* Este artigo foi apresentado originalmente no VIII CELSUL - CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL - realizado na UFRGS - em Porto Alegre, de 29 a 31 de outubro de 2008 e publicado nos anais do mesmo congresso.
AS RELAÇÕES SUJEITO–PREDICADO–OBJETO NA VOZ MÉDIA
Relations
between subject, predicate and object in
the Greek medium voice,
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara, e Profª. MSc. Rossana Dutra Tasso
Resumo. O objetivo deste trabalho é, ao mesmo tempo, analisar as
relações enunciativas entre sujeito, predicado e objeto na voz média grega e
Demonstrar a presença dessa voz na língua portuguesa. Não tem, a voz média, Um
correspondente formal em nossa língua, como, de modo geral, não o tem Nas
línguas modernas. É expressa perifrasticamente, mais comumente com um Verbo na
voz ativa e um pronome reflexivo. Em português, “curar a doença” e “curar-se da
doença” seriam exemplos respectivamente da voz ativa e da voz média. Na voz
média, o processo verbal tem efeito sobre o sujeito, porém vai além da
reflexiva portuguesa. O que caracteriza o médio é o fato de ele definir o
sujeito como interior ao processo, junto com o objeto.
Palavras-chave: voz média;
voz ativa; sujeito; enunciação.
Abstract.
The goal of this assignment is, at the same time, to analyze the Enunciatively
relations between subject, predicate and object in the Greek medium voice, and to demonstrate its
presence in the Portuguese language. The medium voice does not have a formal correspondent
in our language, just like, in a general way, in any modern language. It is
periphrastically expressed, more commonly with an active voice verb and a reflexive
pronoun. In Portuguese, “to heal from the sickness” and to “to heal oneself from
the sickness” would be respectively examples of both active and medium voice. In
the medium voice, the verbal process has effect over the subject; however it goes
beyond the reflexive from the Portuguese language. What characterizes the medium
voice is the fact that it defines the subject as a being inside the process, together
with the object.
1.Introdução
Poucos são os estudiosos
da linguagem hoje que se dedicam ao estudo da voz média. Mesmo os que se
debruçam sobre a gramática da língua grega clássica, quando abordam O tema,
geralmente permanecem no nível morfológico-sintático. Porém, depois que os
filósofos e, de modo especial, os psicanalistas dedicaram muitos estudos ao assunto,
passa-se a dar-lhe maior importância.
Este estudo tem por
finalidade abordar as elações sujeito–predicado–objeto a partir das relações
sintáticas de voz média. Para tanto, julgamos necessário retomar os conceitos
fundamentais aqui implicados, bem como, pelo menos de modo superficial, as
bases filosóficas que fundamentam as concepções inerentes a este tema.
2. As origens da voz média
As vozes, ativa e passiva,
sob o nome de ação e paixão, já ao mencionadas no Órganon de Aristóteles,
no livro das Categorias (Kathgori/ai), azendo parte as dez categorias
fundamentais propostas pelo filósofo clássico – assim discriminadas, em
português e, nos parênteses, em grego e latim, respectivamente: substância (οὐσία, substantia), quantidade (ποσόν, quantitas), qualidade (ποιόν, qualitas), relação (πρός τι, relatio), lugar (τοποs, ubi), tempo (ποτέ, quando), estado (κεῖσθαι, situs), hábito (ἔχειν, habere), ação (ποιεῖν, actio) e paixão (πάσχειν, passio). Algumas vezes, essas categorias são também
chamadas de classes.
O nosso termo ação provém
do verbo latino ago (ago, egi, actum, agere), que significa conduzir, levar,
coagir, fazer, agir, etc. Do tempo supino actum, originou-se o termo ato e seu
correlato ação. Daí surge a relação ativa entre o verbo e o sujeito. Aparece
a manifestação e o conceito de sujeito com dupla significação: o sujeito
sintático, regendo o predicado, e o sujeito empírico, agindo sobre o mundo e
sobre o outro. Nessa voz, o sujeito empírico assume a consciência de sua ação
sobre o mundo.
O termo passivo/a provém
do verbo atino patior (patior, passus
sum, pati), que significa sofrer, suportar, tolerar, admitir. Desse verbo
originaram-se os termos paixão e passivo. Dele deriva-se a concepção de voz
passiva, em que o sujeito suporta, sofre a ação verbal. Por outro lado, nesta
voz aparece a manifestação da ação do mundo ou do outro sobre o sujeito
sintático: aparece a consciência da ação do mundo ou do outro sobre o
indivíduo, sujeito empírico.
Essa voz, a passiva, no
entanto, tem surgimento posterior na maioria das línguas. Em se tratando das
línguas do Oriente, essa voz somente surgiu após contatos mais efetivos com as
línguas ocidentais, como se pode constatar pela citação abaixo:
Curiosamente, a voz passiva é tardia. Se comparamos
com o caso De línguas como o chinês, vemos que a voz passiva é inexistente e só
foi Adotada – muito tardiamente, digamos, nos sécs. XVIII e XIX – por contatos
com o Ocidente (SPROVIERO, 1997, p.2).
No processo de recuperação
do conceito de voz média, há estudiosos que afirmam hoje que, no surgimento da
linguagem humana, ela foi a voz original (que dá origem às demais), e
fundamentam seus postulados nos estudos e análises do surgimento da linguagem
na criança, realizados pela Psicologia Experimental. A criança inicia sua
inserção no uso da linguagem não se distinguindo do mundo que a cerca: nem dos
objetos, nem dos outros seres humanos. A voz característica dessa fase da aquisição
da linguagem seria a voz média.
Essa voz era a fundamental
nos primórdios do surgimento da linguagem no homem. Na infância da humanidade,
o homem não tinha ainda consciência de si e do universo como ontologicamente
distintos. Nesse sentido, sobre a voz média, Sproviero afirma:
E o ponto fundamental é a
tese desenvolvida pelo pensador alemão Schöfer. Ele é de opinião de que houve
uma fase em que havia somente o médio: ativo e passivo seriam análises do
médio. O médio indicaria portanto a fase
da consciência não destacada do mundo, isto é, o homem e o mundo não se separavam,
integravam o mesmo todo e a linguagem exprimia essa relação integral (Idem,
ibidem, 1997, p.3).
O termo análise provém da palavra
grega lu/siv, cujo significado é solução, dissolução, ação de dissolver,
desatar etc. Essa etimologia presta-se para o entendimento do termo
análise, empregado por Sproviero na citação acima. Assim, o termo médio
ter-se-ia dissolvido, analisado em ativo, passivo e médio no sânscrito e no
Grego clássico.
Dessa forma, o conceito de
voz média está relacionado com a própria evolução do homem e ligado à própria
formação da consciência do indivíduo acerca de si próprio, do mundo que o cerca
e de suas relações intersubjetivas de alteridade.
Acontece que o
desenvolvimento do latim e do sânscrito, por caminhos semelhantes, motivou o
apagamento da marca morfológico-sintática de voz média na maioria das línguas
naturais em uso atualmente. O sânscrito, por motivos religiosos, e o latim, por
motivos político-religiosos, fizeram dessas línguas, línguas artificiais. A
Partir da gramática grega de Dionísio (Dionu/siov Qra/c), as gramáticas escritas
Não passaram a não corresponder a línguas naturais.
As gramáticas não eram
descritivas. A primeira gramática do sânscrito, escrita pelo religioso
indiano Panini, não refletia a língua realmente falada pelos usuários do
idioma: visava a efeitos sobrenaturais do ritual sagrado e buscava aproximar-se
da língua primitiva em que os textos do culto haviam sido redigidos. Essa
gramática criou uma língua que passou a ser usada nos templos de toda a Índia
por muitos séculos. Tal formalização gramatical serviu e base para a
criação das gramáticas escolares desde então usadas nas escolas como
instrumento de ensino.
O latim medieval se
desenvolveu de modo semelhante. Também ele não foi uma língua falada. Os
gramáticos romanos tomaram uma língua artificial criada por influência dos
gramáticos gregos clássicos, o latim clássico, promoveram algumas mudanças que o
momento exigia, impuseram normas que as fixassem, dogmatizaram seu uso e
criaram um vocabulário filosófico. Então, essa língua consagrou-se (do verbo
latino sacrare, por sua vez ligado ao substantivo sacer, sacerdos, que significa
sacerdote) como veículo de cultura. Assim, todo o texto que não seguisse as normas
da gramática, tornada oficial dos estados, não era considerado científico.
As gramáticas escolares
foram elaboradas a partir dessas normas e impostas aos alunos que quisessem
utilizar a norma culta. Não eram gramáticas descritivas de línguas naturais. É
lógico que essa imposição contribuiu para originar as novas línguas naturais,
não por seguirem esses parâmetros impostos, mas exatamente por se fundarem em
princípios de outra natureza, a das relações sociais naturais.
A gramática clássica
grega, assim como a temos hoje, reduz a voz média ou a uma simples reflexiva
ou, na melhor das hipóteses, apresenta-a como expressão de uma ação que o
sujeito pratica particularmente interessado em seu efeito, ou em seu próprio
interesse. Veja-se o seguinte exemplo do verbo
tomado primeiramente na voz ativa: αἱρέω (eu tomo). Passado para a voz média, fica: αἱρέοµαι (eu escolho), isto é, tomo de acordo com meu interesse.
Nesse emprego, a voz média
perdeu sua dimensão primeira, isto é, a de ser uma marca primordial de
indiferenciação do indivíduo com o universo e com a própria divindade que
caracterizava os tempos míticos. Aparece apenas como manifestando uma ação
verbal em que o sujeito age de acordo com seus próprios interesses.
Há, também, ainda hoje,
forte preocupação com a mudança, com o que se chama de “corrupção”
ou “perdas” de dimensões da língua. As citações acima foram iradas de uma
entrevista feita a Mário Bruno Sproviero, professor de filosofia da USP,
sobre um artigo publicado por ele a respeito da linguagem, em que destacara o desaparecimento
morfológico-sintático da voz média nas línguas naturais em uso atualmente. Valemo-nos
de afirmativas dele e de seu entrevistador para expressarmos nosso ponto de vista
sobre o tema.
Afirma o entrevistador:
Antes de tratarmos da voz
média e para tomar um caso ligado diretamente às transformações
do português realmente falado no Brasil de hoje (sobretudo pelo jovem...),
ocorre-me que um dos exemplos mais fortes dessa ligação pensamento/linguagem
está acontecendo com o atual processo de supressão (fática) do subjuntivo (ou
da distinção subjuntivo/indicativo) O que se ouve é: "Se você quer que eu
vou, eu vou...". Parece-me que esta supressão (gramatical) corresponde a
uma supressão de distinção de categorias mentais: a abolição da distinção entre
o real em ato e o simplesmente possível ou desejado... (Idem, ibidem, 1997,
p.1)
Em sua resposta, o
entrevistado concorda com o posicionamento do entrevistador, dizendo:
Exatamente. O exemplo é muito bom. E mostra como um
empobrecimento de linguagem corresponde a um estreitamento de horizontes mentais.
Isto é mais nítido ainda no alemão, cujo subjuntivo é ainda mais detalhado do
que o nosso (quanto a modos de possibilidade, desejo etc.) (Idem,
ibidem, p.1).
Esses posicionamentos em relação ao uso linguístico estão intimamente
relacionados com os de Dionísio Trácio, no século II a. C., em relação à língua
grega. Vivendo em Alexandria, portanto ora da Grécia, e num período em
que, por força do imperialismo, não mais do estado grego, mas ainda da cultura
helênica, não mais no período helênico, mas no período helenístico, o humanista
da Trácia elaborou sua gramática.
Ocorre que no período
helênico, cujo apogeu se dá no século V a. C., os literatos, mormente os
poetas, empregavam uma linguagem altamente rebuscada na produção de suas
obras de indiscutível qualidade literária.
Dionísio, vendo a produção
literária de seu tempo, o período helenístico, em que a língua e cultura grega
se disseminavam por todos os países do Mediterrâneo, encontrando o emprego da
língua grega pelos seus contemporâneos arvorados em homens de cultura, ficou
extremamente preocupado com as diferenças entre os textos em grego produzidos
pelos coetâneos dele e os das obras clássicas da Grécia, produzidos no ápice da
cultura dessa nação. Isso o levou a redigir sua gramática, que nada mais é do
que um conjunto de regras de escrever, orientadas pelos textos da literatura
grega (rotulada hoje de clássica) produzidos no período helênico. Ora, nenhum
grego empregava essa linguagem para a comunicação diária, muito menos em seu uso
coloquial.
No entanto, a gramática de
Dionísio serviu de base para a elaboração das gramáticas latinas e de
todas as gramáticas prescritivas que e elaboraram depois de então. Esta breve
reflexão servirá de base para nossos posicionamentos neste artigo.
Discordando do ponto de
vista de Sproviero e de seu entrevistador, no que se refere à mudança
linguística, e fundados na concepção de que gramáticas prescritivas são
calcadas em modelos políticos autoritários, fazemos os comentários que se seguem.
As línguas não se regem
por normas impostas por quem quer que seja. As regras que orientam suas
mudanças são as mesmas que regem as transformações sociais. E nessas
transformações linguísticas não há enriquecimento, empobrecimento ou corrupção:
surgem termos que têm orientação filosófico-sociológica de outra ordem e
natureza, ora ligadas à moral e à religião, ora a interesses menos nobres. E o sujeito
passa a conceber a realidade de outra maneira. São diferentes estratégias discursivas
eleitas pelos falantes para se manifestarem em seu idioma que se revestem de outra
roupagem para expressar um olhar próprio, ao mesmo tempo igual e novo, sobre si
mesmos e a realidade que os cerca. Não é nada melhor nem pior: é diferente.
Na mesma direção em
relação à mudança, Sproviero comenta ainda o apagamento da marca formal do
subjuntivo e, a seguir, da voz média:
Da mesma maneira que, como você dizia, nós estamos,
hoje, numa fase de perda do subjuntivo e, com ele, da distinção entre realidade
e possibilidade; no caso do grego, as gramáticas foram escritas numa época em
que a voz média já não era mais empregada e ela foi objeto de uma teorização que
não compreendia o alcance e o sentido dessa voz (Idem, ibidem, p. 3).
Em nosso ponto de vista, não
ouve perda nenhuma na ausência a marca de subjuntivo. Não podemos concordar com
esse modo de ver. Fato de não empregar uma marca linguística para distinguir realidade
e possibilidade não significa que os usuários da língua hoje não a percebam e não
sejam capazes de manifestá-la, quer oralmente quer em textos. Trata-se do que
concebemos aqui como diferença de estratégia linguística sem determinação qualitativa
de melhor ou pior.
Voltando à voz média, seu uso
vai desaparecendo, historicamente, entre o século IX a. C., período homérico, auge
do seu uso e início do declínio; e o século II a. C., período do gramático Dionísio
já citado anteriormente, em que seu emprego se reduz ao que aparece na
gramática grega também já mencionado.
O período homérico é pós-guerra
de Tróia, que ocorreu no século II a. C., portanto, início do imperialismo
grego. Até então, desenvolviam-se as pequenas comunidades das cidades-estado, em
que o indivíduo era apenas um cidadão, não se diferenciando dos demais.
O médio é muito mais a consciência da comunidade, uma
comunidade da qual o sujeito não se distingue; numa sociedade complexa, a forma
média vai se extinguindo numa estrutura cada vez mais complexa e tendendo ao Império
(Idem, ibidem, p. 5).
Desse ponto histórico em diante,
cada vez mais o indivíduo passou a pertencer menos à comunidade e mais ao
universo, ao império:
O que foi a filosofia, senão
um esforço constante para consumar a ponte homem-mundo. Tanto é assim que sempre
encontramos uma dificuldade de distinguir homem-mundo e, na dimensão epistemológica,
a distinção sujeito/objeto, não excluímos do objeto o próprio eu do sujeito, que
está presente em todos os atos do conhecimento: eu me conheço ao conhecer... Já
o eu, enquanto sujeito ontológico, se distingue do mundo...(Idem, ibidem, p. 5).
A partir do desaparecimento
desse elo homem–mundo expresso por marcas linguísticas, o ser humano, com muitos pensadores,
buscou essa ponte. É o caso de Kant em Crítica da Razão Prática. Já
Sidarta Gautama, Buda, no século VI a..C., buscavam a ligação entre o mundo
mítico e a nova realidade.
Essa
marca de relação sujeito–objeto na ação, segundo algumas
correntes da psicologia, desapareceu como uma forma fixa, morfológica, na linguagem,
mas permanece no inconsciente e se manifesta na enunciação.
3. Os estudos de Benvensite
sobre a voz média
A contribuição dos estudos
enunciativos acerca da voz medial vem através de Émile Benveniste. Em Problemas
de Linguística Geral, tomo I, há um capítulo intitulado Ativo e médio no
verbo, datado de 1950, no qual o autor examina a particularidade da distinção entre
voz ativa e voz medial nas línguas indo-europeias, valendo-se do conceito de diátese:
Toda forma verbal finita pertence necessariamente a
uma ou outra diátese, e mesmo certas formas nominais do verbo (infinitos, particípios)
igualmente se submetem. Equivale a dizer que tempo, modo, pessoa, número têm uma
expressão diferente no ativo e no médio (BENVENISTE, 1976, p.184).
O conceito de diátese não
aparece explicitamente definido por Benveniste. No entanto, é possível inferir,
por aproximação ao campo a Medicina, que o termo diátese é empregado para referir-se
a uma predisposição, uma característica imanente dos verbos, que os faz selecionar
argumentos de tal forma que, no caso específico da voz média, veicule-se a
informação de que o agente verbal efetua algo se afetando direta e
concomitantemente. Assim, tem-se como exemplo nascer, verbo cujo significado vai
além do espectro ativo: nascer é, para o sujeito, passar a integrar o mundo e interagir
com ele; ainda que, em uma primeira instância, ele não pratique a ação ou controle-a,
nascer é uma ação que afeta o sujeito em sua relação com a realidade, no dar-se
conta da própria existência.
Como se pode observar, ao tomar
como exemplo o verbo nascer, destaca-se o caráter filosófico na re-ligação do homem
com o mundo. A categoria “voz” é “a diátese fundamental do sujeito no verbo”,
conforme Benveniste. O homem transforma, modifica o mundo no mesmo instante em
que transforma a si próprio: eis o princípio intrínseco à compreensão da voz média.
“O homem cumpre algo que se cumpre nele” (idem, ibidem, p.188).
Em seu estudo, Benveniste dedica-se
a extinguir as relações entre sujeito e processo na voz média por oposição à
voz ativa. Desse modo, o linguista e filósofo ressalta que, na voz ativa, os verbos
marcam processos que se efetuam a partir do sujeito e fora dele, como em soprar.
Tendência distinta se marca na voz média, uma vez que os verbos apontam a processos
dos quais o sujeito é a sede e fica, portanto, no interior do processo. Será a transitividade
verbal o elemento indispensável à conversão do médio ao ativo.
A voz passiva é compreendida
por Benveniste como uma transformação histórica da voz média. O sujeito que primeiramente
era visto como atuando no mundo pela intenção de atuar sobre si próprio passa, na
voz passiva, a ser atuado pelo mundo. O agente converte-se em paciente.
Uma diferenciação entre duas
modalidades de diátese é examinada ao final de Ativo e médio no verbo. Considerando-se
a posição ocupada pelo sujeito quanto ao processo expresso pelo verbo, haveria
para a voz ativa uma noção de diátese externa, enquanto que para a voz média haveria
uma diátese interna. Por conseguinte, a diátese soma-se, na proposta de Benveniste,
às categorias de pessoa e de número para delimitar o que chama de “campo posicional
do sujeito”, isto é, o modo como o sujeito situa-se em relação ao processo verbal.
A contribuição deste trabalho
de Benveniste está, parece-nos, no fato de que são apresentadas evidências
linguísticas para a compreensão da voz média, ainda que muitos gramáticos tenham-na
associado a uma mera marca do interesse do sujeito quanto ao processo.
Suportada pela língua, a marca
medial supostamente tem seu valor na oposição à voz ativa – oposição esta que fragiliza
o princípio de que a voz média se explica pela intervenção de fatores extralinguísticos.
O homem está na língua e, assim sendo, o estudo da voz média é mais uma
comprovação disso.
4. A presença da
voz média na língua portuguesa: a relação sujeito–
predicado–objeto
Pesquisas recentes propõem-se
a discutir a repercussão da voz média na língua portuguesa em seu estado atual.
Em artigo de 2002, Camacho objetiva distinguir construções médias de construções
reflexivo-recíprocas, buscando “evidências formais, semânticas e tipológicas”. Para
tanto, vale-se das considerações de Câmara Jr. (1972),
para quem o medial corresponde morfossintaticamente a uma
construção em que à forma do verbo na voz ativa se acrescenta um pronome adverbal
átono, referente à pessoa do sujeito, e a função semântica que veicula é a de uma
integração no estado de coisas que dele parte (CAMACHO, 2002, p. 2).
Camacho afirma que há, no português,
itens lexicais determinados, todos eles verbos inerentemente pronominais, para sinalizar
a voz média. A partir disso, declara que “a voz média é uma categoria
linguística potencial, capaz de manifestar-se gramaticalmente”. Mais adiante, ressalta
que
O português dispõe de um elenco
considerável de verbos intransitivos em que iniciador e entidade afetada convergem
no sujeito, como desaparecer, evoluir etc.
por um lado, e cair, morrer etc. por outro. Mesmo assim, esses predicados não se
enquadram no sistema de diátese medial, não só por serem destituídos de marcação
formal, mas também por não apresentarem contraparte transitiva, que permita
algum tipo de seleção. (idem, ibidem, p.5).[grifos nossos].
Destaquemos aqui nossa discordância
em relação à posição assumida por Camacho nesta última citação. Se, como já postulado
por Benveniste, a voz média deve ser compreendida como o processo em que o agente
efetue algo se afetando, a marca formal torna-se secundária, ou até mesmo redundante.
Para fins de classificação, relevante deve ser a presença da diátese interna no
processo desencadeado pelo verbo. A voz média, portanto, é perceptível inclusive
em formas verbais desprovidas de marcação pronominal. O critério de
transitividade verbal somente se justifica na contraposição à voz ativa, já que
o signo linguístico é configurado pelas oposições que ele desencadeia no interior
do sistema.
Além disso, os pronomes átonos
são os marcadores tanto da voz média quanto da voz reflexiva, o que obscurece a
distinção entre uma e outra simplesmente pelo critério morfossintático. O fator
situacional, como determinante do uso que o sujeito faz do sistema (ou melhor, do
aparelho formal da enunciação, trazendo Benveniste), não pode ser descartado.
Parece-nos, portanto, que o
olhar conferido pelos estudos enunciativos à linguagem impede-nos de cercar a compreensão
da voz media à marcação clítica, ou mesmo à transitividade verbal. É inegável que
no enfoque medial há traços da voz reflexiva, tal como a concebemos hoje, semântica
e sintaticamente, inclusive.
Entretanto, insistimos que
os pressupostos benvenisteanos, seja quanto aos planos semiótico e semântico –
que marcam a intervenção do homem na língua –, seja quanto à descrição do conceito
de diátese –, em especial a interna, que situa o sujeito no interior do processo
verbal, como agente diretamente interessado e afetado –, possibilitam a percepção
da voz média sob um ponto de vista abrangente e mais próximo à sua noção primeira,
aquela anterior à gramática de Dionísio.
A Gramática da Língua
Portuguesa (2003), de Maria Helena Mira Mateus et al., reserva algumas páginas ao
estudo da voz média. No capítulo A família das construções inacusativas, há uma
seção intitulada Construções médias,. após os exemplos “(a) A tua letra lê-se bem”, “(b) Esse tipo de tecido lava-se facilmente”
e “(c) Os trabalhos bons corrigem-se com mais prazer”, as construções médias são
assim descritas:
Estas construções partilham propriedades que caracterizam
a variante inacusativa dos verbos de alternância causativa e as passivas sintácticas
e de -se. Com efeito, os verbos que nelas
ocorrem são verbos transitivos, que seleccionam um argumento externo e um argumento
interno directo, mas nestas construções apenas ocorre o argumento nominal com o
papel temático interno[...] (MIRA MATEUS et al., 2003, p. 536).
Conforme se percebe, as considerações
de Mira Mateus et al. Retornam à marcação morfossintática como critério obrigatório
para a caracterização de uma construção medial. O princípio de que há um argumento
nominal com papel temático interno ao processo desencadeado pela forma verbal medial
reaparece, mas não se fazem notar na definição acima exposta nem o interesse do
sujeito no processo de que é agente (um tecido não teria a intenção de lavar-se
a si próprio, por exemplo), nem mesmo a indissociabilidade sujeito/mundo, principal
marca da voz média das línguas naturais da Antiguidade.
Ao final da referida seção,
os autores atentam para o fato de que “alguns verbos aceitam a construção média
sem exigirem morfologia média explícita através do clítico –se” (Idem,ibidem, p.
538). Citam, logo após,os seguintes exemplos para uma “morfologia média abstracta”: “(a)
Estas calças vestem bem”,“(b) Esta tinta seca rapidamente” e “(c) Este pavio queima
mal”. Mais uma vez comprova-se que a definição de voz média, tal como a estamos
pensando neste artigo, não é contemplada pelos estudos desses autores. Realmente,
vimos insistindo na proposição de que a marca morfossintática é dispensável à caracterização
da voz média, uma vez que a particularidade medial está no significado do processo
desencadeado por alguns verbos e na diátese interna própria deles. Porém, não nos
parece coerente, pelo menos segundo entendemos,
considerar que em um exemplo como “Este pavio queima mal” se observa um interesse
do sujeito no processo, muito menos sua re-ligação com o mundo ao se deixar afetar
pelo processo do qual se põe como agente.
Voltando à nossa posição inicial,
as línguas, desde as antigas, mantêm algumas formas que marcam a voz média, preservando
laços dessa relação sujeito-mundo. Exemplo
claro e rico dessa voz havia já no latim, nas formas dos verbos depoentes. O interessante
é que muitos desses verbos chegaram ao português e fazem-se presentes ainda,
embora nosso idioma não tenha, para isso, uma marca morfológica. Vejamos alguns
exemplos.
Verbo depoente é aquele que
tem uma forma passiva e significado ativo. Um dos mais usados é loquor, falar. Sempre
que falo, falo também para mim mesmo. Ao mesmo tempo em que falo para o outro, sou
também destinatário da minha própria fala.
Outro verbo depoente é patior,
sofrer, padecer. Há uma profunda dimensão de relação sujeito-verbo-objeto expressa
por esse verbo, pois a ação de sofrer recai
sempre sobre o sujeito que sofre. E sofrer não é sempre sinônimo de padecer, embora
essa dimensão sempre acompanhe o processo em sua profundidade. Sofrer transformação
pode conter muito de positivo, mas é sempre desalojar-se. Há uma ideia de perda
também, portanto.
O verbo patior liga-se
também à ideia de paixão através do pretérito perfeito (passus sum). Daí provém
o adjetivo passional que evoca duplicidade de apego e dor. Além disso, traz uma
dimensão relacional entre sujeito, predicado e duplo objeto, enquanto o sujeito,
quando sofre pela dor alheia, tem o outro como objeto indireto (quem sofre, sofre
por alguém) e a si mesmo como objeto reflexivo do próprio sofrer, o que faz parte
da dimensão depoente do verbo e que na tem marca morfológica na língua portuguesa.
Há certos verbos em que se
pode perceber melhor a presença da voz média, mesmo não havendo uma marca morfológica
para expressá-la. Etimologicamente, educar forma-se do verbo latino duco (duco,
duxi, ductum, ducere), que significa conduzir, precedido da preposição ex, que significa
para fora. Essa preposição, em forma prefixal, se junta à forma verbal para que
o novo verbo perca seu sentido físico e assuma um outro, metafórico. No entanto,
mantém o sentido físico de estar junto, preso a si, de tal forma que só é possível
educar, educando-se. Observe-se a presença de sujeito, verbo e duplo objeto: o educando
e o próprio educador estão implicados no mesmo processo, o que compreendemos sob
a ótica do conceito de diátese.
Há nessa concepção de educação
toda uma riqueza a explorar, que cabe muito mais ao pedagogo e menos ao linguista,
no que tange ao sentido desse movimento para fora. Porém, dele também deve dar conta
o estudioso da linguagem, uma vez que está na posição daquele que revela o desvela
o processo encoberto nos meandros da linguagem, meio em que educador e educando
simultaneamente se ensinam, pois caminham juntos.
Na metáfora platônica da
caverna, tateiam educando e educador nas trevas, à busca da luz que nunca é completa,
pois o ser humano está em constante fazer-se e descobrir-se, descobrindo-se no outro
e como outro de si mesmo, como objeto da própria investigação.
Meditari é um verbo de forma
morfológica passiva, mas com dimensão média. Não se trata da forma ativa meditare,
que já contém uma dimensão média, mas a passiva meditari manifesta uma relação medial
mais intensa, pois a voz média não está penas no meio entre a passiva e a ativa,
mas está no meio entre o sujeito e o mundo. A predicação de meditari é meditar-se
a si mesmo enquanto inserido no mundo.
Estas formas de manifestação
a voz média não permanecem exclusivas à linguagem filosófica, nem são características
apenas das línguas clássicas. Pelo contrário, estão presentes na linguagem de
todo dia, em muitos tipos de expressões, como também fazem parte dos textos literários.
Um exemplo claro do português
do Brasil, na linguagem coloquial, é o dativo
ético, em que aparecem expressões como Me morreu o gato, Agora me acontece mais
essa ou Não é que ela me foi embora? Essas expressões mostram claramente a presença
da voz média em nosso idioma. A diátese verbal, na mesma medida em que atinge o
objeto, afeta concomitantemente o sujeito.
Em Me morreu o gato,
como nos demais exemplos, está clara a afetação do sujeito pela relação do predicado
com o objeto. Não são, porém, apenas marcas negativas de perda. Podem ocorrer situações
em que o sujeito recebe, da relação verbo objeto, uma afetação de carga positiva,
como é o caso do exemplo a seguir: Não é que ele me ganha o prêmio?!
Como afirmamos anteriormente,
em português, podem-se encontrar exemplos da voz média também
nos textos literários, como acontece
no poema abaixo, de Cecília Meireles.
Motivo
Eu canto
porque o instante existe
e a minha vida
está completa.
Não sou alegre
nem sou triste:
Sou poeta.
Irmão das
coisas fugidias,
Não sinto gozo
nem tormento.
Atravesso
noites e dias
no vento.
Se desmorono
ou se edifico,
se permaneço ou
me desfaço,
– não sei, não
sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto.
E a canção é tudo.
Tem sangue
eterno a asa ritmada.
E um dia sei
que estarei mudo:
– mais nada. (Cecília
Meireles)
Nos fragmentos “não sinto gozo
nem tormento.(...) Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, (...)
Não sei se fico ou passo. (...) E um dia sei que estarei mudo: – mais nada”, o poeta
vive essa integração com o universo de que faz parte. Em sinto... gozo estão presente
simultaneamente o sujeito que sente e goza integrado no mundo em que se realiza
a ação verbal. Em edifico, permaneço, desfaço e fico, passo e estarei, ao mesmo
tempo em que edifico, me edifico; em que faço, me faço; em que fico, fico eu
mesmo no mundo a que pertenço indissociavelmente; e estarei, com sua dimensão presente e futura, situando o sujeito no universo
com o substantivo mundo.
5. Considerações finais
Pensar a voz média é estabelecer
outros padrões para a compreensão da relação sujeito–predicado–objeto. Tentamos
ressaltar neste trabalho que considerar a perspectiva medial na linguagem vai além
de situar o sujeito no interior do processo verbal de que é agente, ou simplesmente
avaliar seu interesse quanto ao resultado do processo. Sujeito e objeto
tornam-se indissociáveis na voz média. Por consequência, através dessa categoria,
pontua-se a re-ligação do homem com o mundo, do homem com a realidade que dele
não se pode separar. O homem, igual
à linguagem, só em razão de existir pelo
princípio da relação.
A diátese interna
manifesta a própria essência epistemológica do ser humano que não se pode distanciar
do mundo que observa, descreve e analisa, pois é indissociável dele. Essa separação é apenas ontológica:
olhar para o homem sujeito dissociado do universo, objeto da observação, é apenas
um processo didático. Homem, universo e linguagem fazem arte de um todo que só pode
ser concebido numa visão apodítica universal. Estes estudos são apenas
parciais, exigindo de nós, pesquisadores,
um aprofundamento teórico e uma observação mais aguçada do emprego da língua.
6. Referências e Citações
BENVENISTE, Émile. Ativo e médio
no verbo. In: Problemas de Linguística Geral. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. Da
Universidade de São Paulo, 1976. Tomo I, p. 183-189.
CAMACHO, Roberto Gomes. Em defesa
da categoria de voz média no português. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244502003000100004&l
ng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 10 ago. 2008.
MEIRELES, Cecília. Motivo. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/ceciliameireles01.html>Acesso
em: 11 set. 2008.
MIRA MATEUS, Maria Helena et. al. Gramática
da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
SPROVIERO, Mário Bruno. Linguagem e
consciência: a voz média. Disponível em:<http://www.hottopos.com/mirand3/linguage.htm.>Acesso
em: 10 ago. 2008.
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