sábado, 3 de maio de 2014

RELATIONS BETWEEN SUBJECT, PREDICATE, AND OBJECT IN THE GREEK MEDIUM VOICE - RELAÇÕES SUJEITO-PREDICADO-OBJETO NA VOZ MÉDIA


* Este artigo foi apresentado originalmente no VIII CELSUL - CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL - realizado na UFRGS - em Porto Alegre, de 29 a 31 de outubro de 2008 e publicado nos anais do mesmo congresso.

AS RELAÇÕES SUJEITO–PREDICADO–OBJETO NA VOZ MÉDIA
Relations between subject, predicate and object  in the Greek medium voice,
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara, e  Profª. MSc. Rossana Dutra Tasso

Resumo. O objetivo deste trabalho é, ao mesmo tempo, analisar as relações enunciativas entre sujeito, predicado e objeto na voz média grega e Demonstrar a presença dessa voz na língua portuguesa. Não tem, a voz média, Um correspondente formal em nossa língua, como, de modo geral, não o tem Nas línguas modernas. É expressa perifrasticamente, mais comumente com um Verbo na voz ativa e um pronome reflexivo. Em português, “curar a doença” e “curar-se da doença” seriam exemplos respectivamente da voz ativa e da voz média. Na voz média, o processo verbal tem efeito sobre o sujeito, porém vai além da reflexiva portuguesa. O que caracteriza o médio é o fato de ele definir o sujeito como interior ao processo, junto com o objeto.
Palavras-chave: voz média; voz ativa; sujeito; enunciação.  

Abstract. The goal of this assignment is, at the same time, to analyze the Enunciatively relations between subject, predicate and object  in the Greek medium voice, and to demonstrate its presence in the Portuguese language. The medium voice does not have a formal correspondent in our language, just like, in a general way, in any modern language. It is periphrastically expressed, more commonly with an active voice verb and a reflexive pronoun. In Portuguese, “to heal from the sickness” and to “to heal oneself from the sickness” would be respectively examples of both active and medium voice. In the medium voice, the verbal process has effect over the subject; however it goes beyond the reflexive from the Portuguese language. What characterizes the medium voice is the fact that it defines the subject as a being inside the process, together with the object.

1.Introdução
         Poucos são os estudiosos da linguagem hoje que se dedicam ao estudo da voz média. Mesmo os que se debruçam sobre a gramática da língua grega clássica, quando abordam O tema, geralmente permanecem no nível morfológico-sintático. Porém, depois que os filósofos e, de modo especial, os psicanalistas dedicaram muitos estudos ao assunto, passa-se a dar-lhe maior importância.
         Este estudo tem por finalidade abordar as elações sujeito–predicado–objeto a partir das relações sintáticas de voz média. Para tanto, julgamos necessário retomar os conceitos fundamentais aqui implicados, bem como, pelo menos de modo superficial, as bases filosóficas que fundamentam as concepções inerentes a este tema.
2. As origens da voz média
         As vozes, ativa e passiva, sob o nome de ação e paixão, já  ao mencionadas no Órganon de Aristóteles, no livro das Categorias (Kathgori/ai), azendo parte as dez categorias fundamentais propostas pelo filósofo clássico – assim discriminadas, em português e, nos parênteses, em grego e latim, respectivamente: substância (οσία, substantia), quantidade (ποσόν, quantitas), qualidade (ποιόν, qualitas), relação (πρός τι, relatio), lugar (τοποs, ubi), tempo (ποτέ, quando), estado (κεσθαι, situs), hábito (χειν, habere), ação (ποιεν, actio) e paixão (πάσχειν, passio). Algumas vezes, essas categorias são também chamadas de classes.
         O nosso termo ação provém do verbo latino ago (ago, egi, actum, agere), que significa conduzir, levar, coagir, fazer, agir, etc. Do tempo supino actum, originou-se o termo ato e seu correlato ação. Daí surge a relação ativa entre o verbo e o sujeito. Aparece a manifestação e o conceito de sujeito com dupla significação: o sujeito sintático, regendo o predicado, e o sujeito empírico, agindo sobre o mundo e sobre o outro. Nessa voz, o sujeito empírico assume a consciência de sua ação sobre o mundo.
         O termo passivo/a provém do verbo  atino patior (patior, passus sum, pati), que significa sofrer, suportar, tolerar,  admitir. Desse verbo originaram-se os termos paixão e passivo. Dele deriva-se a concepção de voz passiva, em que o sujeito suporta, sofre a ação verbal. Por outro lado, nesta voz aparece a manifestação da ação do mundo ou do outro sobre o sujeito sintático: aparece a consciência da ação do mundo ou do outro sobre o indivíduo, sujeito empírico.
         Essa voz, a passiva, no entanto, tem surgimento posterior na maioria das línguas. Em se tratando das línguas do Oriente, essa voz somente surgiu após contatos mais efetivos com as línguas ocidentais, como se pode constatar pela citação abaixo:
Curiosamente, a voz passiva é tardia. Se comparamos com o caso De línguas como o chinês, vemos que a voz passiva é inexistente e só foi Adotada – muito tardiamente, digamos, nos sécs. XVIII e XIX – por contatos com o Ocidente (SPROVIERO, 1997, p.2).

         No processo de recuperação do conceito de voz média, há estudiosos que afirmam hoje que, no surgimento da linguagem humana, ela foi a voz original (que dá origem às demais), e fundamentam seus postulados nos estudos e análises do surgimento da linguagem na criança, realizados pela Psicologia  Experimental. A criança inicia sua inserção no uso da linguagem não se distinguindo do mundo que a cerca: nem dos objetos, nem dos outros seres humanos. A voz característica dessa fase da aquisição da linguagem seria a voz média.
         Essa voz era a fundamental nos primórdios do surgimento da linguagem no homem. Na infância da humanidade, o homem não tinha ainda consciência de si e do universo como ontologicamente distintos. Nesse sentido, sobre a voz média, Sproviero afirma:
E o ponto fundamental é a tese desenvolvida pelo pensador alemão Schöfer. Ele é de opinião de que houve uma fase em que havia somente o médio: ativo e passivo seriam análises do médio. O médio indicaria portanto  a fase da consciência não destacada do mundo, isto é, o homem e o mundo não se separavam, integravam o mesmo todo e a linguagem exprimia essa relação integral (Idem, ibidem, 1997, p.3).

         O termo análise provém da palavra grega lu/siv, cujo significado é solução, dissolução, ação de dissolver, desatar etc. Essa etimologia presta-se para o entendimento do termo análise, empregado por Sproviero na citação acima. Assim, o termo médio ter-se-ia dissolvido, analisado em ativo, passivo e médio no sânscrito e no Grego clássico.
         Dessa forma, o conceito de voz média está relacionado com a própria evolução do homem e ligado à própria formação da consciência do indivíduo acerca de si próprio, do mundo que o cerca e de suas relações intersubjetivas de alteridade.
         Acontece que o desenvolvimento do latim e do sânscrito, por caminhos semelhantes, motivou o apagamento da marca morfológico-sintática de voz média na maioria das línguas naturais em uso atualmente. O sânscrito, por motivos religiosos, e o latim, por motivos político-religiosos, fizeram dessas línguas, línguas artificiais. A Partir da gramática grega de Dionísio (Dionu/siov Qra/c), as gramáticas escritas Não passaram a não corresponder a línguas naturais.
         As gramáticas não eram descritivas. A primeira gramática do sânscrito, escrita pelo religioso indiano Panini, não refletia a língua realmente falada pelos usuários do idioma: visava a efeitos sobrenaturais do ritual sagrado e buscava aproximar-se da língua primitiva em que os textos do culto haviam sido redigidos. Essa gramática criou uma língua que passou a ser usada nos templos de toda a Índia por muitos séculos. Tal formalização gramatical serviu  e base para a criação das gramáticas escolares desde então usadas nas escolas como instrumento de ensino.
         O latim medieval se desenvolveu de modo semelhante. Também ele não foi uma língua falada. Os gramáticos romanos tomaram uma língua artificial criada por influência dos gramáticos gregos clássicos, o latim clássico, promoveram algumas mudanças que o momento exigia, impuseram normas que as fixassem, dogmatizaram seu uso e criaram um vocabulário filosófico. Então, essa língua consagrou-se (do verbo latino sacrare, por sua vez ligado ao substantivo sacer, sacerdos, que significa sacerdote) como veículo de cultura. Assim, todo o texto que não seguisse as normas da gramática, tornada oficial dos estados, não era considerado científico.
         As gramáticas escolares foram elaboradas a partir dessas normas e impostas aos alunos que quisessem utilizar a norma culta. Não eram gramáticas descritivas de línguas naturais. É lógico que essa imposição contribuiu para originar as novas línguas naturais, não por seguirem esses parâmetros impostos, mas exatamente por se fundarem em princípios de outra natureza, a das relações sociais naturais.
         A gramática clássica grega, assim como a temos hoje, reduz a voz média ou a uma simples reflexiva ou, na melhor das hipóteses, apresenta-a como expressão de uma ação que o sujeito pratica particularmente interessado em seu efeito, ou em seu próprio interesse. Veja-se o seguinte exemplo do verbo  tomado primeiramente na voz ativa: αρέω (eu tomo). Passado para a voz média, fica: αρέοµαι (eu escolho), isto é, tomo de acordo com meu interesse.
         Nesse emprego, a voz média perdeu sua dimensão primeira, isto é, a de ser uma marca primordial de indiferenciação do indivíduo com o universo e com a própria divindade que caracterizava os tempos míticos. Aparece apenas como manifestando uma ação verbal em que o sujeito age de acordo com seus próprios interesses.
         Há, também, ainda hoje, forte preocupação com a mudança,  com o que se chama de “corrupção” ou “perdas” de dimensões da língua. As citações acima foram iradas de uma entrevista feita a Mário Bruno  Sproviero, professor de filosofia da USP, sobre um artigo publicado por ele a respeito da linguagem, em que destacara o desaparecimento morfológico-sintático da voz média nas línguas naturais em uso atualmente. Valemo-nos de afirmativas dele e de seu entrevistador para expressarmos nosso ponto de vista sobre o tema.
         Afirma o entrevistador:

Antes de tratarmos da voz média e para tomar um caso ligado diretamente às transformações do português realmente falado no Brasil de hoje (sobretudo pelo jovem...), ocorre-me que um dos exemplos mais fortes dessa ligação pensamento/linguagem está acontecendo com o atual processo de supressão (fática) do subjuntivo (ou da distinção subjuntivo/indicativo) O que se ouve é: "Se você quer que eu vou, eu vou...". Parece-me que esta supressão (gramatical) corresponde a uma supressão de distinção de categorias mentais: a abolição da distinção entre o real em ato e o simplesmente possível ou desejado... (Idem,  ibidem, 1997, p.1)

         Em sua resposta, o entrevistado concorda com o posicionamento do entrevistador, dizendo:

Exatamente. O exemplo é muito bom. E mostra como um empobrecimento de linguagem corresponde a um estreitamento de horizontes mentais. Isto é mais nítido ainda no alemão, cujo subjuntivo é ainda mais detalhado do que o nosso (quanto a modos de possibilidade, desejo etc.) (Idem, ibidem, p.1).

         Esses posicionamentos em relação ao uso linguístico estão intimamente relacionados com os de Dionísio Trácio, no século II a. C., em relação à língua grega. Vivendo em Alexandria, portanto  ora da Grécia, e num período em que, por força do imperialismo, não mais do estado grego, mas ainda da cultura helênica, não mais no período helênico, mas no período helenístico, o humanista da Trácia elaborou sua gramática.
         Ocorre que no período helênico, cujo apogeu se dá no século V a. C., os literatos, mormente os poetas, empregavam uma  linguagem altamente rebuscada na produção de suas obras de indiscutível qualidade literária.
         Dionísio, vendo a produção literária de seu tempo, o período helenístico, em que a língua e cultura grega se disseminavam por todos os países do Mediterrâneo, encontrando o emprego da língua grega pelos seus contemporâneos arvorados em homens de cultura, ficou extremamente preocupado com as diferenças entre os textos em grego produzidos pelos coetâneos dele e os das obras clássicas da Grécia, produzidos no ápice da cultura dessa nação. Isso o levou a redigir sua gramática, que nada mais é do que um conjunto de regras de escrever, orientadas pelos textos da literatura grega (rotulada hoje de clássica) produzidos no período helênico. Ora, nenhum grego empregava essa linguagem para a comunicação diária, muito menos em seu uso coloquial.
         No entanto, a gramática de Dionísio serviu de base para a elaboração das gramáticas  latinas e de todas as gramáticas prescritivas que e elaboraram depois de então. Esta breve reflexão servirá de base para nossos posicionamentos neste artigo.
         Discordando do ponto de vista de Sproviero e de seu entrevistador, no que se refere à mudança linguística, e fundados na concepção de que gramáticas prescritivas são calcadas em modelos políticos autoritários, fazemos os comentários que se seguem.
         As línguas não se regem por normas impostas por quem quer que seja. As regras que orientam suas mudanças são as mesmas que regem as transformações sociais. E nessas transformações linguísticas não há enriquecimento, empobrecimento ou corrupção: surgem termos que têm orientação filosófico-sociológica de outra ordem e natureza, ora ligadas à moral e à religião, ora a interesses menos nobres. E o sujeito passa a conceber a realidade de outra maneira. São diferentes estratégias discursivas eleitas pelos falantes para se manifestarem em seu idioma que se revestem de outra roupagem para expressar um olhar próprio, ao mesmo tempo igual e novo, sobre si mesmos e a realidade que os cerca. Não é nada melhor nem pior: é diferente.
         Na mesma direção em relação à mudança, Sproviero comenta ainda o apagamento da marca formal do subjuntivo e, a seguir, da voz média:

Da mesma maneira que, como você dizia, nós estamos, hoje, numa fase de perda do subjuntivo e, com ele, da distinção entre realidade e possibilidade; no caso do grego, as gramáticas foram escritas numa época em que a voz média já não era mais empregada e ela foi objeto de uma teorização que não compreendia o alcance e o sentido dessa voz (Idem, ibidem, p. 3).

         Em nosso ponto de vista, não ouve perda nenhuma na ausência a marca de subjuntivo. Não podemos concordar com esse modo de ver. Fato de não empregar uma marca linguística para distinguir realidade e possibilidade não significa que os usuários da língua hoje não a percebam e não sejam capazes de manifestá-la, quer oralmente quer em textos. Trata-se do que concebemos aqui como diferença de estratégia linguística sem determinação qualitativa de melhor ou pior.
         Voltando à voz média, seu uso vai desaparecendo, historicamente, entre o século IX a. C., período homérico, auge do seu uso e início do declínio; e o século II a. C., período do gramático Dionísio já citado anteriormente, em que seu emprego se reduz ao que aparece na gramática grega também já mencionado.
         O período homérico é pós-guerra de Tróia, que ocorreu no século II a. C., portanto, início do imperialismo grego. Até então, desenvolviam-se as pequenas comunidades das cidades-estado, em que o indivíduo era apenas um cidadão, não se diferenciando dos demais.

 O médio é muito mais a consciência da comunidade, uma comunidade da qual o sujeito não se distingue; numa sociedade complexa, a forma média vai se extinguindo numa estrutura cada vez mais complexa e tendendo ao Império (Idem, ibidem, p. 5).

         Desse ponto histórico em diante, cada vez mais o indivíduo passou a pertencer menos à comunidade e mais ao universo, ao império:
O que foi a filosofia, senão um esforço constante para consumar a ponte homem-mundo. Tanto é assim que sempre encontramos uma dificuldade de distinguir homem-mundo e, na dimensão epistemológica, a distinção sujeito/objeto, não excluímos do objeto o próprio eu do sujeito, que está presente em todos os atos do conhecimento: eu me conheço ao conhecer... Já o eu, enquanto sujeito ontológico, se distingue do mundo...(Idem, ibidem, p. 5).

         A partir do desaparecimento desse elo homem–mundo expresso por marcas linguísticas, o ser humano, com muitos pensadores, buscou essa ponte. É o caso de Kant em Crítica da Razão Prática. Já  Sidarta Gautama, Buda, no século VI a..C., buscavam a ligação entre o mundo mítico e a nova realidade.
         Essa marca de relação sujeito–objeto na ação, segundo algumas correntes da psicologia, desapareceu como uma forma fixa, morfológica, na linguagem, mas permanece no inconsciente e se manifesta na enunciação.
3. Os estudos de Benvensite sobre a voz média
         A contribuição dos estudos enunciativos acerca da voz medial vem através de Émile Benveniste. Em Problemas de Linguística Geral, tomo I, há um capítulo intitulado Ativo e médio no verbo, datado de 1950, no qual o autor examina a particularidade da distinção entre voz ativa e voz medial nas línguas indo-europeias, valendo-se do conceito de diátese:

Toda forma verbal finita pertence necessariamente a uma ou outra diátese, e mesmo certas formas nominais do verbo (infinitos, particípios) igualmente se submetem. Equivale a dizer que tempo, modo, pessoa, número têm uma expressão diferente no ativo e no médio (BENVENISTE, 1976, p.184).

         O conceito de diátese não aparece explicitamente definido por Benveniste. No entanto, é possível inferir, por aproximação ao campo a Medicina, que o termo diátese é empregado para referir-se a uma predisposição, uma característica imanente dos verbos, que os faz selecionar argumentos de tal forma que, no caso específico da voz média, veicule-se a informação de que o agente verbal efetua algo se afetando direta e concomitantemente. Assim, tem-se como exemplo nascer, verbo cujo significado vai além do espectro ativo: nascer é, para o sujeito, passar a integrar o mundo e interagir com ele; ainda que, em uma primeira instância, ele não pratique a ação ou controle-a, nascer é uma ação que afeta o sujeito em sua relação com a realidade, no dar-se conta da própria existência.
         Como se pode observar, ao tomar como exemplo o verbo nascer, destaca-se o caráter filosófico na re-ligação do homem com o mundo. A categoria “voz” é “a diátese fundamental do sujeito no verbo”, conforme Benveniste. O homem transforma, modifica o mundo no mesmo instante em que transforma a si próprio: eis o princípio intrínseco à compreensão da voz média. “O homem cumpre algo que se cumpre nele” (idem, ibidem, p.188).
         Em seu estudo, Benveniste dedica-se a extinguir as relações entre sujeito e processo na voz média por oposição à voz ativa. Desse modo, o linguista e filósofo ressalta que, na voz ativa, os verbos marcam processos que se efetuam a partir do sujeito e fora dele, como em soprar. Tendência distinta se marca na voz média, uma vez que os verbos apontam a processos dos quais o sujeito é a sede e fica, portanto, no interior do processo. Será a transitividade verbal o elemento indispensável à conversão do médio ao ativo.
         A voz passiva é compreendida por Benveniste como uma transformação histórica da voz média. O sujeito que primeiramente era visto como atuando no mundo pela intenção de atuar sobre si próprio passa, na voz passiva, a ser atuado pelo mundo. O agente converte-se em paciente.
         Uma diferenciação entre duas modalidades de diátese é examinada ao final de Ativo e médio no verbo. Considerando-se a posição ocupada pelo sujeito quanto ao processo expresso pelo verbo, haveria para a voz ativa uma noção de diátese externa, enquanto que para a voz média haveria uma diátese interna. Por conseguinte, a diátese soma-se, na proposta de Benveniste, às categorias de pessoa e de número para delimitar o que chama de “campo posicional do sujeito”, isto é, o modo como o sujeito situa-se em relação ao processo verbal.
         A contribuição deste trabalho de Benveniste está, parece-nos, no fato de que são apresentadas evidências linguísticas para a compreensão da voz média, ainda que muitos gramáticos tenham-na associado a uma mera marca do interesse do sujeito quanto ao processo.
         Suportada pela língua, a marca medial supostamente tem seu valor na oposição à voz ativa – oposição esta que fragiliza o princípio de que a voz média se explica pela intervenção de fatores extralinguísticos. O homem está na língua e, assim sendo, o estudo da voz média é mais uma comprovação disso.
4. A presença da voz média na língua portuguesa: a relação sujeito–
predicado–objeto

         Pesquisas recentes propõem-se a discutir a repercussão da voz média na língua portuguesa em seu estado atual. Em artigo de 2002, Camacho objetiva distinguir construções médias de construções reflexivo-recíprocas, buscando “evidências formais, semânticas e tipológicas”. Para tanto, vale-se das considerações de Câmara Jr. (1972),

para quem o medial corresponde morfossintaticamente a uma construção em que à forma do verbo na voz ativa se acrescenta um pronome adverbal átono, referente à pessoa do sujeito, e a função semântica que veicula é a de uma integração no estado de coisas que dele parte (CAMACHO, 2002, p. 2).

         Camacho afirma que há, no português, itens lexicais determinados, todos eles verbos inerentemente pronominais, para sinalizar a voz média. A partir disso, declara que “a voz média é uma categoria linguística potencial, capaz de manifestar-se gramaticalmente”. Mais adiante, ressalta que

O português dispõe de um elenco considerável de verbos intransitivos em que iniciador e entidade afetada convergem no  sujeito, como desaparecer, evoluir etc. por um lado, e cair, morrer etc. por outro. Mesmo assim, esses predicados não se enquadram no sistema de diátese medial, não só por serem destituídos de marcação formal, mas também por não apresentarem contraparte transitiva, que permita algum tipo de seleção. (idem, ibidem, p.5).[grifos nossos].

         Destaquemos aqui nossa discordância em relação à posição assumida por Camacho nesta última citação. Se, como já postulado por Benveniste, a voz média deve ser compreendida como o processo em que o agente efetue algo se afetando, a marca formal torna-se secundária, ou até mesmo redundante. Para fins de classificação, relevante deve ser a presença da diátese interna no processo desencadeado pelo verbo. A voz média, portanto, é perceptível inclusive em formas verbais desprovidas de marcação pronominal. O critério de transitividade verbal somente se justifica na contraposição à voz ativa, já que o signo linguístico é configurado pelas oposições que ele desencadeia no interior do sistema.
         Além disso, os pronomes átonos são os marcadores tanto da voz média quanto da voz reflexiva, o que obscurece a distinção entre uma e outra simplesmente pelo critério morfossintático. O fator situacional, como determinante do uso que o sujeito faz do sistema (ou melhor, do aparelho formal da enunciação, trazendo Benveniste), não pode ser descartado.
         Parece-nos, portanto, que o olhar conferido pelos estudos enunciativos à linguagem impede-nos de cercar a compreensão da voz media à marcação clítica, ou mesmo à transitividade verbal. É inegável que no enfoque medial há traços da voz reflexiva, tal como a concebemos hoje, semântica e sintaticamente, inclusive.
         Entretanto, insistimos que os pressupostos benvenisteanos, seja quanto aos planos semiótico e semântico – que marcam a intervenção do homem na língua –, seja quanto à descrição do conceito de diátese –, em especial a interna, que situa o sujeito no interior do processo verbal, como agente diretamente interessado e afetado –, possibilitam a percepção da voz média sob um ponto de vista abrangente e mais próximo à sua noção primeira, aquela anterior à gramática de Dionísio.
         A Gramática da Língua Portuguesa (2003), de Maria Helena Mira Mateus et al., reserva algumas páginas ao estudo da voz média. No capítulo A família das construções inacusativas, há uma seção intitulada Construções médias,. após os exemplos “(a) A tua letra lê-se  bem”, “(b) Esse tipo de tecido lava-se facilmente” e “(c) Os trabalhos bons corrigem-se com mais prazer”, as construções médias são assim descritas:
Estas construções partilham propriedades que caracterizam a variante inacusativa dos verbos de alternância causativa e as passivas sintácticas e de -se. Com efeito,  os verbos que nelas ocorrem são verbos transitivos, que seleccionam um argumento externo e um argumento interno directo, mas nestas construções apenas ocorre o argumento nominal com o papel temático interno[...] (MIRA MATEUS et al., 2003, p. 536).

         Conforme se percebe, as considerações de Mira Mateus et al. Retornam à marcação morfossintática como critério obrigatório para a caracterização de uma construção medial. O princípio de que há um argumento nominal com papel temático interno ao processo desencadeado pela forma verbal medial reaparece, mas não se fazem notar na definição acima exposta nem o interesse do sujeito no processo de que é agente (um tecido não teria a intenção de lavar-se a si próprio, por exemplo), nem mesmo a indissociabilidade sujeito/mundo, principal marca da voz média das línguas naturais da Antiguidade.
         Ao final da referida seção, os autores atentam para o fato de que “alguns verbos aceitam a construção média sem exigirem morfologia média explícita através do clítico –se” (Idem,ibidem, p. 538). Citam, logo após,os seguintes exemplos para uma “morfologia média abstracta”: “(a) Estas calças vestem bem”,“(b) Esta tinta seca rapidamente” e “(c) Este pavio queima mal”. Mais uma vez comprova-se que a definição de voz média, tal como a estamos pensando neste artigo, não é contemplada pelos estudos desses autores. Realmente, vimos insistindo na proposição de que a marca morfossintática é dispensável à caracterização da voz média, uma vez que a particularidade medial está no significado do processo desencadeado por alguns verbos e na diátese interna própria deles. Porém, não nos parece coerente,  pelo menos segundo entendemos, considerar que em um exemplo como “Este pavio queima mal” se observa um interesse do sujeito no processo, muito menos sua re-ligação com o mundo ao se deixar afetar pelo processo do qual se põe como agente.
         Voltando à nossa posição inicial, as línguas, desde as antigas, mantêm algumas formas que marcam a voz média, preservando laços dessa relação sujeito-mundo.      Exemplo claro e rico dessa voz havia já no latim, nas formas dos verbos depoentes. O interessante é que muitos desses verbos chegaram ao português e fazem-se presentes ainda, embora nosso idioma não tenha, para isso, uma marca morfológica. Vejamos alguns exemplos.
         Verbo depoente é aquele que tem uma forma passiva e significado ativo. Um dos mais usados é loquor, falar. Sempre que falo, falo também para mim mesmo. Ao mesmo tempo em que falo para o outro, sou também destinatário da minha própria fala.
         Outro verbo depoente é patior, sofrer, padecer. Há uma profunda dimensão de relação sujeito-verbo-objeto expressa por esse verbo, pois a  ação de sofrer recai sempre sobre o sujeito que sofre. E sofrer não é sempre sinônimo de padecer, embora essa dimensão sempre acompanhe o processo em sua profundidade. Sofrer transformação pode conter muito de positivo, mas é sempre desalojar-se. Há uma ideia de perda também, portanto.
         O verbo patior liga-se também à ideia de paixão através do pretérito perfeito (passus sum). Daí provém o adjetivo passional que evoca duplicidade de apego e dor. Além disso, traz uma dimensão relacional entre sujeito, predicado e duplo objeto, enquanto o sujeito, quando sofre pela dor alheia, tem o outro como objeto indireto (quem sofre, sofre por alguém) e a si mesmo como objeto reflexivo do próprio sofrer, o que faz parte da dimensão depoente do verbo e que na tem marca morfológica na língua portuguesa.
         Há certos verbos em que se pode perceber melhor a presença da voz média, mesmo não havendo uma marca morfológica para expressá-la. Etimologicamente, educar forma-se do verbo latino duco (duco, duxi, ductum, ducere), que significa conduzir, precedido da preposição ex, que significa para fora. Essa preposição, em forma prefixal, se junta à forma verbal para que o novo verbo perca seu sentido físico e assuma um outro, metafórico. No entanto, mantém o sentido físico de estar junto, preso a si, de tal forma que só é possível educar, educando-se. Observe-se a presença de sujeito, verbo e duplo objeto: o educando e o próprio educador estão implicados no mesmo processo, o que compreendemos sob a ótica do conceito de diátese.
         Há nessa concepção de educação toda uma riqueza a explorar, que cabe muito mais ao pedagogo e menos ao linguista, no que tange ao sentido desse movimento para fora. Porém, dele também deve dar conta o estudioso da linguagem, uma vez que está na posição daquele que revela o desvela o processo encoberto nos meandros da linguagem, meio em que educador e educando simultaneamente se ensinam, pois caminham juntos.
         Na metáfora platônica da caverna, tateiam educando e educador nas trevas, à busca da luz que nunca é completa, pois o ser humano está em constante fazer-se e descobrir-se, descobrindo-se no outro e como outro de si mesmo, como objeto da própria investigação.
         Meditari é um verbo de forma morfológica passiva, mas com dimensão média. Não se trata da forma ativa meditare, que já contém uma dimensão média, mas a passiva meditari manifesta uma relação medial mais intensa, pois a voz média não está penas no meio entre a passiva e a ativa, mas está no meio entre o sujeito e o mundo. A predicação de meditari é meditar-se a si mesmo enquanto inserido no mundo.
         Estas formas de manifestação  a voz média não permanecem exclusivas à linguagem filosófica, nem são características apenas das línguas clássicas. Pelo contrário, estão presentes na linguagem de  todo dia, em muitos tipos de expressões, como também fazem parte dos textos literários.
         Um exemplo claro do português do Brasil, na linguagem  coloquial, é o dativo ético, em que aparecem expressões como Me morreu o gato, Agora me acontece mais essa ou Não é que ela me foi embora? Essas expressões mostram claramente a presença da voz média em nosso idioma. A diátese verbal, na mesma medida em que atinge o objeto, afeta concomitantemente o sujeito.
         Em Me morreu o  gato, como nos demais exemplos, está clara a afetação do sujeito pela relação do predicado com o objeto. Não são, porém, apenas marcas negativas de perda. Podem ocorrer situações em que o sujeito recebe, da relação verbo objeto, uma afetação de carga positiva, como é o caso do exemplo a seguir: Não é que ele me ganha o prêmio?!
         Como afirmamos anteriormente, em português, podem-se encontrar exemplos da voz  média também  nos textos  literários, como acontece no poema abaixo, de Cecília Meireles.

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada. (Cecília Meireles)

         Nos fragmentos “não sinto gozo nem tormento.(...) Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, (...) Não sei se fico ou passo. (...) E um dia sei que estarei mudo: – mais nada”, o poeta vive essa integração com o universo de que faz parte. Em sinto... gozo estão presente simultaneamente o sujeito que sente e goza integrado no mundo em que se realiza a ação verbal. Em edifico, permaneço, desfaço e fico, passo e estarei, ao mesmo tempo em que edifico, me edifico; em que faço, me faço; em que fico, fico eu mesmo no mundo a que pertenço indissociavelmente; e estarei, com sua dimensão  presente e futura, situando o sujeito no universo com o substantivo mundo.

5. Considerações finais
         Pensar a voz média é estabelecer outros padrões para a compreensão da relação sujeito–predicado–objeto. Tentamos ressaltar neste trabalho que considerar a perspectiva medial na linguagem vai além de situar o sujeito no interior do processo verbal de que é agente, ou simplesmente avaliar seu interesse quanto ao resultado do processo. Sujeito e objeto tornam-se indissociáveis na voz média. Por consequência, através dessa categoria, pontua-se a re-ligação do homem com o mundo, do homem com a realidade que dele não se pode separar.          O homem, igual à linguagem,  só em razão de existir pelo princípio da relação.
         A diátese interna manifesta a própria essência epistemológica do ser humano que não se pode distanciar do mundo que observa, descreve e analisa, pois é  indissociável dele. Essa separação é apenas ontológica: olhar para o homem sujeito dissociado do universo, objeto da observação, é apenas um processo didático. Homem, universo e linguagem fazem arte de um todo que só pode ser concebido numa visão apodítica universal. Estes estudos são apenas parciais, exigindo  de nós, pesquisadores, um aprofundamento teórico e uma observação mais aguçada do emprego da língua.
6. Referências e Citações
BENVENISTE, Émile. Ativo e médio no verbo. In: Problemas de Linguística Geral. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1976. Tomo I, p. 183-189.
CAMACHO, Roberto Gomes. Em defesa da categoria de voz média no português. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244502003000100004&l ng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 10 ago. 2008.
MEIRELES, Cecília. Motivo. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/ceciliameireles01.html>Acesso em: 11 set. 2008.
MIRA MATEUS, Maria Helena et. al. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

SPROVIERO, Mário Bruno. Linguagem e consciência: a voz média. Disponível em:<http://www.hottopos.com/mirand3/linguage.htm.>Acesso em: 10 ago. 2008.

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