Os mitos gregos só se conhecem através da forma escrita e das imóveis composições da arte figurada, o que, aliás, é comum a quase todas as mitologias antigas. Ora, a forma escrita desfigura, por vezes, ode algumas de suas características básicas, como, por exemplo, de suas variantes, que se constituem no verdadeiro pulmão da mitologia. Com isso, o mito se enrijece e se fixa numa forma definitiva. De outro lado, a forma escrita o distancia do momento da narrativa, das circunstâncias e da maneira como aquela se convertia numa ação sagrada. Um mito escrito está para um mito “em função”, como uma fotografia para uma pessoa viva. E se é verdade que a forma escrita é uma característica das mitologias antigas, a grega ainda está comprometida por outra particularidade. Motos existem, fora do mundo grego, que, mesmo em sua rígida forma escrita, conservam um nítido e indiscutível caráter religioso: são aqueles cujo contexto tem um cunho ritual.
O Enûma Elîsh (Poema babilônio da criação), por exemplo, se reduz a um vasto repertório ritual. Se dos mitos egípcios se conhece relativamente pouco, é porque tudo quanto nos chegou de autêntico provém de textos rituais, como os Textos das Pirâmides, os Textos dos Sarcófagos, O Livro dos Mortos... Análoga é a situação dos mais antigos textos rituais da Índia.
Acontece, no entanto, que a Grécia antiga não nos legou um único rito em contexto ritual, embora se pudesse, talvez, defender, ao menos como parte de um rito, o que chegou até nós de alguns festejos dionisíacos.
“A mitologia grega chegou até nós através da poesia, da arte figurativa e da literatura erudita, ou seja, dos documentos de cunho ‘profano’ ”, se bem que profano aqui no caso deva ser tomado em sentido muito lato, uma vez que poesia, arte figurativa e literatura erudita tiveram por suporte o mito.
É claro que houve, na Grécia, um liame muito forte entre literatura, arte figurativa e religião, mas, ao plasmar o material mitológico, os poetas e artistas gregos não obedeciam tão somente a critérios religiosos, mas também, e isso é fácil de se perceber, a ditames estéticos. Toda a obra-de-arte como todo o gênero artístico e literário possuem exigências intrínsecas. Entre narrar um mito, que é uma práxis sagrada, em determinadas circunstâncias, para determinadas pessoas, e compor uma obra-de-arte, como alicerçada no mito, vai uma distância muito grande. A famosa lei das três unidades (ação, tempo e lugar), embora de formulação tardia, como teoria poética, está presente na tragédia clássica. Tal lei não é válida para o mito, que se desloca livremente no tempo e no espaço, multiplicando-se através de um número indefinido de episódios. Para reduzir um mitologema a uma obra de arte, digamos, a uma tragédia, o poeta terá que fazer alterações, por vezes violentas, a fim de que a ação resulte única, se desenvolva no mesmo lugar e “caiba” num só dia. Não é em vão que, as mais das vezes, a tragédia grega se inicia in medias res. Édipo Rei de Sófocles começa quando termina o mito O flashback fará o milagre de recompor o restante...
A redução do mito a uma obra-de-arte traz outra consequência com vistas à documentação mitológica. O mito, como já se assinalou, vive em variantes; ora, a obra de arte, de conteúdo mitológico, somente pode apresentar, e é natural, uma dessas variantes. Acontece que, dão o imenso prestígio da poesia na Grécia, a variante apresentada por um grande poeta impunha-se a consciência pública, tornando-se um mito canônico, com esquecimento das demais variantes, talvez artisticamente menos eficazes, mas, nem por isso, menos importantes do ponto de vista religioso. (BRANDÃO, 2002, p. 25/27).
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