Prof. Dr.
Oscar Luiz Brisolara
Na verdade,
o mito, como verdade íntima, é o elemento de orientação do ser. O homem, desde
suas origens, não produz os mitos. As ideias mitológicas ocorrem a ele: ele não
as pensa, mas é pensado por elas poderíamos dizer. Os núcleos componentes de
todos os mitos, das diversas culturas, os mitologemas, representam estruturas
mentais básicas de todos os homens. (Walter Boechat).
Mercúrio - Artus Quellinus -
Amsterdam Town Hall
Royal Palace.
Ulysses
O mytho é o nada que
é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui
aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.
Assim a lenda se
escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre. (Fernando Pessoa, Mensagem)
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre. (Fernando Pessoa, Mensagem)
Conforme destaca a
epígrafe acima, os mitos são uma forma de ensinamento que as gerações passam
umas às outras. O mito é o formador dos homens. Segundo Karl Jung, quando trata
do inconsciente coletivo, mitos como Gaia, Deméter, Sêmele, fundados na terra
fértil expressam o arquétipo da Grande Mãe, a origem de todas as formas
simbólicas e do próprio ego. Mitos masculinos como Dionísio Zagreu, Hermes e
Apolo em sua fase infantil representam, como arquétipo, toda criança,
nossa possibilidade de “vir-a-ser”, nossa criatividade e também nossas
regressões patológicas a um infantismo inadequado.
Por sua vez, heróis como Héracles, Teseu, Perseu e muitos
outros mais personificam o movimento da energia psíquica do inconsciente para a
consciência. Cada herói em particular é sempre filho de uma entidade imortal,
arquétipo atemporal no inconsciente, com uma mortal, que personifica o ego e
suas finitudes.
A mitologia criou uma infinidade de entidades e configurações, de modo especial no
panteão grego, que são o espelho de nossas próprias tendências inconscientes. Esse
é o papel fundamental de todas as mitologias, em relação à psicologia humana. A próprio mito move a psicologia de sua posição puramente conceitual e teórica, portanto,
unilateral, pois a existência humana não pode ser contida em conceitos
teóricos, e a fertiliza com imagens ricas sempre abertas a novas leituras e interpretações.
Estabelece-se, desse modo, uma nova psicologia renovadora que
possibilita novas compreensões do homem,
nas quais o irracional também tem seu lugar, pois o irracional mítico é parte
componente do todo psíquico do ser humano.
Esse é o sentido em que todos os símbolos existentes numa
cultura atuantes em suas instituições são marcos do grande caminho da
humanidade do inconsciente para o consciente, cujo resultado foi o próprio homem em seu estado emotivo-racional. Os mitos criam símbolos que
expressam crenças, os costumes cristalizados no inconsciente humano como um
fazer coletivo.
É um processo semelhante ao da educação familiar, que segue a
forma como os pais ensinam aos filhos como é a vida através dos relatos das experiências
pelas quais passaram. O mito, num sentido mais amplo, delineia padrões de
comportamento humano através da dimensão imaginária.
Com o recurso da imagem e da fantasia, os mitos abrem para o
inconsciente. Até mesmo os mitos hediondos e cruéis são da maior utilidade,
pois nos ensinam, através da tragédia, os grandes perigos do processo
existencial.
Apontando para os padrões de comportamento humano, os mitos
se constituem, através da história, como os marcos referenciais através dos
quais a consciência pode voltar às suas raízes para torná-las mais vigorosas e
consistentes.
É praticamente impossível entender o pensamento ocidental e
suas literaturas e seu cosmos (κόσμος) sem o apelo mítico, pois que o mito se
apresenta como um sistema que tenta, de maneira mais ou menos coerente,
explicar o mundo e o homem, mesmo quando se apartam da lógica formal.
Logos (λόγος) e mythos (μύθος) constituem-se em duas faces
da linguagem igualmente fundamentais na vida do espírito. O logos opera a
racionalidade do espírito e opõe-se ao mythos. Por seu lado, o mythos, o conhecimento transmitido por
via narrativa, que através de deuses, heróis e monstros, abordando as questões
mais inquietantes da comunidade, tais como a origem do mundo e do homem, o
problema do mal, da morte e do destino e identidade humanos, busca a dar conta do ilógico e irracional que fazem parte da circunstância humana. Como afirma Junito Brandão:
O “lógos”, sendo um raciocínio,
procura convencer, acarretando no ouvinte a necessidade de julgar. O “lógos” é
verdadeiro, se é correto conforme a lógica; é falso, se dissimula alguma burla
secreta (um “sóphisma”). O mito, porém, não possui outro fim senão a si
próprio. Acredita-se nele ou não. À vontade, por um ato de fé, se o mesmo
parece “belo” ou verossímil, ou simplesmente porque se deseja dar-lhe crédito.
Assim é que o mito atrai, em torno de si, toda a parte do irracional no
pensamento humano, sendo, por sua própria natureza, aparentado à arte, em todas
as suas criações. (BRANDÃO, 2002, p. 13-14).
O
mito, em sua dimensão às vezes absurda, funciona como um processo de
esclarecimento. Contrapõe o racional absoluto, ao irracional ou relativo. Estabelece uma divisória que separa a lógica e a razão do “lógos”, da lógica, muitas
vezes irracional, da vida que acontece ao nosso redor.
Em
continuidade, afirma Brandão:
E talvez seja este o caráter mais
evidente do mito grego: verificamos que ele está presente em todas as
atividades do espírito. Não existe domínio algum do helenismo, tanto a plástica
quanto a literatura, que não tenha recorrido constantemente a ele. (BRANDÃO,
2002, p. 14).
E
Pierre Grimal, comentando o mesmo tema, afirma:
Para um grego, um mi to não conhece
limites. Insinua-se por toda parte [...]. Reserva do pensamento, o mito acabou
por viver uma vida própria a meio caminho ventre a razão e a fé [...] Até os
filósofos, quando o raciocínio atingiu o seu limite, recorreram a ele como um
modo de conhecimento capaz de comunicar o incognoscível (GRIMAL, 1952, p. 8).
Tanto Brandão quanto Grimal comungam da mesma concepção de
mito. Concebem-no como sendo uma manifestação, um sistema de comunicação, uma
mensagem. O mito funciona como uma metalinguagem. É uma segunda língua na qual
se fala da primeira. É um processo de simbolização que necessita sempre de uma leitura. Não se trata de um objeto, um conceito, uma ideia, é um processo
de significação, em perpétua e contínua renovação. Trata-se de uma forma, um symbolon, poder-se-ia acrescentar. Por isso mesmo não envelhece, porque a própria
mudança do universo é a promotora de novas e fecundas leituras, interpretadas à
luz dos sinais sempre novos de cada tempo.
Feitas estas considerações gerais sobre o sentido dos mitos,
volto-me agora especificamente ao mito de Mercúrio. Entre os gregos que
iniciaram o culto a essa divindade, era conhecida como Hermes (Ἑρμής), para os egípcios era Toth.
Era uma divindade protetora dos pastores e dos rebanhos. Era
também o guardião da pedra sepulcral e, nesse sentido, mantinha a sagrada
memória dos antepassados. Cuidava do umbral das casas: aquela sombra protetora
que ficava à porta das residências.
Além disso, protegia os caminhos, afastando os múltiplos perigos espreitavam os viandantes. Era o guarda das longas e solitárias estradas de
antanho, eivadas de mistérios, ameaças e riscos: feras e salteadores estavam à espreita
dos que necessitavam transpor distâncias a pé ou a cavalo.
Por isso, cada transeunte, ao empreender uma viagem, lançava
uma pedra em homenagem a Mercúrio. Como na antiguidade a maioria dos viajantes
dedicava-se ao comércio entre os povos, com suas cavalgaduras e caravanas, com
cavalos ou camelos, era a divindade especial dos comerciantes. Esse mito também
está relacionado à palavra e à comunicação.
Segundo a versão grega, Hermes era filho de Zeus e da
ninfa Maia, uma das Plêiades, teria
nascido num dia 4, número que lhe é consagrado. Seu nascimento ocorrera numa caverna do monte Cilene, na
Arcádia. Ao nascer, fora deposto, envolto em panos, na cavidade de um salgueiro.
Livrando-se das amarras dos panos protetores , saíra andando pelos bosques.
Ao chegar aos campos, descobre os rebanhos de Admeto ('Ἄδμητος), rei mitológico de
Feras, que estavam sob os cuidados de seu irmão Apolo. Rouba-os e foge com os animais através da Hélade.
Para despistar as pegadas dos animais, amarra ramos de
plantas ao rabo deles que vão apagando as marcas do solo. Esconde o rebanho.
Fabrica uma lira com um casco de tartaruga e retorna ao oco da planta de que
havia fugido, tornando a envolver-se como os panos de que se desvencilhara na
saída. Finge-se inocente de qualquer ação maldosa.
O sábio Apolo conclui que somente poderia ser seu irmão
Hermes quem lhe roubara os rebanhos. A mãe Maia semeia a dúvida na certeza de
Apolo, com o argumento de que seria impossível a uma criança tão indefesa cometer
tamanha maldade.
Confuso, Apolo vale-se do pai, Zeus, que interroga Hermes.
Depois de negar seus atos e buscar convencer o pai de sua inocência sem
resultado, acaba declarando seu ato. O pai dos deuses exige que se retrate com o irmão, confessando sua maldade. Diante da revelação de Hermes, Apolo e Maia exigem-lhe um juramento de que daí em diante, jamais haveria de mentir. Hermes concorda com a exigência, mas
não jura, apenas declara, com uma ressalva: não se obrigaria a dizer a verdade
por inteiro. Mostra-se sempre dissimulado e ambíguo no uso das palavras.
Como as estradas e os caminhos levam aos povos, que muitas
vezes falam diferentes idiomas, ele é também a divindade da interpretação e da
tradução. Seus dons de astúcia e
sagacidade argumentativa fizeram-no o protetor dos advogados e dos oradores,
como também e de todos os profissionais que usam da linguagem como seu
instrumento de trabalho. Trazia,
também, sempre consigo um bastão mágico: o caduceu, com que tangia as almas na
sua longa caminhada para a outra vida.
Era, além de tudo, a divindade protetora dos ladrões, pelo
roubo dos rebanhos guardados por seu irmão. Essa fase do mito funda-se nas
pilhagens e atividades predatórias entre os pastores comuns na Idade do Bronze,
que se revestiam de honra e de espetacularidade. Segundo Tucídides, essas façanhas eram dignas de
elogios e cantadas pelos poetas. O mesmo ocorria entre os romanos nos tempos da
fundação da cidade de Roma, no século VIII a. C. Não tinham a conotação que o
roubo passou a ter nas sociedades através do processo civilizatório.
Mercúrio de Evelyn - Pickering
de Morgan -
Para Jeremy Taylor,
Hermes foi uma figura central no processo de transformação da sociedade grega
de uma cultura nômade matriarcal, sem leis, sustentada por um banditismo de
invasões e riscos constantes, para um grupo urbano, sedentário, com regras de
comportamento social, com uma economia organizada, fundada na agricultura e em princípios religiosos.
O processo predatório de roubo de gado foi-se gradativamente convertendo em sistemas de troca que originaram o comércio. O enfrentamento bélico das guerras evoluiu para as disputas dos jovens nos campos de jogos, culminando nos campeonatos plurinacionais de Olímpia. Tudo isso exigiu a elaboração de códigos
de leis e acordos, num longo processo que culminou na criação da confederação
das cidades-estados gregas que deu origem à própria Grécia, conhecida por eles como Hélade. Essas cidades criaram sistemas de governo e se
foram sofisticando nos costumes, nas ciências e nas artes.
O mito de Hermes constitui-se no próprio impulso civilizador
que conduz à polis (πόλις) e à criação do homo
politicus, que supera as transformações socioeconômicas, conforme afirma Riker:
Hermes é mais do que um mito
socioeconômico, é uma representação de uma das mais profundas capacidades da psique,
que começou a ser compreendida no período arcaico: o poder da transformação.
Fazendo uma lira de uma tartaruga e de tripas de carneiro e distorcendo os
juramentos sagrados, mudou a natureza em cultura, mudou a linguagem divina em
linguagem humana, o estranho em familiar, o obscuro em consciência, a convenção
em adaptabilidade, o incomunicável em articulação e interpretação, um mundo
bruto em um mundo humanizado por significados e valores. (RIKER, 1991, p. 180).
O caráter ambíguo, dissimulado, evasivo e dúbio do
comportamento de Hermes revela mitologicamente os limites do racional que
sustentava o filosofia fundada na lógica do discurso dos pensadores ilustres.
O mito de Hermes, em suas constantes evasivas, denuncia as
ambiguidades e a relatividade do discurso do logos, tido como verdadeiro e absoluto, apontando
para o paradoxal, para a efemeridade das teorias e a provisoriedade dos
paradigmas.
Aponta para as zonas intrincadas da interpretação e da
hermenêutica. Enquanto lança luzes sobre novas possibilidades de interpretar,
pode confundir e perder. Há sempre a possibilidade da fraude, do engano, da
mentira. O discurso pode sempre conter um engodo. O que se reveste de
verdadeiro, lógico, científico, pode esconder uma estratégia de espoliação e
domínio.
BIBLIOGRAFIA
1.
BARTHES,
Roland. (1972). Mitologies. Paris:
Édicions Seuil.
2.
BRANDÃO, Junito. ) 2002) Mitologia grega.Vol. I. Petrópolis: Vozes.
3.
Grimal, Pierre. (1952). La mitologie greque. Paris: PUF.
4.
HESIODO. (1991) Teogonia. São Paulo: Iluminuras.
5. RIKER, John H. (1991) Human excellence and an ecological conception of the
psyche. New York: State University of New York Press.
Parabéns, professor Oscar. Muito esclarecedor.
ResponderExcluirObrigado pelo apoio de sempre. Abração, amigo Gerson.
ResponderExcluirMuito esclarecedor mesmo! Grata!
ResponderExcluirEste comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluirMuito esclarecedor mesmo! Grata!
ResponderExcluirMuito agradecido por suas palavras. Elas são música para quem escr3eve.
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