* Este artigo foi publicado originalmente na REVISTA DA UCPEL - Universidade Católica de Pelotas, em 01 de junho de 1997- volume 7 - n 1 - EDUCAT - ISSN 0103-8788
Prof. Dr.
Oscar Luiz Brisolara
RESUMO: O presente trabalho aborda a longa caminhada
dos pequenos agricultores da Roma antiga, na busca da posse da terra e na luta
por um processo de financiamento e distribuição dos produtos agrícolas mais
justo e viável. Aborda suas conquistas e revezes durante mais de 500 anos da
República Romana.
PALAVRAS-CHAVE: reforma agrária, República, justiça
social.
ABSTRACT:
This article tells about the ancient Rome’s small agriculturist, in pursuit of
the possession of lands and in fighting for a more equitable and practicable
financial process and agricultural products distribution. It focuses their
conquests and failures during more than 500 years of the Roman Republic.
KAY WORDS:
agrarian reformation, Republic, social justice.
O problema agrário tem-se
repetido de civilização em civilização. De um lado, está o latifúndio, muitas
vezes pouco explorado e improdutivo, garantindo poder e dinheiro para seus proprietários;
de outro, as pequenas propriedades rurais e os empregados do campo, com seus
problemas característicos de financiamento da produção, de comercialização e
mesmo de exploração frente aos setores mais aquinhoados da sociedade, como banqueiros,
comerciantes e latifundiários.
O presente artigo visa a abordar este problema que, à
primeira vista, parece ser próprio dos nossos tempos, em outra realidade
histórica e geográfica. Abordará as lutas pela posse da terra, os problemas de
financiamento e comercialização dos produtos agrícolas, as estratégias
empregadas pelos pretendentes a uma gleba rural, e as manobras políticas das
elites para manter os privilégios no setor agrícola.
A luta pela posse da terra e seus processos de exploração
fazem parte de um conjunto muito mais amplo de lutas populares, iniciado com a
implantação do sistema republicano de governo na antiga Roma.
Limitados pela brevidade deste artigo, não nos ateremos a
todo o sistema de mudança jurídico-administrativa ocorrida a partir do século
VI a. C., nos primórdios da República Romana. Também para sermos didáticos,
apenas abordaremos os elementos que nos parecem essenciais ao entendimento do
tema alvo desta pesquisa.
Os romanos implantaram um sistema de governo ao qual
denominaram de República, que consistia basicamente no seguinte: o poder
executivo era exercido por dois cônsules, com poderes iguais, cujo mandato era
de apenas um ano, reelegíveis singularmente por mais um ano, eleitos pela
Assembleia das Tribos.
Nos primórdios, somente a classe dos patrícios poderia
participar do processo, tanto como candidatos quanto como eleitores.
Gradativamente, esse direito foi-se expandindo. Primeiramente foi estendido aos
“equites”, ricos cidadãos que não pertenciam ao grupo dos fundadores da cidade
e, por fim, a todo o cidadão livre, mesmo pertencente à plebe.
Ao lado desse poder executivo, permanecia outra entidade
mais antiga, criada junto com a monarquia, o Senado, cujos membros eram
vitalícios, não eleitos, provenientes por herança dos cabeças de tribo dos
fundadores da cidade.
Como se pode perceber pela exposição acima, tratava-se de
uma República excludente que foi, paulatinamente, por pressão das massas,
incluindo mais e mais cidadãos, chegando a acolher membros dos povos
conquistados. Privilegiava uma classe protegida por leis consuetudinárias,
fundadas em remota tradição, cuja guarda e interpretação cabia às confrarias
sacerdotais, formadas, exclusivamente por força de lei, por cidadãos patrícios.
Porém, um crescente clima de insatisfação, que permeava
todos os grupos sociais, crescia entre os excluídos desse processo. Desde os “equites”,
ricos homens de negócios, que se ressentiam de não participarem do Consulado e
do Senado, passando pelos plebeus ricos, alijados das regalias dos “equites” e
atingindo a plebe geral que se ressentia de sua pobreza, que não raras vezes os
levava à escravidão por dívidas, conforme previa a legislação romana.
Devido a isso, como afirma Will Durant:
Em 494 a.
C., grandes massas de plebeus se aglomeraram no Monte Sagrado, junto ao rio
Ânio, a três milhas de Roma e declararam que não mais lutariam, não voltariam
ao trabalho, antes que suas exigências não fossem atendidas. O Senado lançou
mão de todos os recursos diplomáticos e religiosos para atrair os rebeldes;
depois, receando que ao levante fora da cidade se somasse um levante
intramuros, concordou com cancelar ou reduzir as dívidas, e em admitir dois
tribunos e três edis como representantes eleitos da plebe. Os paredistas,
então, voltaram... (Will Durant, 1957, p. 29).
Esse primeiro movimento popular grevista marcou a abertura
da luta expressa de classes que vai até a destruição da República. O passo
imediato na conquista dos direitos pela plebe deu-se com a exigência de um
código de leis escritas. Até então, eram os sacerdotes os guardiães e
intérpretes da lei. Conservavam em segredo e monopólio os registros, as
exigências e rituais da lei para usá-los como armas contra qualquer tentativa
de mudança social.
Passou-se o tempo e muitas mudanças se deram nas classes
urbanas como conquistas das lutas sociais. Porém, os agricultores tiveram uma
luta muito mais árdua, sempre apoiados por alguns tribunos da plebe e por
alguns magistrados da elite patrícia, como é o caso dos irmãos Gracos, Tibério
e Caio.
Muitas reformas exigidas pela plebe acabaram acontecendo por
efeito de manobras das elites. Ocorreu que muitos políticos plebeus não puderam
prosseguir em suas carreiras devido à sua pobreza, uma vez que os mais elevados
cargos administrativos não eram remunerados e exigiam grandes recursos dos seus
detentores para cumprir suas funções.
No ano 376 a. C., sentindo a problemática da plebe no que se
refere ao processo agrário, dois tribunos, Sexto e Licínio, propuseram uma lei
agrária, incluída num conjunto de reformas políticas. Essa foi a primeira
tentativa concreta de reforma agrária na antiga Roma.
As principais propostas dessa lei eram as seguintes:
a)
Os juros já pagos pelos pequenos agricultores
referentes aos empréstimos para o plantio agrícola deveriam ser abatidos do
principal, com balanço final fechado em três anos;
b)
Nenhum homem poderia possuir mais de 500 iugera
de terra (cerca de 121 hectares, mais ou menos 300 acres).
A lei também regulava o uso de escravos e trabalhadores
livres no campo. O Senado, durante dez anos, resistiu em atender a essas
propostas, fomentando guerras e dissensões. Por fim, sob ameaça de novo
movimento grevista, o Senado aprovou as Leis Licínias.
Correram os anos e as reformas não foram implantadas. As
Leis Licínias caíram no esquecimento e o problema fundiário agravou-se.
Aumentaram os latifúndios, os ricos apossavam-se também de terras em províncias
conquistadas, impedindo que fossem distribuídas entre os sem terras.
Os pequenos agricultores que ainda resitiam no campo com
tantas adversidades encontravam-se em situação financeira lamentável,
inadimplentes junto aos bancos. Enfrentavam ainda a concorrência do trigo
provindo da Sicília, da Sardenha, da Espanha e do Egito, e do produzido nos
latifúndios, por mão-de-obra escrava. Some-se a esses problemas a manipulação
do Senado, cujos agentes aguardavam o período de safra local para fazerem
importações estrangeiras.
Os agricultores romanos necessitavam cobrir seus empréstimos
feitos junto aos bancos de Roma, o que os obrigava a venderem sua produção de
imediato. Essa superoferta aviltava os preços do produto. Tal processo arruinou
muitos pequenos e médios agricultores, pois o produto importado reduzia o preço
dos produtos locais a valores abaixo dos custos.
Outro problema para os pequenos produtores rurais foi a
proibição aos senadores de aplicarem seus capitais no comércio. Os poderosos
comerciantes conseguiram fazer com que o Senado proibisse os que não fossem do
ramo de entrarem no comércio, concorrendo com suas atividades. Enriquecidos com
os despojos de campanhas militares, muitos senadores e homens ricos passaram a
adquirir enormes latifúndios que exploravam com mão-de-obra escrava.
Para concorrer com esses latifúndios e com o produto
importado, empobrecidos pelo processo e sem capital para o plantio, tinham os
pequenos agricultores de levantar empréstimos a juros escravizantes junto aos
bancos de Roma, e, lentamente, mergulhavam na miséria.
Depois da bancarrota, passavam a viver nos cortiços da
periferia da capital, onde caíam no crime e na prostituição. Passavam à
situação de miséria, dependendo, em grande parte, da distribuição gratuita de
trigo. Também se tornavam clientes dos poderosos que os socorriam em situações
extremas, em troca de voto e apoio político. Eram as massas que assistiam aos
espetáculos públicos de circo patrocinados pelo Estado.
Nos latifúndios, preferiam-se os escravos, pois não estavam
sujeitos ao serviço militar. Provinham, muitos desses escravos, das inúmeras
conquistas militares, outros tantos eram capturados pelos piratas. Havia também
um grande número deles que se originavam de verdadeiras caçadas humanas que
alguns mercadores promoviam, para prover o crescente mercado romano de
mão-de-obra.
A essa época, dois jovens da aristocracia romana, Tibério e
Caio Graco, filhos de Semprônio Graco, que fora duas vezes cônsul, e Cornélia,
da ilustre família dos Cipiões, surgiram no cenário político. Cornélia era irmã
do famoso general Cipião Africano, vencedor do poderoso Aníbal.
Haviam, esses jovens, estudado filosofia e política em
Atenas e dedicavam-se à construção civil, como empreiteiros, realizando obras
públicas por contrato com o poder estabelecido. Eram ambiciosos, orgulhosos e,
ao que parece, sinceros. Perguntavam-se em suas reuniões políticas, como
poderia manter-se a nação romana e sua democracia, com uma imensidão de
escravos, um proletariado urbano chagado pela miséria, em vez de uma população
orgulhosa de homens do campo, livres e donos de terras que eles mesmos
cultivavam, como o fora nos primórdios de sua formação.
A distribuição de terras entre os cidadãos livres
pareceu-lhes a solução óbvia e natural para os problemas de Roma. Tibério
elegeu-se tribuno da plebe em 133 a. C. e apresentou à Assembleia das Tribos as
três seguintes propostas:
a)
Nenhum cidadão romano poderia possuir mais de
333 acres de terra (134,76 hectares) ou 667, se tivesse dois filhos;
b)
Todas as terras já vendidas ou arrematadas a
particulares deveriam voltar ao Estado mediante compra e indenização do custo
das benfeitorias;
c)
As terras assim obtidas deveriam ser divididas
em lotes de 20 acres e entregues a cidadãos pobres, com a condição de nunca as
venderem e de pagarem anualmente uma taxa ao tesouro.
Não se tratava de nenhum plano utópico. Era, pelo contrário,
uma forma de pôr em prática as Leis Licínias de 367 a. C., que nunca foram
aplicadas, porém jamais haviam sido revogadas. Era necessária uma comissão
agrária que dividisse os latifúndios. Desde o século IV a. C., ninguém ousara
tocar nos sagrados latifúndios, pertencentes, em grande parte, a ricos
senadores ou a cidadãos ilustres e intocáveis, embora, desde as Leis Licínias, estivessem
em situação irregular e, portanto, ilegal.
Em discurso aos plebeus pobres, Tibério afirmou:
Os animais das florestas e os
pássaros do ar têm suas tocas e pousos; mas o homem que luta pela Itália só
dispõe da luz e do ar. Nossos generais estimulam seus soldados a lutarem pelos
túmulos e relicários de seus antepassados. Esse estímulo é falso e vão. Onde o
vosso altar paterno? Onde o vosso túmulo ancestral? Lutais e morreis para que
outros tenham riquezas e luxo. Sois chamados os senhores do mundo, mas não há
um palmo de chão que seja vosso. (Will Durant, 1957, p. 138/9).
Tibério foi acusado de visar à ditadura e suas propostas
foram denunciadas como confiscatórias. Otávio, outro tribuno, iria vetar, como lhe
permitia a legislação, as medidas propostas pelo jovem idealista. Estimulados
pela ameaça da plebe de depor qualquer tribuno, representante legítimo do povo,
que vetasse a lei, os litores de Tibério forçaram Otávio a abandonar a
Assembleia.
Pela violência de suas atitudes, perdeu Tibério o apoio da
parte do Senado que estava a seu lado. Voltou-se, então, exclusivamente à
plebe. No dia da votação, apareceu no fórum em trajes de luto e trouxe uma
enorme guarda pessoal. De ambos os lados, irrompeu a violência. Porém, os
plebeus que apoiavam o seu líder, recuaram diante da toga senatorial e Tibério
foi assassinado e sua cabeça jogada ao Tibre. No entanto, para amainar os
ânimos da plebe, o Senado aprovou as reformas na lei agrária.
A Comissão Agrária que Tibério havia formado teve imensas
dificuldades em implantar a reforma aprovada. Havia terras adquiridas há
gerações e seus proprietários evocavam direitos sagrados e consagrados pelo
tempo.
Caio, irmão mais jovem do tribuno assassinado, tomou os
projetos a seu encargo. Fora bravo soldado em diversas campanhas militares, era
excelente orador, e apesar dos apelos de sua mãe para que desistisse da questão
agrária, concorreu ao tribunato em 124 a. C., sendo eleito com elevado apoio
popular.
Com extrema habilidade e menor impulsividade do que o irmão,
procedeu à divisão das terras. Paralelamente, tomou outras medidas que
agradaram a plebe. Também promoveu muitas obras públicas que agradaram ambas as
classes: os empreiteiros lucravam e a plebe tinha abundantes oportunidades de
trabalho.
Ocorre que, tendo Caio viajado a Cartago, o Senado
aproveitou sua ausência para promover outro tribuno da plebe, Marco Lívio
Druso, que propôs a eliminação da taxa agrária anual criada pela lei dos Gracos
às pequenas propriedades. Aprovada a medida, a plebe passou, em grande parte, a
apoiar Druso.
Ao retornar à cidade, Caio é derrotado na eleição ao
terceiro mandato para o cargo de tribuno. Segundo os amigos do magistrado,
houve fraude no processo. Instaurou-se a violência entre os partidários do PO
(Partido dos Optimates), que reunia os membros da elite conservadora e do PP
(Partido Popular), partido da plebe, ao qual se haviam filiado os Gracos e
outros patrícios ilustres.
Num combate de rua, Caio é cercado pelos Optimates e salvo
por seus partidários, com grandes perdas humanas de ambas as partes. Joga-se ao
Tibre com o intuito de afogar-se. Seus partidários tiram-no das águas,
salvando-o. Ordena, então, que um de seus servos o execute. Diante da recusa do
subordinado, suicidou-se com a própria espada.
Como o Senado havia oferecido o peso de sua cabeça em ouro,
um de seus partidários decepou-a e encheu-a de chumbo e levou-a aos senadores.
Com a morte de Caio, os senadores procuraram reverter o
processo agrário que ele e o irmão haviam promovido. Foram tão hábeis no modo
de sua proposição que o retrocesso pareceu um avanço nos direitos de
propriedade.
A lei dos Gracos previa que, se algum cidadão que houvesse
recebido terras do Estado não mais desejasse dedicar-se ao cultivo dos campos,
não poderia vender sua propriedade. Deveria devolvê-la ao Estado que o
indenizaria pelas benfeitorias eventualmente ali realizadas e entregaria a
gleba a outro cidadão que desejasse dedicar-se à agricultura.
Os tribunos, apoiados pelo Senado, propuseram a revogação
dessa cláusula, argumentando que nada mais plenificaria o direito de posse da
terra do que o arbítrio de o proprietário fazer dela o que bem entendesse. A
Assembleia das Tribos aprovou essa medida, que imediatamente foi ratificada
pelo Senado.
Aprovada a emenda às vésperas das colheitas, o poder público
promoveu importação de exagerada quantidade de trigo, vinho e azeite, produtos
básicos da agricultura romana. Com essas medidas públicas, o preço aviltou-se
de tal maneira que sequer havia compradores para o produto nacional.
Os agricultores tinham contraído empréstimos bancários
mediante a penhora das terras. Para cumprir esses compromissos, tiveram os
agricultores de desfazerem-se de suas propriedades. Como havia excesso de
oferta de imóveis rurais, aviltaram-se os preços. Dessa maneira, os
latifundiários, que haviam sido indenizados, na reforma agrária dos Gracos, por
preços justos, refizeram suas propriedades por valores irrisórios.
O
processo histórico aqui abordado demonstra que a civilização desenvolve-se em
círculos. O que nos parece peculiar apenas à nossa época, já foi vivenciado em
outros tempos e lugares. A civilização romana antiga parece-nos ter sido o
cadinho em que se forjaram a maioria das experiências de cunho social. Essa é mais uma lição da história que serve
de alerta para todos os agentes envolvidos nas ações políticas e sociais.
BIBLIOGRAFIA
1.
DURANT, Will. História da Civilização 3ª Parte. César e Cristo Tomo I. Tradução
de Monteiro Lobato. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,1957.
ROMA - ARCO DE CONSTANTINO
ROMA - MARGEM DO TIBRE
ROMA - - Piazza Venezia, à esquerda Chiesa Santa Maria di Loreto e à direita Chiesa
del Santissimo Nome di Maria
del Santissimo Nome di Maria
ROMA - LA CORDONATA - MUSEI CAPITOLINI
Parabéns, meu querido professor. Excelente seu artigo!
ResponderExcluirObrigado, meu caríssimo.
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