreveu outras tantas de gosto latino. As tragédias de Sêneca prestam-se muito mais à leitura do que à encenação. Um grande exemplo do gênero é sua Medeia.
         Paralelamente, sempre atuou como advogado, o que já fazia mesmo antes de sua doença que o levara ao Egito. Porém, destacou-se também na ação política em que atingiu a cobiçada função de senador. Parece que para isso contribuiu o auxílio de sua tia.
         Alcançou tal renome na tribuna senatorial que suscitou a inveja do imperador Calígula. O maníaco ter-se-ia irritado ao ouvir um de seus discursos e teria decidido eliminá-lo. Por interferência de uma das amantes do tresloucado Calígula, a qual teria afirmado estar o filósofo já tísico e próximo da morte, foi poupado da condenação.           Porém suas desgraças não tardariam a chegar. Após o assassinato de Calígula, com a ascensão do novo imperador e por influência da esposa desse, o filósofo foi exilado, como se verá mais adiante.
         O velho Claudius (Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus) era sobrinho de Augusto. Apenas havia sido poupado nos expurgos a possíveis pretendentes ao trono, promovidos tanto por Augusto quanto por Tibério, porque o consideravam demente.    
         Com a morte de Calígula, não havendo outro candidato ao trono em idade adulta, o Senado confirmou seu nome. Era, a esse tempo, casado com a encantadora Valéria Messalina, que foi o pivô da perseguição movida contra Sêneca.

Valéria Messalina com o filho Britanicus

         Em 41 d. C., a imperatriz o acusa de adultério com Júlia Livila, sobrinha do imperador. Messalina desejava livrar-se dessa irmã mais jovem do imperador Calígula e urdiu essa trama para mandá-la ao exílio. Como consequência, foi o filósofo exilado para a Córsega, ilha do mar Tirreno.
         Acontece que a jovem imperatriz era poderosa e influente, com reputação de ser promíscua. Ela era também prima pelo lado do pai de Nero, prima de segundo grau de Calígula e sobrinha-bisneta do grande imperador Augusto. Era filha de Marco Valério Messala Barbato e de Domícia Lépida.  Messalina teria em torno de 17 anos quando veio a casar-se com Cláudio, que tinha 48, era manco e epiléptico.
         Porém, o que parecera uma desgraça, tirou-o do burburinho romano permitiu-lhe tempo para a reflexão filosófica. No exílio, em meio a grandes privações materiais, Sêneca dedicou-se aos estudos e redigiu vários de seus principais tratados filosóficos. Entre eles, os três intitulados Consolationes ("Consolos"), em que expõe os ideais estoicos clássicos de renúncia aos bens materiais e busca da tranquilidade da alma mediante o conhecimento e a contemplação.
         Messalina, por sua vez, tem seu período de desgraça que vai culminar com sua derradeira condenação. É provável que ela não fosse o símbolo da depravação que a literatura e a história fizeram dela. Seria uma mulher fútil e infiel, como o eram grande parte das damas da corte romana, desocupadas e abandonadas por seus maridos, envoltos em lutas políticas e divertimentos com todo o tipo de amantes.
         O grande historiador Tácito, cuja obra chega a ser, em certas passagens, um verdadeiro fuxico sobre os vícios e hábitos da elite romana, afirma que a grande dama esposa de Cláudio era conhecida como meretrix maxima.
         Tácito (Publius Gaius Cornelius Tacitus) pertencia à mais alta sociedade de Roma por casamento: sua esposa era filha do grande general Iulius Agricola. Sua família pertencia à ordem dos cavaleiros, uma classe de segundo escalão na sociedade romana. Convivera , no entanto, com a mais requintada sociedade romana e afirma-se que teria recebido o diário íntimo de Agripina Minor, mãe de Nero, ao saber que seria assassinada.
         As acusações de excessos sexuais, principalmente, eram uma tática já testada e aprovada para macular a reputação de pessoas de projeção. Geralmente escondia motivações e interesses políticos.
         Dois relatos foram os principais culpados pela má reputação da imperatriz para todo sempre. Um é a narrativa de uma suposta competição de sexo com uma prostituta no livro X da Natualis Historia, de Gaius Plinius Secundus, que teria durado 24 horas e que Messalina teria vencido com um placar de 25 parceiros diferentes.
         Também o poeta Decimus Iunius Iuvenalis apresenta uma descrição igualmente famosa em sua Sexta Satira de como a imperatriz costumava trabalhar clandestinamente, a noite toda, num bordel com o nome fictício de Lupa (Loba).
         Pela simples acusação de escritores interesseiros, nada se pode concluir a propósito da moral de Valéria Messalina. Especialmente o poeta Juvenal é pouco digno de credibilidade, pois era um desclassificado na sociedade romana, tanto que foi expulso da cidade por crime de calúnia.
         Foi exilado para o Egito, de onde jamais lhe foi permitido retornar à cidade. Conta-se que teria recebido como pretenso prêmio uma viagem ao Egito. Somente ao lá chegar é que percebera o embuste. Todas as companhias de navegação haviam sido subornadas para não trazê-lo de volta.
         É lógico que remexia em feridas sociais verdadeiras também. Porém, isso não ameniza a baixeza de caráter que o nutria e os péssimos métodos de que se utilizava para ganhar dinheiro. Conta-se que tinha aversão a homossexuais e teria feito uma sátira nesse sentido contra o imperador Adriano.
         Havia um costume, nesse período em que não havia imprensa, de se confeccionarem cartazes que eram colocados estrategicamente em ambientes públicos. Marcial e Juvenal viviam de extorquir cidadãos com ameaças de difamação pública. Com o temor da vergonha de se verem eles e suas famílias expostos à chacota pública através de sátiras poéticas, cidadãos inocentes pagavam aos chantagistas. Embora Juvenal tenha vivido muitos anos depois de Messalina, usou o nome dela como símbolo para estabelecer um parâmetro de comparação com as damas de seu tempo.
         Porém, voltando a Messalina e à sua condenação, consta que  Cláudio, cansado das denúncias, falsas ou não, e enfurecido com a reputação da esposa, também acusada de conspiração, condenou-a à morte, insensível a todos os apelos dela. Com a ausência de Messalina, houve uma grande disputa pelo leito do imperador. Muitas famílias ambiciosas desejavam ver suas moças ligadas ao trono.
         Acontece que, havia uma que gozava de uma posição privilegiada nessa disputa. Tratava-se de Agripina Menor, quarta filha de Agrippina Maior e Iulius Caesar Germanicus, irmão do ex-imperador Tibério. Ela tinha três irmãos, Nero Julius Caesar GermanicusDrusus Iulius Caesar e Gaius Iulius Caesar Augustus Germanicus, o futuro imperador Calígula, e duas irmãs mais novas,  Iulia Drusilla e  Iulia Livilla.
         Os dois irmãos mais velhos e sua mãe caíram vítimas das intrigas palacianas do prefeito pretoriano Lucius Aelius Seianus, que governou alguns anos em substituição de seu tio e imperador Tibério (Tiberius Claudius Nero Cæsar). Ela era também sobrinha do viúvo imperador Cláudio e mãe do futuro imperador Nero, então ainda menino, tinha em torno de 12 anos. Tinha ela, a essa época, por volta de 30 anos e Cláudio 59.
         Agripina tivera diversos matrimônios anteriores ao de seu casamento com Cláudio. Tinha fama de envenenar maridos para herdar-lhes a fortuna. Porém, seu primeiro casamento foi memorável. Depois de seu décimo terceiro aniversário, em 28, o imperador Tibério arranjou para que a sobrinha casasse com o tio dela em segundo grau pelo lado paterno, Cneu Domício Enobarbo. 
         Domício vinha da distinta família dos Enobarbos, de status consular. Pelo lado da mãe, Antônia Maior, Domício era sobrinho neto de Augusto, primo de Cláudio e primo de segundo grau de Agripina e Calígula. Desse primeiro matrimônio de Agripina viria a nascer o imperador Nero.
         Domício era homem com fama de crudelíssimo. Segundo uma tradição, divertia-se em torturar escravos. Ao saber da gravidez da esposa, ter-lhe-ia perguntado: O que poderá sair de nós dois?
         Depois de Messalina ser executada no ano seguinte por conspirar para derrubar o marido, com Caio Sílio, também acusado de ser seu amante, o asqueroso Cláudio desejava casar-se já pela quarta vez.     Alguns historiadores modernos conjeturam, mesmo sem provas cabais, que o Senado teria feito manobras para que o imperador se casasse com Agripina. Ela representava o fim da disputa entre a gens Iulia e da gens Claudia, pois possuía sangue de ambas as famílias.
         Augusto, da gens Iulia, à qual pertencia o Ilustre Júlio César seu tio avô, ao tornar-se imperador, selara seu terceiro matrimônio com Lívia Drusila, filha de Marco Druso Claudiano, portanto de gens Claudia. Por ocasião do casamento, Lívia já tinha um filho, Tibério, e estava Grávida de outro, Gaio Germânico, filhos de seu primeiro marido Tibério Cláudio Nero. Augusto (Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus), tinham esse nome por adoção do tio Júlio César, porém, tinha também seu nome primitivo  de família, que era Gaio Otávio Júlio Torino (Gaius Octavianus Iulius Thurinus).
         Como Augusto, que reinou por quase 50 anos, não tivesse filhos homens, tinha apenas uma filha chamada Júlia, com a velhice, adotou os enteados, primeiramente Gaio Germânico, e, com a morte deste, por fim, Tibério, que veio a ser seu sucessor no trono. Isso apenas para entender a disputa entre as duas famílias pelo trono, cuja dinastia passou-se a chamar de Júlio-Claudiana.
         Voltando à situação de viuvez do imperador, seja por pressão do Senado ou pelos talentos e manobras de Agripina, Cláudio acabou se casando com ela, mesmo que o casamento de um tio com sua sobrinha fosse algo mal visto na sociedade romana da época.
         Nas festividades de Ano Novo de 49 d. C., Agripina e Cláudio celebraram com grande pompa seu matrimônio desaprovado por todos. Escritores antigos argumentam que este evento era resultado de parte do plano de Agripina para colocar Nero no trono.
         A nova imperatriz providenciou rapidamente a eliminação de Lolia Paulina, viúva de seu irmão e ex-imperador Calígula sob a acusação de magia negra. Não houve sequer julgamento, confiscou as posses dela e mandou-a para o exílio, forçando-a a cometer suicídio.
         Ocorre, porém, que Messalina deixara a Cláudio um casal de filhos, Cláudia Otávia e Britânico, que eram um obstáculo na pretensão de Agripina, qual seja tornar o filho dela Nero o futuro imperador.
         A primeira exigência de Cláudio para seu sucessor era que esse fosse um homem culto. Isto fez que, no mesmo ano de 49, ela mandasse chamar do exílio o filósofo Sêneca, a cujo encargo confiou a educação de Nero. O fato intrigante é que Sêneca, mesmo conhecendo o cenário que o aguardava, tenha aceitado a incumbência, talvez até mesmo para livrar-se do exílio.
         Ter-se-ia ele cansado de tantos anos, de 41 a 49 d. C, de sofrimentos e privações do exílio, afastado da vida suntuosa que a grande capital lhe proporcionava anteriormente? Teria cedido à possibilidade de retornar triunfante à sociedade que o banira e da qual estivera afastado por quase oito anos? O fato é que não somente aceitou o convite da nova imperatriz, como também se dedicou com afinco à educação do jovem príncipe.
         Traduziu obras do grego para o latim. Adaptou outras tantas ao gosto romano para que o sucessor de Cláudio fosse um homem sábio como o imperador exigia. Procurou mesmo infundir no seu discípulo os fundamentos da filosofia estoica que adotara.
         Agripina apressa-se em garantir o próprio poder através do filho. Com seus encantos e manobras, começa a manipular o marido e a todos para assegurar o trono ao filho. Uma série de manipulações e crimes são articulados por ela para atingir seus propósitos.
         Providencia, então, o casamento de Nero com Otávia, filha de Cláudio, em 09 de junho de 53, ao mesmo tempo em que Cláudio nomeia Nero seu sucessor, adotando-o como filho.
         Em 54, quando Nero já concluíra 16 anos e já fora nomeado sucessor da Cláudio, Agripina, finalmente, envenena o marido, segundo alguns historiadores. Segundo outros, menos numerosos, sua morte teria ocorrido por causas naturais.
         Nero, como filho adotivo de Cláudio, assume o poder porque era mais velho do que Britânico, filho natural. Porém, Agripina precisava precaver-se de possíveis manobras do Senado e da família real.
         Como medida de maior garantia, contrata facínoras para envenenar Britânico. O casal contratado para o isso encontrou à mesa provadores para evitar assassinatos. Então a própria Agripina obriga-o a ingerir o líquido letal. Testemunhas afirmam que ele revirou os olhos e morreu ainda na mesa. Tinha então de 13 para 14 anos. Afasta, dessa maneira, mais um obstáculo para atingir sua meta.
         Como Nero tivesse apenas 16 anos de idade, sendo, portanto, muito jovem ainda para enfrentar os encargos da administração de um Estado tão grande e tão complexo, segundo diversas fontes antigas, foi fortemente influenciado pela sua mãe durante a primeira etapa do seu reinado, pelo seu tutor Sêneca e pelo Prefeito do Pretório, Sexto Afrânio Burro. Esses dois últimos praticamente assumiram os encargos administrativos durante os cinco primeiros anos de sua administração.
         Essa primeira fase do seu reinado é conhecida como exemplo de boa condução dos negócios públicos nos quais os assuntos do Império foram tratados de maneira efetiva e o Senado gozou de influência e poder nos assuntos do Estado.
         Enquanto isso, Nero divertia-se com os amigos. Conta-se que costumava encapuzar-se e juntar-se a uma horda de jovens de má índole e promover desordens em bairros escuros da enorme cidade que a essa época já contava com mais de um milhão de habitantes.
         Gradativamente foram surgindo conflitos entre os interesses da mãe do imperador e os dos administradores Sêneca e Burro. O próprio Nero começou a imiscuir-se na administração. Chegou mesmo a um ponto de conflito em que o jovem mandatário passou a frequentar o tribunal. Sêneca julgava com prudência e justiça. Porém, Nero, com inveja do prestígio do mestre, exigiu o direito da decisão final. Assim, deixava que Sêneca se pronunciasse e invertia a decisão, condenando o justo e libertando o culpado.
         Uma péssima companhia que levou para o palácio e para a administração foi Ophonius Tigelinus, a quem primeiramente nomeou de chefe da Guarda Urbana (Vigiles Urbani), conhecida como “os olhos da cidade”, que se tornou especialmente mais truculenta do que já era. Por fim, Tigelino chega a ser nomeado Prefeito do Pretório, antiga função de Burro. O desclassificado tinha forte influência sobre o imperador que, por natureza já era impulsivo e destemperado.
         Afrânio Burro foi acusado de uma conspiração para o depor o regente. Por sua vez, Sêneca foi acusado de manter relações com Agripina e de malversação de recursos públicos. Apesar de absolvidos, a partir desse momento foi reduzida a importância política desses administradores na moderação das desastrosas medidas políticas de Nero.
         Seu relacionamento com Otávia sempre fora péssimo, porém, em 58, descobriu as delícias do leito de Popeia Sabina, esposa do seu amigo e futuro imperador Marcus Salvius Otho, em português Otão.  Ao mesmo tempo, passou a planejar o assassinato da própria mãe que concorria com ele pelo poder, chegando a cunhar moedas com efígie dela em uma face e a do filho na outra.
         Fez três tentativas para matá-la. A primeira é muito ingênua. Tenta envenená-la com figos silvestres. Sua mãe conhecia tudo de antídotos. Não se pode esquecer seu passado de envenenamentos. Essa ação serviu para alertá-la das intenções do filho.
         A segundo foi mais bem planejado. Convidou-a para um passeio de barco e colocou-a numa nave desconjuntada que deveria naufragar. Para ter absoluta certeza de que seu plano não fracassaria, mandou colocar sobre o teto do camarote reservado a ela e uma amiga, um enorme peso em chumbo, que deveria esmagá-la. Deu também ordem aos marinheiros de que a matassem sem conseguisse fugir.
         Ocorrido o desastre, o robusto reposteiro do leito sustentou o peso do chumbo, preservando a vida de ambas. A amiga dela pulou do camarote gritando: “Eu sou Agripina”. Foi trespassada pelas espadas dos guardas. Agripina jogou-se ao mar e, como fosse excelente nadadora, salvou-se das águas.
         Refugiou-se, então, por um longo tempo em sua casa de campo. Porém, devido à insistência do filho, retornou ao novo e suntuoso palácio que o maníaco imperador havia construído nas encostas dos montes Palatino, Esquilino e Célio, tendo aos fundos um grande lacus artificial, construído em antigos pântanos. Segundo alguns pesquisadores, esse imenso lago ocuparia uma área aproximada de 300 acres, em torno de 120 hectares (quadras). Denominou sua residência de Domus Aurea (Casa Dourada), por conter diversos salões e aposentos recobertos inteiramente com finas lâminas de ouro.
         Segundo o historiador romano Suetônio, o salão de banquetes dessa Domus girava constantemente sobre esferas deslizantes, imitando a rotação dos corpos celestes, movido por um contínuo fluxo de água.
         Devido à largueza dos espaços, por diversos dias eles não se encontraram. Porém, passado algum tempo, vinha o imperador seguido pela guarda pretoriana quando avistou Agripina. Ordenou aos guardas que a matassem.
         Ela teria ainda aberto suas vestes. (As romanas não usavam roupas íntimas). O filho, após fazer um breve comentário afirmando que sua mãe continuava muito linda, mandou que cumprissem suas ordens. Ele seguiu impávido enquanto o cadáver foi recolhido pelas criadas. Ela tinha apenas 43 anos.
         Há uma tradição menos plausível segundo a qual Nero teria mandado abrir o ventre a sua mãe para ver o lugar de onde havia saído. O fato real é que a mãe desejava infantilmente sobressair ao filho, o que este não admitia. Consta também na tradição que seria a própria mãe quem teria iniciado o filho na vida sexual.
         Com a morte da mãe, Nero oficializou seu matrimônio com Popeia Sabina, tendo-se divorciado de Otávia. Essa atitude tornou-o mais detestável ainda perante a sociedade romana, pois alegou infidelidade por parte dela, o que todos sabiam ser descarada mentira. Conseguiu falsas testemunhas e mandou-a para o exílio na ilha de Pandateria, hoje Ventotene, no mar Tirreno, onde ela foi assassinada.

Ilha de Pandateria, hoje Ventotene,
onde Cláudia Otávia foi assassinada

         Nero ordenou que lhe abrissem os pulsos, como faziam os suicidas e depois a sufocassem num banho térmico. Deceparam-lhe a cabeça e entregaram-na a Popeia Sabina.
         Depois foi a vez de Popeia. Ela estava grávida. Nero era dado a excessos de ira em que perdia totalmente o controle de si. Começou por bater-lhe. Ela caiu. Ele chutou seu ventre até abortar e morrer.          
         Quando se deu conta de seu ato, caiu em profundo arrependimento. Chorou demoradamente sobre o cadáver. Não permitiu que lhe incinerassem o corpo, de acordo com o costume romano. Mandou que a embalsamassem e sepultou-a no túmulo de Augusto, com honras de imperatriz.
         Casou-se ainda duas vezes. Em 66, com Estatília Messalina, que sobreviveu a ele. Por fim, com Sporus, um jovem que se assemelhava muito a Popeia, a quem mandou castrar. Segundo Tácito, fez uma cerimônia pública no lago de seu palácio. Mandou construir uma grande jangada em que passou a noite de núpcias num leito aberto à vista do público e relacionou-se com o jovem, chamando-o pelo nome de Popeia.
         Passou, então a uma fase de extremos desatinos. Primeiramente, condenou à morte, por inveja, o grande escritor Gaius Petronius Arbiter, a quem, por ser seu amigo, permitiu que escolhesse a forma como desejasse morrer.
         Petrônio fez um grande banquete com os amigos, pediu a seu médico lhe abrisse os pulsos. Bebeu e cantou muito. Pedia que lhe estancassem o sangue e posteriormente reabrissem os ferimentos até que, já sem forças, pediu que o colocassem no leito para que sua morte parecesse natural.
         O mesmo fez com Sêneca, que imitou Petrônio, porém com uma morte no âmbito privado. Reuniu alguns poucos amigos e servos. Ordenou que lhe abrissem os pulsos. Quando estava para morrer, pediu que o colocassem numa bacia de água quente, pois sentia frio.
         A terceira vítima entre os seus amigos foi seu colega de estudos Publius Terentius Afer. Por esses e outros incontáveis crimes, tornou-se mais execrável ainda aos olhos de todos.
         Pois Sêneca, por anos a fio, conviveu nessa corte perversa que ultrapassou qualquer limite de barbárie, crueldade, insensatez e maldade que a razão humana jamais poderia admitir. Foram 18 anos de loucura e impunidade até o suicídio/assassinato em 09 de junho de 68 d. C.. Com ele acabou a dinastia júlio-claudiana.
         Todas estas narrativas a respeito do período mais crítico, de maior corrupção e miséria de todo o Império Romano foram aventadas aqui para levantar diversos questionamentos sobre o verdadeiro pensamento de Sêneca.
         Já pela ocasião da morte de Cláudio foi Sêneca quem redigiu o discurso de elogio fúnebre que Nero proferiu na cerimônia, cheio de clemência, ridículo diante das péssimas relações entre eles.  
         Por ocasião do planejamento do assassinato da mãe, o filósofo limitou-se a lhe perguntar se deveria encarregar os soldados do assassinato, sem proferir uma única palavra para salvar Agripina. Saliente-se que ele esteve presente na corte até mesmo nesse assassinato e redigiu o discurso que Nero proferiu nas cerimônias das exéquias.
         Diversos historiadores põem em dúvida a honestidade administrativa do mestre espanhol. Acumulara uma fortuna de 300 milhões de sestércios, que era exagerada, mesmo para um homem rico. No tribunal do império, em que por diversos anos decidiu sem interferências, passavam processos de idosos sem herdeiros.
         Também, sempre fora condescendente com os desregramentos do discípulo e mesmo aparentava favorecê-los, para que, enquanto o jovem imperador perdia-se em suas orgias e crimes, sobrava ao mesmo maior espaço de ação.
         Quando ocorreu a morte de Burrus em 62, sua influência no poder diminuiu. Houve muitos protestos pondo em dúvida a origem das imensas riquezas que ele havia acumulado durante os anos em que vivera na Corte, os magnificentes jardins que construíra, a riqueza de suas casas de campo. Diante de tantas ameaças, afastou-se do palácio e retirou-se para a vida privada.
         Teve uma existência que oscilava entre o luxo e a austeridade, Nasceu rico. Teve o favorecimento da família, de modo especial de sua tia. Sua formação foi primorosa. Parece ser sincero no início da carreira e no exílio. No fim da vida, foi coerente com suas propostas estoicas. Mas viveu o período de 13 anos de fausto e luxúria na corte do mais depravado dos imperadores romanos que depõe contra ele.
         Veja-se, agora, sua longa lista de obras, todas marcadas pela mais coerente ligação aos ideais estoicos:
        
Diálogos
De Consolatione ad  Marciam
De Consolatione ad  Helviam matrem

Tragédias

Sátira
Divi Claudii Apokolokyntosis (O Divino Cláudio que se transforma em abóbora).
         Os seus livros filosóficos se constituem de uma coleção incorretamente classificada como diálogos, mas ele assim os denominou. Somente pertencem ao gênero diálogo, ao modo de Platão, De Otio e De Tranquillitate Animi. Os demais são dissertações de cunho soliloquial. Dentre suas obras, duas têm relação com sua própria vida. Em De Otio, justifica o abandono da vida pública e De Vita Beata.
         Veja-se que ócio, segundo entendiam os filósofos romanos, era o recolhimento para a reflexão, estudo e produção intelectual. Opunha-se à vida mundana. Até porque, de modo geral, o trabalho como entendemos hoje, era considerado indigno, degradante e reservado aos escravos e às classes inferiores.
         Em De Vita Beata, que poderia ser traduzido como Sobre a Vida Feliz, ou Sobre a Felicidade na Vida, discorre sobre o uso dos bens materiais, sobre o poder, por parte dos que ocupam funções elevadas e possuem riquezas, que devem aproveitar essa oportunidade para fazer o bem a seus semelhantes.
         No seu texto que intitula De Tranquillitate Animi, discorre sobre a filosofia estoica. Reporta-se ao tema da felicidade sob o ponto de vista prático. Afirma que todo o que vive em público corre o risco do desequilíbrio de espírito, que exige certo grau de tranquilidade para atingir a felicidade.
         Em suas obras de consolação, desenvolve o mesmo tema, dirigindo-se a pessoas específicas: a mãe Hélvia, Márcia e Políbio. O filósofo, que está no exílio, com grandeza de espírito, consola os que se preocupam com ele.
         Em seu texto sobre a Providência (De Providentia), exorta os que sofrem os reveses da vida a confiarem na Providência, que caracteriza como um conjunto de forças superiores que intervêm na realidade humana. Admite mesmo o suicídio como uma forma honrosa de se livrar de uma dor insuportável.
         Sêneca é um moralista, é um filósofo da vida prática. Teve forte influência sobre os pensadores cristãos, de modo especial Santo Agostinho e São Jerônimo. Acreditam eles que o filósofo romano tenha se encontrado com o apóstolo São Paulo, que lhe é contemporâneo, e viveu por muitos anos em Roma. Aliás, tanto Paulo, quanto Pedro foram executados por ordem de Nero. Paulo, onde se encontra a maravilhosa catedral de são Paulo extra-murus e Pedro, onde s encontra a atual Igreja do Vaticano.
         É difícil crer que um homem que por tantos anos, mais de treze, tivesse convivido com o ambiente abjeto da corte de Nero e, aparentemente, compactuado com tantas barbaridades, convivendo com indivíduos criminosos, corruptos e essencialmente maus, ficasse imune a esse clima, como leva a crer a temática de suas obras.

BIBLIOGRAFIA
1.   BRITO, Gilda. (1981). Literatura latina: síntese histórica. Rio de Janeiro: Souza Marques.
2.   Eutropius. (1886) Eutropii Breviarium.  from The Tertullian Project.
3.   PARATORE, Ettore. (1983) História da literatura latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
4.   ROSTAGNI, Augusto. Storia della letteratura latina. Torino: Mondadori.
5.   SOUZA, Rômulo Augusto de. (1977). História da literatura latina. Belém: Serviço de Imprensa Universitária.
6.   Tacitus, Publius Cornelius. (1906) Annales. ed. Ch.D. Fisher, Oxford, Clarendon Press, 1906.

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