A Lágrima
Guerra Junqueiro
(1850-1923)
Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada,
Seca, deserta e nua, à beira d'uma estrada.
Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.
Sobre uma folha hostil duma figueira brava,
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,
A aurora desprendeu, compassiva e divina,
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.
Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la,
De perto era um diamante e de longe uma estrela.
Passa um rei com o seu cortejo de espavento,
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.
- "No meu diadema, disse o rei, quedando a
olhar,
Há safiras sem conta e brilhantes sem par,
"Há rubis orientais, sangrentos e doirados,
Como beijos d'amor, a arder, cristalizados.
"Há pérolas que são gotas de mágoa imensa,
Que a lua chora e verte, e o mar gela e
condensa.
"Pois, brilhantes, rubis e pérolas de Ofir,
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir
"Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,
Vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!"
E a lágrima celeste, ingênua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
***
Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,
Passa no seu ginete um cavaleiro andante.
E o cavaleiro diz à lágrima irisada:
"Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha
espada!
"Far-te-ei relampejar, de vitória em
vitória,
Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!
"E à volta há-de guardar-te a minha noiva,
ó astro,
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.
assim
alumiarás com teu vivo esplendor
Mil combates de heróis e mil sonhos
d'amor!"
E a lágrima celeste, ingênua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.
***
Montado numa mula escura, de caminho,
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.
Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:
Grandes arcas de cedro, abarrotadas d'oiro.
E o velhinho andrajoso e magro como um junco,
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,
Vendo a estrela, exclamou: "Oh Deus, que
maravilha!
Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha!
"Com meu oiro em montão podiam-se comprar
Os impérios dos reis e os navios do mar,
"E por esse diamante esplêndido trocara
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!"
E a lágrima celeste, ingênua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
***
Debaixo da figueira, então, um cardo agreste,
Já ressequido, disse à lágrima celeste:
"A terra onde o lilaz e a balsamina medra
Para mim teve sempre um coração de pedra.
"Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por
acaso,
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.
"Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos
Ouvi trinar, gorgear a música dos ninhos.
"Nunca junto de mim ranchos de namoradas
Debandaram, cantando, em noites estreladas...
"Voa a ave no azul e passa longe o amor,
Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive
flor!...
"Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d'água,
Cai na desolação desta infinita mágoa!"
E a lágrima celeste, ingênua e luminosa,
Tremeu, tremeu, tremeu... e caiu silenciosa!...
***
E algum tempo depois o triste cardo exangue,
Reverdecendo, dava uma flor cor de sangue,
Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...
E ao cálix virginal da pobre flor vermelha
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...
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25 de Março de 1888.
Abílio
Manuel Guerra Junqueiro foi um poeta português, nascido em Freixo de Espada
à Cinta, uma vila portuguesa do distrito de Bragança. Morreu em Lisboa em
1923.
Era
bacharel em Direito e exerceu diversas funções públicas, chegando a ser
deputado. Foi jornalista e poeta, tendo iniciado sua carreira literária no
movimento romântico, filiando-se, mais tarde, ao realismo.
Lutou
contra a monarquia e vinculou-se ao movimento republicano que muda o regime em
1910. Foi embaixador de Portugal na Suiça.
OBRAS:
Viagem À Roda Da Parvônia
A Morte De D. João (1874)
Contos para a Infância (1875) (eBook)
A Musa Em Férias (1879)
A velhice
do padre eterno (1885) (eBook)
(obra de maior destaque)
Finis Patriae (1890)
Os Simples (1892) (eBook)
Oração Ao Pão (1903)
Oração À Luz (1904)
Gritos da Alma (1912)
Pátria (1915) (eBook)
Poesias Dispersas (1920)
Duas Paginas Dos Quatorze Annos (eBook)
O Melro (eBook)
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