Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Creta - Grande Deusa –
Deusa das Serpentes
[...] Este
trabalho se propõe descrever a linguagem enquanto objeto de uma experiência
numinosa e arcaica. Esta experiência da linguagem está profunda e
inextricavelmente ligada a uma certa concepção arcaica de tempo, a uma certa
concepção arcaica de Ser e de Verdade. [...] a linguagem do aedo, i. e., a
canção que ao mesmo tempo é veículo de uma concepção do mundo e suporte de uma
experiência numinosa. (TORRANO, (2011), Teogonia.
p. 14).
O objeto desta
explanação é o matriarcado. Quando se fala em matriarcado, entende-se um grupo
social ginecocrático, em que o poder é institucionalmente exercido pelas
mulheres, de modo especial pelas mães de uma comunidade. Além do mais, a linha
sucessória e hereditária dá-se pelo lado feminino.
Etimologicamente,
o termo matriarcado forma-se do radical latino mater (mater, matris = mãe)
e do radical grego arque (ἀρχή,
ἀρχῆς = poder), sendo, portanto,
um termo híbrido.
Há uma forte hipótese originada no século XIX segundo a qual
os primeiros sistemas de governo, de modo especial no ocidente, tenham sido
matriarcados. Um antropólogo e jurista suíço, Johann Jakob Bachofen (1815 – 1887), foi o primeiro
pesquisador a lançar uma obra que apresenta esse ponto de vista. Trata-se do
livro Myth, Religion, and Mother Right, publicado pela
Universidade da Basiléia, onde Bachofen lecionou Direito Romano de 1841 a 1845.
O
autor suíço reuniu uma série de documentos, tentando demonstrar que todas as
sociedades humanas começaram a organizar-se a partir das mulheres e em torno
delas.
A
seguir, a partir de 1861, o arqueólogo britânico Sir Arthur Evans dedicou-se às
escavações da civilização Minoica, que se desenvolveu na Ilha de Creta, no Mar
Egeu, entre os séculos XXX e XV a. C., cujos primeiros habitantes remontam a,
pelo menos, 128.000 anos a. C. Evans afirmou, a partir de suas descobertas, que
a civilização aí desenvolvida, tratava-se de uma sociedade matriarcal. Chegou a
essa conclusão a partir da descoberta de que esse povo cultuava exclusivamente
divindades femininas.
Pesquisas
posteriores sobre a Civilização Minoica revelaram que, além de haver um culto unicamente
voltado a entidades femininas, apareciam também mulheres retratadas em funções
sacerdotais, administrativas e políticas.
Esses
primeiros estudos serviram de base para pesquisadores do século XX,
especialmente da lituana Marija Gimbutas, que desenvolveu relevantes
estudos sobre o Neolítico e a Idade de Bronze na Europa Antiga, tendo como tema
central a religião da Deusa Mãe, trabalho que concluiu na Universidade de Los
Angeles, nos Estados Unidos.
As três obras mais relevantes da autora são: "The
Goddesses and Gods of Old Europe" ("As Deusas e Deuses da Antiga Europa"); "The Language of the Goddesses" ("A Linguagem das Deusas")
e "The Civilization of the Goddess" ("A Civilização da Deusa").
Nessas obras, a autora desenvolveu
estudos sobre a família e os padrões familiares, as estruturas sociais, a arte,
a natureza, a alfabetização e os conhecimentos das comunidades europeias na
Idade do Bronze, mas, de modo todo especial, a religião, em que esses povos dão
primazia aos cultos das divindades femininas. Segundo sua interpretação, essas
sociedades ginecocratas (γυνή,
γυναικός = mulher e κράτος = poder) eram pacíficas, acolhiam os homossexuais e
gozavam de bom desenvolvimento econômico.
O
culto da Grande Mãe é o ritual religioso mais importante de toda a
Civilização Minoica. Essa divindade é um arquétipo. É mãe de todos os homens e
de tudo quanto existe na terra, mas é, essencialmente, mãe de todos os deuses.
Segundo Jean Tulard:
O traço mais original da religião
cretense parece ter sido uma predileção pelos símbolos. Tal simbolismo atribui
um valor emblemático a todo o material sagrado e, como o símbolo é suficiente
para criar uma ambiência divina, não se torna necessário que o deus seja
visível. Esse simbolismo de um caráter particular, no entanto, se casa
perfeitamente com um incontestável antropomorfismo. (TULARD, 1962, p.50-51).
Essa divindade feminina é senhora do céu, da terra, do mar,
dos homens e dos infernos. Apresenta-se sob a forma de pomba, de árvore, de
âncora, mas a sua forma preferencial é a de serpente. É símbolo de harmonia,
paz e amor. Seu traço fundamental é a fecundidade.
Para entendermos o papel das divindades na civilização
Neolítica e na Hera do Bronze, é necessário entender o mito como o entendiam as
sociedades primitivas. Ele não tem o sentido que damos hoje à fábula, lenda ou
ficção. Precisamos entendê-lo como nos apresenta Mircea Eliade:
[...] o mito conta uma história
sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo
fabuloso do "princípio". Em outros termos, o mito narra como, graças
às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir,
seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma
espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto,
a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi
produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que
se manifestou plenamente. (ELIADE, (1972), Mito e realidade. p. 9).
Portanto, nesse sentido, o mito narra algo realmente
ocorrido num tempo primordial, mediante intervenção de seres sobrenaturais. Ainda
Torrano, nos capítulos prefaciais da Teogonia, falando da linguagem sagrada do
mito diz:
A recitação
de cantos cosmogônicos tinha o poder de pôr os doentes que os ouvissem em
contato com as fontes originárias da Vida e restabelecer-lhes a saúde, tal o
poder e impacto que a força da palavra tinha sobre seus ouvintes. (TORRANO,
2011, Teogonia. p. 19).
De acordo com a crença grega, o universo, no princípio dos
tempos, era vazio e sem vida, regido por um princípio assexuado e amorfo,
denominado Caos (Χάος), que deu a origem e o começo a tudo quanto existe. Além
do mais, uma noite (Νυξ) perene pairava sobre tudo. Nesse eterno vazio, surgiu
Eros (Έρως), o desejo perene de movimento e mudança. Pela força de Eros,
gerou-se no Caos, a primeira grande divindade, maternal e feminina apresentada na
Teogonia de Hesíodo como Gaia.
Gaia, by Anselm Feuerbach (1875)
É a terra mãe concebida como elemento primordial, enquanto
que Deméter é a terra cultivada. Gaia é a mãe que gera e nutre todos os
viventes e, por fim, acolhe as cinzas de todos os mortos. Conforme afirma ainda
Torrano:
Evocada ou
não, contemplada ou sem templo, a Deusa Mãe está presente e nos nutre. As feras,
ainda que tenham perdido a inocência e a natural crueldade, são sempre as suas
crias. (TORRANO, (2011), Teogonia, p.
9).
A Grande Mãe, caracterizada pelos gregos como Gaia (¢Η Γαῖα), originou-se de um
processo partenogênico, isto é, sem qualquer intervenção de elemento masculino.
Contém em si mesma a totalidade da criação e permanece em todos os seres e em
todo o universo. Envolve todos os ciclos da vida, desde o nascimento, nutrição,
crescimento e por fim a própria morte. Ela é a terra mesma.
O homem curvava-se diante do sagrado poder feminino que
gerava a vida e perpetuava a espécie. Isso por milênios, sem que suspeitasse de
que ele participava desse processo divino. Enquanto hordas de machos corriam
pelos campos e florestas na busca de presas para alimentar a comunidade, as
mulheres permaneciam nas aldeias com os filhos. Dedicavam-se ao cuidado das moradias,
tomavam conta dos animais domésticos e mantinham uma pequena agricultura
caseira.
Advieram, então, a Idade do Bronze e depois a Idade do Ferro,
e as pacíficas sociedades matriarcais entraram em declínio. Tribos guerreiras e
nômades trouxeram a violência e a devastação. E, por fim, o homem deu-se conta
que rebanho que não tinha machos não se reproduzia. A concluir seu papel na
reprodução humana foi apenas um passo a mais.
Instituíram, de aí por diante, o patriarcado, fundado na
violência, na guerra e na destruição. Criou-se um panteão de deuses guerreiros
em substituição ao reinado da Grande Mãe.
Esse processo originou um sistema que dava primazia à
destreza e à força física, gerando uma civilização do logos e da razão.
Seguiram-se até mesmo correntes materialistas, passando a negar a supremacia do
espírito sobre a matéria. Essa é uma versão matriarcal da gênese das primeiras
comunidades humanas que hoje é defendida como mais provável por muitos
antropólogos.
BIBLIOGRAFIA:
1. BACHOFEN, Johann Jakob. (1887). Myth, Religion, and
Mother Right. Basiléia:
Editora da Universidade da Basiléia.
2. ELIADE,
Mircea. (1972). Mito e realidade. São
Paulo: PERSPECTIVA.
3. GIMBUTAS, Marija. (1974).The Goddesses and Gods of Old Europe. Los
Angeles: University of California Press.
6. HESÍODO. (2011). Teogonia. São Paulo. Iluminuras.
7. TULARD, Jean. (1962). Histoire de la Crète. Paris : PUF.
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