Na antiga Nínive, cidade da Mesopotâmia, hoje Iraque onde se
situa a atual cidade de Moçul, o imperador assírio Assurbanipal (668-6627 a.
C.), construiu uma grande biblioteca. Como as textos dessa época eram gravados
em peças de cerâmica queimadas em fornos como acontece hoje com os tijolos, as
bibliotecas tinham de ser enormes, mesmo não contendo um número tão avantajado
de volumes. Imaginemos cada página como uma peça de cerâmica. Por menos espessa
que seja, tomaria uma grande espaço.
Em meados do século XIX, em escavações, essa preciosa
biblioteca foi descoberta por arqueólogos em tábuas de argila contendo escritos
em sinais denominados cuneiformes. Muitos estudiosos trabalharam na decifração
desses sinais. Foram escritos produzidos a partir de 3.500 a. C. Há mesmo quem
fale em escrita cuneiforme de 5.000 a. C. Talvez seja a mais antiga forma de
grafia humana.
Pelas necessidades administrativas como a cobrança de
impostos, registro do número de cabeças de gado ou a quantidade de cereais,
surgiu a escrita. Trata-se de uma língua isolada. Não está relacionada a
nenhuma outra língua conhecida. É uma língua aglutinante, ou seja, os morfemas
(as menores unidades com sentido da língua) se justapõem para formar palavras.
Esse processo de escrita teve início como um sistema
pictográfico, em que o objeto representado expressava uma ideia. Um barco
marcado por determinados sinais, por exemplo, poderia significar que ele estava
carregado ou vazio. Essa escrita começou com o que os pesquisadores chamaram de
glifos cuneiformes que eram
desenhados em tabuinhas de argila com um caniço afiado que recebeu o nome de
estilete. O estilete gravava (grafava) sinais em forma de cunha numa tabuinha
de argila mole que depois era levada ao forno para o endurecimento. Essa forma
de cunha originou o nome da escrita cuneiforme.
Esse sistema é muito difícil de ser decifrado, pois se
constitui por mais de 2.000 sinais de difícil uso, por falta de uniformidade de
emprego. Com passar do tempo, ao expandir seu emprego até mesmo para outros
povos, se foi uniformizado e simplificando. Os primeiros intérpretes tiveram
imensas dificuldades. Havia necessidade do conhecimento de árabe e hebraico,
além de um profundo conhecimento da história desses povos tão antigos e tão
distantes do momento histórico do estudioso.
Iniciou-se, com a simplificação, um sistema silábico. Esses
silabários tinham significado. Por exemplo, o
sinal "mu" compõe-se de um cunho horizontal terminado por uma ramificação
de quatro pequenas hastes em ângulo. Por seu lado, o sinal "zer" tem a mesma forma, mas a ramificação tem
apenas três hastes. O seu nome era também: "o mu que não está terminado.
Os sinais representavam objetos com substantivos, mas havia
dificuldade de determinar categorias como verbos, adjetivos e processos
sintáticos como declinações. Assim, um determinado sinal poderia significar
cavalo, mas, por associação, poderia significar velocidade, viagem, movimento.
Por isso, um sinal poderia ter diversos significados, bem como um só
significado poderia ser representado por diferentes sinais.
Depois de diversas experiências, passou-se a escrever como
na maioria das línguas ocidentais, ou seja, da esquerda para a direita. Mesmo
usando ambos o sistema cuneiforme, assírios e babilônios tinham sistemas
diferentes. Exemplo de escrita cuneiforme:
Foi somente em 1862, que o orientalista alemão Friedrich von
Spiegel conseguiu decifrar a escrita cuneiforme (Keilschrift, em alemão) formulando e apresentando, em seguida, uma
gramática e glossários das línguas cuneiformes. Essa descoberta permitiu que se
fizessem as primeiras traduções da literatura desses povos.
A partir dessas descobertas, em 1872, o antropólogo inglês George
Smith fez a primeira tradução de parte da Epopeia do Gilgamesh, a que faz a
narrativa do dilúvio, a mais antiga de que se tem conhecimento.
O Gilgamesh constitui-se na mais antiga narrativa literária de
toda a humanidade de que se tem conhecimento. Trata-se de uma compilação de
lendas e poemas de tradição oral muito mais antiga ainda.
O fato de essas narrativas terem sido encontradas em
diversos pontos da Mesopotâmia garante que elas eram muito populares. Mesmo em
outros povos e línguas, foram encontradas outras versões delas. O herói é
sempre o rei lendário Gilgamesh, quinto governante da dinastia de Uruk, que
teria vivido entre 2750 e 2600 a. C. Afirma-se que essas narrativas teriam
mesmo influenciado tanto em narrativas bíblicas como a do dilúvio como nos textos
gregos de Homero, do séc. IX a. C.
Os judeus teriam entrado em contato com essas narrativas
durante o exílio da Babilônia, conhecido como primeira diáspora judaica. Essa começa
em 722, com a deportação de parte do povo judeu para a Assíria e, em 586, com
Nabucodonosor II, da Babilônia, que deporta os restantes para a Mesopotâmia
onde permanecem até a conquista de região pelo rei Ciro da Pérsia em 539 a. C.
Esses anos todo em contato com os mesopotâmios teve profunda influência na
cultura judaica.
Sendo Gilgamesh um rei arrogante e luxurioso, o povo invoca
aos deuses solicitando que lhes enviasse um novo regente, que enfrentasse e os
livrasse de seu opressor. Anu, divindade poderosa, apiedou-se da população.
Solicitou a Aruru, divindade feminina da criação, que criasse um novo rei para
enfrentar Gilgamesh. Ela criou Enkidu.
Ela, em sua mente, concebeu um homem que fosse da mesma
essência de Anu, deus responsável pelo firmamento. Mergulhando suas mãos nas
águas, a deusa recolheu um bloco de argila, criando dela Enkidu.
Era Enkidu, desde sua criação, inocente, sem a malícia da
civilização e foi criado nas selvas, entre as bestas selvagens, dividindo a
vida com elas. Não conhecia o cultivo da terra
e se alimentava de folhas silvestres, cresceu junto com as gazelas e os
outros animais silvestres, bebendo as águas de riachos e fontes e alegrando-se
com isso.
ISHTAR |
Tendo Gilgamesh descoberto a existência de Enkidu, encarrega
uma prostituta do templo da deusa Ishtar, deusa do amor e da fertilidade, de seduzir
o jovem e conduzi-lo para o interior das muralhas de Uruk. Inocentemente seduzido
pela sagacidade da prostituta, perdeu sua ingenuidade selvagem e conheceu a
maldade da civilização urbana. Arrependido, porém, começa a se lamentar, mas a
prostituta, para consolá-lo, começa por enumerar as vantagens da nova vida que
lhe viria. Porém, o herói perdera sua força selvagem, tinha agora o
conhecimento e os pensamentos do homem ocupavam seu coração.
Agora és como um deus, dizia-lhe a prostituta. Por que
anseias voltar para os campos e correr como os animais selvagens? Esta
narrativa se assemelha profundamente à narrativa bíblica do Adão descrito no
Gênesis. A prostituta sagrada é uma metáfora da Eva bíblica que conduz Adão ao
pecado e ao conhecimento da árvore do bem do mal.
Porém, Enkidu enfrenta Gilgamesh em combate singular e o
vence, sendo reconhecido por este como irmão, pois ninguém jamais o vencera.
Tornam-se grandes amigos. Essa amizade vai gerar um grande número de aventuras
da epopeia.
Partem, então, ambos juntos, para uma floresta de cedros em
que enfrentam o fabuloso monstro Humbaba, sentinela da floresta. O monstro
censura Enkidu pela profanação da floresta como se a própria divindade a
censurasse. Enkidu é condenado a ser um mercenário e a viver na servidão,
dependendo do trabalho para obter seu pão. Essas condenações assemelham-se às
de Adão.
Porém, os condenados recebem o auxílio do deus sol, Shamash,
que fora sempre protetor de Gilgamesh. Juntos, Enkidu e Gilgamesh decepam a
cabeça de Humbaba. Essa atitude provoca a ira do deus da terra, do vento e do
ar, conhecido pelo nome de Enlil, cuja exigência para que seja aplacado é a
vida de um dos heróis.
No entanto, Ishtar, deusa do amor, apaixona-se por Gilgamesh
que despreza essa paixão divinal, fato que transforma seu amor em ódio.
Despeitada, a deusa envia um Touro Celeste com a missão de eliminar o seu
desafeto.
Unem-se os dois jovens e vencem o monstruoso touro. Enkidu
ofende a divindade, jogando-lhe fragmentos do touro estraçalhado. Os mortais
não devem ofender os imortais, afirma o deus Enlil e decide que Enkidu deverá
morrer. O jovem adoece e morre. Então, Gilgamesh sai em sua missão derradeira
na busca da imortalidade.
Parte à procura dos segredos dos deuses imortais. Para tal
enfrenta uma secessão de perigos. Encontra, então, Utnapishtin, que promete
revelar-lhe o segredo da imortalidade. Confia-lhe que os deuses haviam acabado
com a imortalidade humane desgostosos com as atitudes deles.
Os humanos tinham gerado uma balbúrdia tal no universo que
Enlil resolvera solicitar aos demais deuses o extermínio da raça humana. Depois
de uma assembleia, a proposta do deus foi aceita por todos.
Exorta-o a desprezar os bens materiais e valorizar a própria
alma. Enki fornecera-lhe todas as instruções para construir a barca com o
material da própria residência. Levaria para lá também seu ouro, um casal de
cada espécie, dos animais silvestres e selvagens, e sua família. Assim procedeu
Utnapishtim e salvou-se com os seus e tudo o mais.
Enlil, percebendo que fora ludibriado, que Enki revelara o
segredo dos deuses, permitindo a sobrevivência de um grupo humano, viu-se
obrigado a transformar Utnapishtim em um imortal, para que sua maldição de que
nenhum mortal sobrevivesse se completasse. Dessa maneira, nenhum humano
sobreviveria.
Utnapishtim e a Arca do dilúvio |
Conta-lhe de uma planta cuja flor teria efeitos
imortalizantes, porém, somente existia em um lugar distante, no fundo do mar.
Aquele que, por ventura viesse a comê-la seria revestido da eterna juventude.
Gilgamesh, depois de muitas peripécias, nadando, consegue atingir o almejado
vegetal.
Porém, o jovem herói decide socializar seu achado, dividindo-o
com os anciãos de Uruk a sua conquista. Acontece que, no caminho de casa, uma
serpente aquática rouba-lhe a flor sagrada e para sempre perde a imortalidade.
Bibliografia:
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ZILBERMAN,
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Marchiori; POZZER, Katia Maria Paim. JORNADA DE ESTUDOS DO ORIENTE ANTIGO:
LÍNGUAS ESCRITAS E IMAGINÁRIAS, 3., 1997, Porto Alegre. Anais … trabalho
4. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 58.
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