Eros |
“No princípio era o Caos...” A terra, porém, estava informe e vazia e as
trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas.
(Gênesis 1,2). [...]
Tratava-se do Caos
primordial, dos tempos antes dos tempos (Tempora antea temporum...). Era a
energia poderosa do mundo informe que pré-existia à criação e coexiste com o
mundo formal, envolvendo como uma imensa e inexaurível reserva de energias, nas
quais se dissolverão as formas nos fins dos tempos.
Desse “Caos,
dotado de grande energia polífica, surgiram Gaia, Tártaro e Eros. “Eros, tecelão
de mythos,” nos lábios ardentes de Safo, “em grego Ἔρως, significa desejo incoercível dos sentidos.
Personificado, é o deus do amor. O mais belo entre os deuses imortais, segundo
Hesíodo, Eros dilacera os membros e transtorna o juízo dos deuses e dos homens.
Dotado, como não
poderia deixar de ser, de uma natureza vária e mutável, o mito do duas do amor
evoluiu muito, desde a era arcaica até a época alexandrina e romana, isto é, do
século IX a. C. ao século VI p. C. Nas mais antigas teogonias, como se viu em
Hesíodo, Eros nascem do Caos, ao mesmo tempo em que Gaia e Tártaro. Numa
variante da cosmogonia órfica, Caos e Nix (a Noite) estão na origem do mundo:
Nix põe um ovo de que nasce Eros, enquanto Úrano e Gaia se formam das duas
metades da casca partida.
Eros, no
entanto, apesar de suas múltiplas genealogias, permanecerá sempre, mesmo à
época de seus disfarces e novas indumentárias da época alexandrina, a força
fundamental do mundo.
Garante não
apenas a continuidade das espécies, mas a coesão interna do cosmo. Foi
exatamente sobre este tema que se desenvolveram inúmeras especulações de
poetas, filósofos e mitólogos.
Para Platão, no Banquete,
pelos lábios da sacerdotisa Diotima, Eros é um demônio, quer dizer, um
intermediário entre os deuses e os homens e, como deus do Amor está a meia
distância entre uns e outros, ele preenche o vazio, tornando-se, assim, o elo
que une o Todo a si mesmo.
Foi contra a
tendência generalizada de considerar Eros como um grande deus que o filósofo da
Academia lhe atribuiu nova genealogia.
Consoante
Diotima, Eros foi concebido da união de Póros (Expediente) e Penía (a Pobreza),
no Jardim dos Deuses, após um grande banquete, em que se celebrava o nascimento
de Afrodite. Em face desse parentesco tão díspar, Eros tem caracteres bem
definidos e significativos: sempre em busca de seu objeto, como Pobreza e
“carência”, sabe, todavia, arquitetar um plano, como Expediente, para atingir o
objetivo, “a plenitude”.
Assim, longe de
ser um deus todo-poderoso, Eros é uma força, uma ἐνέργεια
(enérgueia), uma “energia”, perpetuamente insatisfeito e inquieto: uma carência
sempre em busca de uma plenitude. Um sujeito em busca do objeto.
Com o tempo,
surgiram várias outras genealogias: uns afirmam ser o deus do Amor filho de
Hermes e Ártemis ctônia (Χθονίη, ligada à tellus, terra), ou de Hermes e
Afrodite urânia, a Afrodite dos amores etéreos; outras dão-lhe com pais Ares e
Afrodite, enquanto filha de Zeus e Dione e, nesse caso, Eros se chamaria
Ânteros, quer dizer, Amor Contrário ou Recíproco.
As duas
genealogias, porém, que mais se impuseram, fazem de Eros, ora filho de Afrodite
Pandêmia, isto é, da Afrodite popular, a Afrodite dos desejos incontroláveis, e
de Hermes, ora filho de Ártemis, enquanto filha de Zeus e Perséfone, e de
Hermes. Este último Eros, que era alado, foi o preferido dos poetas e
escultores.
Aos poucos,
todavia, sob a influência da poesia, Eros se fixou e tomou sua fisionomia
tradicional. Passou a ser apresentado como um garotinho louro, normalmente com
asas.
Sob a máscara de
um menino inocente e travesso, que jamais cresceu (afinal, a idade da razão, o lógos,
é incompatível com o amor) esconde-se um deus perigoso, sempre pronto a
traspassar com suas flechas certeiras, envenenadas de amor e paixão, o fígado e
o coração de suas vítimas...
Uma das Odes
atribuídas ao grande poeta lírico do século VI a. C., Anacreonte, dá-nos um
retrato de corpo inteiro desse incendiário de corações. Vamos transcrevê-la,
para que se tenha uma ideia da concepção tardia de Eros:
"Um dia, lá
pela meia-noite,
Quando a Ursa se
deita nos braços do Boieiro,
E a raça dos
mortais, toda ela, jaz, domada pelo sono,
Foi que Eros
apareceu e bateu à minha porta
"Quem bate
à minha porta,
E rasga meus
sonhos?"
Respondeu Eros:
"Abre, ordenou ele;
Eu sou uma criancinha,
não tenhas medo.
Estou
encharcado, errante
Numa noite sem
lua".
Ouvindo-o, tive
pena;
De imediato,
acendendo o candeeiro,
Abri a porta e
vi um garotinho:
Tinha um arco,
asas e uma aljava.
Coloquei-o junto
ao fogo
E suas mãos nas
minhas aqueci-o,
Espremendo a
água úmida que lhe escorria dos cabelos.
Eros, depois que
se libertou do frio,
"Vamos,
disse ele, experimentemos este arco,
Vejamos se a
corda molhada não sofreu prejuízo".
Retesa o arco e
fere-me no fígado,
Bem no meio,
como se fora um aguilhão"
Depois, começa a
saltar, às gargalhadas:
“Hospedeiro”,
acrescentou, “alegra-te”,
Meu arco está
inteiro, teu coração, porém, ficará partido.”
O fato de Eros
ser uma criança simboliza, sem dúvida, a eterna juventude de um amor profundo,
mas também uma certa irresponsabilidade. Em todas as culturas, a aljava, o
arco, as flechas, a tocha, os olhos vendados significam que o amor se diverte
com as pessoas de que se apossa e domina, mesmo sem vê-las (o amor, não raro, é
cego), ferindo-as e inflamando-lhes o coração. O globo que ele, por vezes, tem
nas mãos, exprime sua universalidade e seu poder.
Eros, de outro
lado, traduz ainda a complexio oppositorum, a união dos opostos. O amor é a
pulsão fundamental do ser, a libido, que impele toda a existência a se realizar
na ação. É ele que atualiza as virtualidades do ser, mas essa passagem ao ato
só se concretiza mediante o contato com o outro, através de uma série de trocas
materiais, espirituais, sensíveis, o que fatalmente provoca choques e comoções.
Eros procura
superar esses antagonismos, assimilando forças diferentes e contrárias,
integrando-as numa só e mesma unidade. Nessa acepção, ele é simbolizado pela
cruz, síntese de correntes horizontais e verticais e pelos binômios animus-anima
e Yang Yin.
Do ponto de vista
cósmico, após a explosão do ser em múltiplos seres, o Amor é a δύναμις
(dynamis), a força, a alavanca que canaliza o retorno à unidade; é a
reintegração do universo, marcada pela passagem da unidade inconsciente do Caos
primitivo à unidade consciente da ordem definitiva.
A libido então
se ilumina na consciência, onde poderá tornar-se uma força espiritual do
progresso moral e místico. O ego segue uma evolução análoga à do universo: o
amor é a busca de um centro unificador, que permite a realização da síntese
dinâmica de suas potencialidades.
Dois seres que
se dão e reciprocamente se entregam, encontram-se um no outro, desde que tenha
havido uma elevação ao nível de ser superior e o dom tenha sido total, sem as
costumeiras limitações ao nível, normalmente apenas sexual.
O amor é uma
fonte de progresso, na medida em que ele é efetivamente união e não
apropriação. Pervertido, Eros, em vez de se tornar o centro unificador,
converte-se em princípio de divisão e morte.
Essa perversão
consiste sobretudo em destruir o valor do outro, na tentativa de servir-se do
mesmo egoisticamente, ao invés de enriquecer-se a si próprio e ao outro com uma
entrega total, um dom recíproco e generoso, que fará com que cada um seja mais,
ao mesmo tempo em que ambos se tornam eles mesmos. O erro capital do amor se
consuma quando uma das partes se considera o todo. “O conflito entre a alma e o
amor é simbolizado pelo mito de Eros e Psiqué, que analisaremos mais adiante.”
(BRANDÃO, 2002, p. 184/190).
A SEGUIR, OUTRO
TEXTO DO MITÓLOGO JUNITO BRANDÃO
Eros e Psiqué |
Veja uma viagem
primeva e primordial feita através desses esses mundos, por Eros e Psiqué:
“EROS é o amor
personificado. Em grego Ἔρως
(éros), do verbo Ἐρασταί (érasthai)
“desejar ardentemente”, significa com exatidão “o desejo incoercível dos
sentidos”. Em indo-europeu tem-se o elemento (*e)rem “comprazer-se,
deleitar-se” com o qual talvez se possa fazer uma aproximação.
PSIQUÉ é
igualmente a alma personificada. Em grego yυχή (psykhé), do verbo yύchin (psychein),
“soprar, respirar”, significa tanto “sopro” quanto “princípio vital”. Vide Dicionário
Mítico-Etimológico, s. m. Psiqué.
O mito Eros e
Psiqué, embora de origem grega, chegou até nós inserido, como uma verdadeira
novela, no romance Metamorfoses do escritor latino Lúcio Apuleio.
Narraremos
primeiramente o mito, em sua essência, como está no autor latino, mas
despindo-o de sua indumentária romanesca e de algumas tiradas cáusticas de
Apuleio. Em seguida, faremos um comentário sobre o mesmo, buscando a
interpretação que nos parecer mais adequada.
Em certa cidade
havia um rei e uma rainha que tinham três filhas lindíssimas. As duas mais
velhas, ainda que fossem também muito belas, podiam igualmente ser celebradas
por louvores dos homens, mas não havia linguagem humana capaz de descrever ou
pintar a formosura da caçula.
Assim começa o
romance de Psiqué, que era tão arrebatadoramente bela, que os mortais, em lugar
de pedi-la em casamento, adoravam-na como se fosse a própria Afrodite, cujos
templos e culto, por isso mesmo, haviam sido esquecidos e abandonados. Psiqué
se tornara a nova deusa do Amor. A nova Afrodite! E era sob os traços humanos
da jovem princesa que se procurava venerar a poderosa mãe de Eros.
Grande mãe,
origem de todos os elementos, alma do mundo inteiro, como se autodenominava,
vendo-se preterida por uma simples menina, irritada com o confronto de beleza,
a deusa chamou se filho Eros, menino alado e de maus costumes, corruptor da
moral pública e provocador de escândalos, e deu-lhe uma incumbência urgente.
Levou-o à cidade, onde vivia a bela Psiqué, e pediu-lhe que a fizesse
apaixonar-se pelo mais horrendo dos homens. Beijou-o, muitas vezes, com os
lábios entreabertos e retornou a seu habitat preferido, o bojo macio do mar.
O rei, casadas
as duas filhas mais velhas, e temendo, como Liríope, a cólera dos deuses por
causa da beleza da mais jovem, mandou consultar o oráculo de Apolo em Mileto. A
resposta do deus mântico foi direta e terrível: a jovem, coberta com uma
indumentária fúnebre, deveria ser conduzida ao alto de um rochedo, , onde um
monstro horrível com ela se uniria.
Eros, todavia,
que, em vez de ferir com flechas a Psiqué, havia sido ferido por ela, ordenou
ao vento Zéfiro que a transportasse para um vale macio e florido, que se
estendia ao sopé da montanha. Após descansar de tantas emoções e restaurada por
um sonho reparador, a jovem princesa se ergueu e viu logo, cercado por um
bosque, à beira de uma fonte, um palácio de sonhos: suas colunas de ouro
serviam de suporte ao teto de cedro e marfim; as paredes eram recamadas de
baixos-relevos de prata o pavimento, confeccionados de mosaicos de pedras
preciosas; os imensos salões tinham paredes de ouro maciço. Uma obra digna de
Dédalo e Hefesto.
Deslumbrada com
tanta beleza, Psiqué penetrou no palácio e, a partir de então, foi servida não
por escansões e criadas em carne e osso, mas por uma multidão de Vozes, que lhe
atendiam até mesmo os desejos não formulados. Naquela mesma noite da chegada da
princesa ao vale dos encantos, Eros, sem se deixar ver, fez de Psiqué sua
mulher, mas antes de nascer o sol, desapareceu rápida e misteriosamente.
A cena se
repetia todas as noites e a princesa acabou por habituar-se à sua nova
existência: as Vozes, atentas e solícitas, consolavam-na da solidão.
A Fama, porém,
divulgou a “desdita” de Psiqué e as irmãs casadas, tristes e cobertas de luto,
deixando seus lares, apressaram-se em visitar e confortar os pais.
Eros pressentiu
a ameaça que pesava sobre a felicidade do casal e avisou a esposa do perigo
iminente: as irmãs, dentro em pouco, viriam até o rochedo para chorá-la. Psiqué
deveria fazer ouvidos moucos à suas lamentações e nem sequer “olhar para elas”,
para nem incidir no mesmo erro de Orfeu... A jovem esposa tudo prometeu, mas
tão logo o amante se retirou, sem se deixar contemplar, como acontecia todas as
madrugadas, Psiqué se viu mais que nunca prisioneira da própria felicidade,
impedida de consolar e até mesmo de se encontrar com suas irmãs.
Foi com muitas
carícias e súplicas que conseguiu arrancar do esposo permissão não apenas para
vê-las, mas ainda o consentimento para que Zéfiro as transportasse até seu
palácio paradisíaco. Apaixonado, Eros concordou com tudo, mas pediu-lhe e
suplicou que jamais tentasse ver-lhe o semblante, por mais que as irmãs
insistissem nesse ponto.
O encontro, a
princípio, foi um deslumbramento. Às lágrimas de dor sucederam as manifestações
de alegria e regozijo. Mas, à medida em que a inocente Psiqué ia-lhes abrindo
as portas de sua doce ventura, a abundância de suas riquezas, as sementes da
inveja começaram a germinar-lhes no coração. Apesar, todavia, das insistentes
perguntas de uma das irmãs acerca do marido e de tantas riquezas, Psiqué
inventou o que a situação embaraçosa lhe inspirava e, cumuladas as irmãs de
ouro e joias, fez que Zéfiro as levasse de volta ao rochedo.
Já agora envenenadas
pelo fel da inveja confrontaram sua desdita com o destino da irmã: esta, mais
jovem, “rebento de uma fecundidade esgotada”, habitando um palácio de ouro,
servida por Vozes, dando ordens aos ventos e casada certamente com um deus;
elas, mais velhas, unidas a dois estafermos: um, “mais calvo que uma
abóbora,mais baixo e anão que um menino”, mais avarento que Caronte; a outra
desposara um ancião doente e sua função não era a de esposa, mas de
enfermeira... Ocultando tudo dos pais, regressaram a seus lares com uma ideia
fixa: derrubar a ingênua Psiqué do pedestal de sua bem-aventurança.
Eros, naquela
mesma noite, voltou a advertir a esposa: Não vês o perigo que de longe te
ameaça? Se não procederes com a máxima cautela, o destino se abaterá sobre ti.
As bruxas traiçoeiras esforçam-se por te armar uma cilada e a pior armadilha é
persuadir-te a contemplar meu rosto. Já de adverti muitas vezes de que nunca
mais o verás, se o contemplares uma única vez (...) dentro em breve teremos um
filho. Ainda uma menina, darás à luz uma criança. Se guardares nosso segredo,
ela será um deus; se o propalares, será tão somente um ser mortal.”
Psiqué exultou
com a ideia de ter um filho divino e regozijou-se com a dignidade do nome de
mãe. Os dias se escoaram rápidos e o esposo noturno voltou, dessa feita, mais
incisivo em admoestá-la de que chegara o momento decisivo: as bruxas já se
aproximavam , prontas para destruir-lhe a paz e a felicidade. As últimas
palavras do deus são significativas: deixa-as uivar do cume do rochedo, como as
Sereias, com sua voz fúnebre.
Novas lágrimas
de Psiqué, novas promessas, novas juras de amor e o deus apaixonado novamente
se curvou aos caprichos da esposa. As conspiradoras, entretanto, tal era a
pressa em executar seu plano sórdido, tão logo chegaram ao alto do rochedo, nem
mesmo esperaram por Zéfiro, lançado-se temerariamente no abismo. A contragosto,
o Vento as acolheu e depositou no solo.
Com fingida
alegria congratularam-se com a irmã pela gravidez, conseguindo, desse modo,
desfazer qualquer suspeita. Em seguida, vieram as perguntas, sempre as mesmas:
queriam saber quem era o marido de Psiqué. Essa, em sua ingenuidade, se
contradisse: na primeira visita disse-lhes que o esposo era um jovem lindíssimo
e agora o descreveu como um homem de meia-idade, um riquíssimo comerciante. Era
o que lhes bastava: ou a irmã estava mentindo, e o marido era um deus, ou ela
simplesmente ignorava seu aspecto.
De qualquer
forma, era preciso destruir a prosperidade de Psiqué. Passaram uma noite em
claro na casa dos pais e, já pela manhã, estavam novamente no palácio de Eros.
Com fingida e cínica preocupação, mostraram à irmã o perigo que a ameaçava.
Quem à noite se deitava a seu lado não era um homem, mas uma serpente enroscada
em mil anéis, com as fauces túrgidas de peçonha, a boca larga como um abismo.
Psiqué Mostrando a Suas Irmãs os presentes de Cupido |
Lembraram-lhe o
oráculo de Apolo que a predestinava a unir-se a um monstro, reforçando seu
intento diabólico com a mentira: a medonha serpente, segundo camponeses e
caçadores da região, tem sido vista à noitinha, atravessando o rio vizinho em
direção ao palácio.
O réptil
aguardava apenas o momento oportuno para devorá-la, bem como à criança que ela
trazia no ventre. Elas, porém,as irmãs, ali estavam prontas para ajudá-la!
Transtornada, Psiqué confessou-lhes a verdade: jamais contemplara o rosto do
marido e pediu-lhes súplice que a protegessem e assistissem.
Vendo que tudo
estava aparelhado para o plano sinistro, há muito arquitetado, uma das bruxas o
transmitiu à insegura e desditosa esposa de Eros: deveria ela preparar um
punhal bem afiado um candeeiro de luz bem forte. Quando a “serpente imunda”
mergulhasse em sono profundo, seria o instante propício: iluminar-lhe
cuidadosamente o rosto e de um só golpe cortar-lhe a cabeça.
Embora tivessem
prometido que permaneceriam a seu lado, até a “execução do monstro”, tão logo
perceberam que o veneno fizera seu efeito, apressaram-se em deixá-la. Sozinha,
com o espírito transtornado, Psiqué se agita e parece decidida a perpetuar o
crime, mas eis que subitamente hesita, depois resolve; vacila outra vez,
desconfia das irmãs, se enfurece, lembra-se dos ternos abraços do esposo...
Seria ele, realmente, uma serpente imunda? Numa palavra: Psiqué num mesmo corpo
odeia o monstro e ama o marido...
Psiqué com o candeeiro |
Eros a seu lado
dormia tranquilamente. Como fora de si, a jovem esposa reuniu todas as suas
forças: numa das mãos o candeeiro, na outra o punhal. Muito de leve aproximou a
luz do rosto do marido. Estava revelado o grande segredo: viu a mais delicada,
a mais bela de todas as feras. Eros, o deus do amor, ali estava diante de seus
olhos. A jovem empalidece, treme, cai de joelhos.
Olhando-o,
contempla-o embevecida e, “especulado-o”, Psiqué, como Narciso, não mais pôde
tirar os olhos dele. Quis matar-se, mas o punhal se lhe resvalou da mão.
Percebendo ao lado do leito a aljava e as flechas do deus, ao tocá-las, acabou
ainda por ferir-se com uma delas. Agora, mais que nunca, sua paixão seria
eterna. Inflamada de amor, inclina-se sobre ele e começa a beijá-lo como louca.
Esquecida do
candeeiro, deixa-o curvar-se e demasia e uma gota de óleo fervente cai no ombro
do deus adormecido. Eros desperta num sobressalto e, ao ver desvendado seu
segredo, levantou voo no mesmo instante; sem dizer uma só palavra, afastou-se
rapidamente da esposa. Esta ainda tentou segui-lo através das nuvens,
segurando-lhe a perna direita, mas exausta, caiu ao solo.
Foi então que,
descendo das alturas celestiais e posando num “cipreste”, Eros falou a sua
amada: Quantas vezes não te admoestei acerca do perigo iminente, quantas vezes
não te reprendi delicadamente. Tuas ilustres conselheiras serão castigadas em
breve, por suas pérfidas lições; quanto a ti, o teu castigo será minha
ausência.
Estava decretado
o início do itinerário doloroso de outra Psiqué.
Fora de si, a
princesa, desejando morrer, lançou-se às correntezas de um rio próximo, mas as
próprias águas, numa corcova, repuseram-na em terra.
Pã e sua flauta |
Pã, “o velho
sábio”, que tranquilamente estava sentado numa ribanceira vizinha, aconselhou-a
a desistir da morte e a invocar Eros. Dali partiu a jovem esposa, após longa
caminhada, chegou a uma cidade, onde morava uma das irmãs. Narrou-lhe sua
desdita e mentiu-lhe, dizendo que Eros a desejava por esposa.
A irmã, sem mais
delongas, alucinada de paixão e de inveja criminosa, dirigiu-se para o rochedo
fatídico e, invocando o deus do amor e a Zéfiro, lançou-se no abismo.: seu
corpo se despedaçou nas pontas de rocha e suas vísceras se espalharam pela
encosta. Com igual ardil procurou a segunda irmã, que teve o mesmo destino da
primeira.
Enquanto Psiqué
peregrinava, de cidade em cidade, em busca de Eros, este jazia no leito,
gemendo de dor pela queimadura sofrida. Foi então que a Gaivota indiscreta
buscou Afrodite no fundo do mar, onde a deusa despreocupadamente nadava, e
contou-lhe tudo a respeito da doença do filho e da paixão do mesmo por Psiqué.
Indignada, a
deusa deixou os domínios de Posídon e partiu para seu palácio dourado e, como
mãe-bruxa repressiva, descarregou sobre o filho uma saraivada de insultos. Vale
a pena transcrever algumas linhas da explosão castradora da deusa do amor e
“mãe de Eros”; Porventura desejas impor-me uma rival como nora? Julgas,
realmente, devasso, asqueroso, sedutor intolerável, que somente tu podes ter
filho e que eu, por causa de minha idade, não mais poderia conceber?
Pois é bom que
saibas: gerarei um filho melhor do que tu, ou até mesmo, para te humilhar,
adotarei um de meus escravos e a ele entregarei tuas asas, teu archote, as
setas e tudo quanto carregas para outro fim. Nada do que possuis vem de teu
pai, tudo é meu!
A mãe, que não
quer nora, mas o filho apenas para si, a mãe que o beija “com lábios
entreabertos”, deixou o palácio ardendo em fúria e em ciúmes. Pediu a Deméter e
a Hera, duas outras Grandes Mães, que a ajudassem a encontra a fugitiva Psiqué,
mas, percebendo que ambas, por medo de Eros, o lisonjeavam, abandonou-as no
meio do caminho e refugiou-se no mar.
Psique, no
entanto, continuava seu roteiro de dor. Dois encontros importantes com Deméter
e Hera de nada lhe valeram: as Deusas Mães, se bem que penalizadas com os
sofrimentos da jovem esposa, não podiam prestar-lhe qualquer auxílio. Dessa
feita, temiam irritar Afrodite...
AFRODITE |
Exausta e vendo
malograr todas as tentativas de encontrar o único “amor” de sua vida, Psiqué
estava prestes a tomar uma resolução extrema: entregar-se à sogra e procurar
mitigar-lhe o ódio com humilde submissão. E quem sabe não encontraria no
dourado palácio da deusa a quem tanto buscava?
A poderosa
senhora do amor, nessas alturas, já conseguira com Zeus a preciosa assistência
de Hermes, para que anunciasse pelo mundo inteiro que uma de suas escravas
havia fugido e que recompensaria a quem desse informação a respeito de seu
paradeiro.
O anúncio do
mensageiro dos deuses e dos homens apressou a deliberação da amante de Eros.
Sentindo-se perdida, encaminhou-se resolutamente para o palácio da deusa. Já se
aproximava do mesmo, quando foi vista por Hábito uma das escravas do palácio.
A serva
agarrou-a brutalmente pelos cabelos e arrastou-a para junto de sua Senhora.
Quando esta viu Psiqué, um sorriso feroz iluminou-lhe as feições. Após
humilhá-la e insultá-la, entregou-a a duas outras escravas, Inquietação e Tristeza,
para que a torturassem.
Flagelada e
supliciada de todas as maneiras, foi novamente conduzida à presença da deusa.
Como se novos insultos grosseiros não bastassem, Afrodite investiu contra a
indefesa menina: rasgou-lhe as vestes e arrancou-lhe os cabelos e espaçou-a da
cabeça aos pés. Em seguida, e foi o pior dos castigos, impôs-lhe as quatro
célebres tarefas, como se tivesse diante
de si um novo Héracles! Manda trazer uma grande quantidade de trigo, cevada,
milho, grãos-de-bico, sementes de papoula, lentilhas e fava, mistura tudo,
fazendo com eles um só monte e ordena a Psiqué de separá-los por espécie:
trabalho para aquela noite! A jovem nem mesmo tentou, pois a empreitada era
inexequível.
Uma formiguinha,
porém, que por ali passava, pôde avaliar a impossibilidade de execução da
tarefa e, revoltada com a perversidade da deusa, resolveu convocar um batalha
de formigas e pedir-lhes que todas juntas socorressem Psiqué, pois que todas
são as ágeis criaturas da Terra, a mãe de todos.
Trabalhando
incansavelmente, ao anoitecer, as filhas da Terra já haviam separado espécie
por espécie e grão por grão. Furiosa, atribuindo o êxito de Psiqué a Eros, a
deusa insultou-a e atirou-lhe um pedaço de pão.
Pela manhã,
convocou a “nora” e deu-lhe a segunda tarefa, impraticável e mortal: trazer-lhe,
custasse o que custasse, flocos de lã de ouro que cobriam o dorso de ovelhas
ferozes que vagueavam ali bem perto, num bosque, à beira de um rio de imensos
sorvedouros.
Sem dizer
palavra, a jovem amante caminhou em direção ao bosque, não para executar o
trabalho ordenado, mas para precipitar-se nas águas impetuosas do rio. Um
simples e humilde Caniço verde, todavia, salvou-a duas vezes da morte:
suplicou-lhe duas vezes que não poluísse “as águas sagradas” e ensinado-lhe
como proceder para cumprir a ordem recebida.
O ardil
consistia em não se aproximar das ovelhas enquanto o sol estivesse a pino,
porque, com o calor, elas eram tomadas de um furor terrível, atacavam com os
chifres, davam testadas e suas mordidelas eram venenosas e mortais.
Era aguardar
tranquilamente, sob um plátano, que o calor diminuísse e o vento fresco do rio
as acalmasse. Passado o “furor”, as ovelhas iriam descansar e deixariam flocos
de lã presos nas árvores do bosque. Bastaria sacudi-las e colher a quantidade
desejada. Seguindo à risca os conselhos do Caniço, Psiqué pôde voltar para
junto da “sogra” com o regaço cheio de flocos de lã de ouro.
A deusa não se
tocou e mais uma vez imputou o bom êxito da tarefa à intervenção de Eros. O
terceiro trabalho era o mais perigoso até agora: tratava-se da busca da água
perigosa. Entregou-lhe a Grande Mãe um vaso de cristal e ordenou-lhe que escalasse
um rochedo íngreme e enchesse a urna numa fonte guardada de ambos os lados por
terríveis dragões. Dessa fonte rolavam as águas escuras, que alimentavam dois
rios infernais: o Cocito e o Estige.
Ao aproximar-se
do rochedo, Psiqué ficou como que petrificada. Nem chorar conseguia. Era até
mesmo impossível escalar o rochedo escorregadio. Mais prático seria desistir ou
matar-se.
A águia de Zeus,
todavia, lembrando-se da inestimável ajuda de Eros, por ocasião do rapto de
Ganimedes, abriu suas asas imensas e veio em socorro da amante do deus do Amor.
Balanceando as asas, a ave predileta de Zeus passou rápida por entre os dentes
ferozes dos dragões, encheu o vaso e o entregou a Psiqué.
O bom resultado
do empreendimento, dessa vez, não foi atribuído a Eros, mas à magia e à
bruxaria. Foi com um sorriso sinistro que Afrodite lhe deu a quarta e fatal
empreitada. Passou-lhe às mãos uma caixinha e ordenou-lhe que descesse ao fundo
do Hades. Lá deveria se apresentar a
Perséfone e solicitar-lhe, em nome da mãe de Eros, que lhe enviasse um
“pouquinho da beleza imortal”, uma vez que a deusa do amor havia consumido toda
a sua radiante formosura nos cuidados com o filho doente. A tarefa teria que
ser executada no mesmo dia.
Foi então que
Psiqué compreendeu que, na realidade, seu fim estava próximo. Não havia mais
enigmas: enviaram-na, claramente à própria morte.
Subiu, por isso
mesmo, a uma Torre muito alta a fim de precipitar-se lá de cima. Era este,
pensou, o atalho mais rápido para chegar ao fundo do Hades.
HADES E CÉRBERO |
A Torre, porém,
falou com mansidão à esposa de Eros que não recuasse ante a prova derradeira.
Infundiu-lhe ânimo e instruiu-a acerca do caminho mais curto para atingir o
mundo dos mortos, explicando-lhe, ao mesmo tempo, as precauções que deveria
tomar na longa caminhada pelas trevas.
A entrada que
conduzia diretamente ao palácio do Orco, disse-lhe a Torre, era pelo cabo
Tênaro, no Peloponeso. Além do mais, deveria ela levar na boca dois óbolos e em
cada mão um bolo de cevada e mel. Os primeiros eram para pagar a passagem de
ida e volta ao barqueiro Caronte e os segundos para apaziguar o cão Cérbero, na
entrada e na saída do Hades.
Três tentações
deveriam ser vencidas ao longo do percurso. Uma vez percorrido um bom trecho do
caminho, Psiqué encontraria um burriqueiro coxo, conduzindo um asno igualmente
coxo, carregado de lenha.
O condutor lhe
pediria que apanhasse algumas lascas caídas no chão, mas a jovem deveria fazer
ouvidos moucos à solicitação e prosseguir a viagem.
Já na barca de
Caronte, em plena travessia dos rios infernais, um velho ergueria do fundo das
águas as mãos pobres e imploraria que o puxasse para dentro da embarcação, mas
a amante de Eros não deveria se deixar vencer pela piedade ilícita. Já do outro
lado, ao se encaminhar para o palácio de Plutão e Perséfone, encontraria umas
velhas tecedeiras, que lhe solicitariam ajuda. Sem atendê-las, prosseguiria em
seu caminho. A intenção diabólica de Afrodite era que a “nora” largasse um dos
bolos e, se assim acontecesse, ela entraria no mundo dos mortos para nunca mais
regressar.
Uma vez na
mansão do Hades, seria gentilmente atendida por Perséfone, que a convidaria a sentar-se
e participar de um lauto jantar. Psiqué recusaria ambas as gentilezas.
Sentar-se-ia no chão e aceitaria apenas um pedaço de pão preto. Exposto o
motivo da viagem e recebida a encomenda da deusa do Amor, deveria imediatamente
refazer o caminho de volta, mas, em hipótese alguma, poderia abrir a caixinha,
que continha a beleza imortal! Ouvidas com toda a atenção as instruções e
recomendações da Torre, Psiqué partiu e fez exatamente quanto lhe fora dito. No
retorno do mundo das trevas,porém, já em plena luz, uma grande curiosidade lhe
assaltou o espírito:
Sou mesmo uma
tola, disse de si para si. Trago comigo a beleza divina e até agora não peguei um
pouquinho para mim, a fim de conquistar meu lindíssimo amante. Assim dizendo,
abriu a caixinha.
Como o mito de
Pandora, as mazelas sempre estão guardadas em jarras e caixinhas! E a da esposa
de Eros não continha beleza alguma imortal, mas o sono estígio, que,
espalhando-se, se apoderou da curiosa Psiqué e a prostrou no meio do caminho,
imóvel como um cadáver.
AFRODITE ADORMECIDA E EROS |
Eros, já curado
do ferimento produzido pelo óleo fervente, morto de saudades da esposa,
adivinhando o que se passava, escapou pela janela do quarto, que lhe servia de
cárcere e, num voo rápido e nervoso, aproximou-se de Psiqué. Recolocou
cuidadosamente na caixinha o sono letárgico e desperto sua Bela Adormecida com
o leve toque de uma de suas flechas. Repreendeu-a “pela última vez” com toda a
delicadeza e pediu-lhe que cumprisse a missão de que fora encarregada por
Afrodite. Ele faria o resto.
Enquanto Psiqué
se desempenhava de sua última tarefa, levando a caixinha à mãe de Eros, este,
temendo a ira materna, dirigiu-se diretamente a Zeus e pediu-lhe que lhe
advogasse a causa. Aceita a incumbência, o senhor do Olimpo ordenou a Hermes
que convocasse todos os deuses para uma assembleia. Vale a pena transcrever uma
pontinha do discurso de Zeus, porque ele tem muito a ver com a interpretação do
mito:
Deuses, cujos
nomes estão inscritos no arquivo das musas, todos vós conheceis muito bem,
assim penso, este jovem que eu próprio eduquei. Julgo ser conveniente refrear
de uma vez por todas as desregradas paixões de sua juventude. Chega de ouvir
falar em seus escândalos diários no mundo inteiro, mercê de seus galanteios e
devassidões. Chegou o momento de tirar-lhe qualquer oportunidade de praticar a
luxúria. Cumpre aprisionar-lhe o comportamento lascivo da meninice nos laços do
himeneu. Ele escolheu um donzela e roubou-lhe a virgindade. Que ele a possua,
que ela o conserve para sempre, que ele goze de seu amor e tenha Psiqué em seus
braços por toda a eternidade.
Quanto a
Afrodite, nada mais teria ela com que preocupar-se: este casamento morganático,
isto é, entre um deus e uma mortal, em nada afetaria a dignidade e a nobreza da
deusa do Amor, porquanto Zeus faria que o mesmo se realizasse dentro dos
cânones do melhor direito civil, mas civil do Olimpo.
Aprovada por
todos os imortais a união de Eros e Psiqué, o pai dos deuses e dos homens
ordenou a Hermes que a raptasse da Terra para o Céu. Tão logo a jovem chegou à
mansão dos deuses, Zeus foi-lhe ao encontro com uma taça de ambrosia, a bebida
da imortalidade: Bebe, Psiqué, disse-lhe o deus supremo, e sê imortal. Eros,
com efeito, jamais abandonará teus braços, porquanto o vosso casamento será
perpétuo.
Um esplêndido
banquete nupcial foi servido aos imortais. Com muito néctar e ambrosia, com
muita música, dança e cantos melodiosos, com muitas rosas e bálsamos, sob as bênçãos
de Afrodite, Eros e Psiqué se “reuniram” para sempre.
São tantas as
análises, interpretações e conjeturas acerca do mito de Eros e Psiqué, que, se
Apuleio as tivesse conhecido, teria escrito várias outras Metamorfoses... Aliás,
o mito em pauta é a maior das metamorfoses e é, sob esse enfoque, que se
tentará decodificá-lo.
Na busca de uma
interpretação plausível do mito de Eros e Psiqué, recorremos, além dos
neoplatônicos, sobretudo à obra erudita de Neumann, cuja análise nos pareceu
mais profunda e mais bem elaborada de quantas tivemos em mãos. Vamos, pois,
segui-la, traduzindo-a, não raro, ipsis litteris.
PSIQUÉ E A CAIXINHA DE PERSÉFONE |
A beleza de
Psiqué fez que se esquecesse Afrodite. Seus templos foram fechados e
abandonados e de todas as partes acudiam forasteiros para ver e reverenciar não
mais a mãe do Amor, mas uma mera princesa. Irritada com a competição e com o
desleixo de seu culto, a deusa pediu a sei filho Eros para vingá-la e destruir
a jovem beldade, fazendo-a casar-se com o mais repulsivo dos homens. Apesar de
tanta beleza, porém, Psiqué não era amada, pois que todos se aproximavam dela
como se fosse uma das imortais e não uma simples mulher.
Temendo pela
filha, o rei consultou o oráculo e este a condenou às núpcias da morte:
Sobre um rochedo
escarpado, suntuosamente ataviada,
Expõe, ó rei,
tua filha, para as núpcias da morte.
Não esperes para
genro alguém nascido de estirpe mortal,
mas um monstro
cruel e viperino, que voa pelos ares:
feroz e cruel
nãopoupa ninguém e tudo destrói a ferro e fogo.
Faz tremer o
próprio Zeus e aterroriza os imortais,
estremece os
rios infernais e inspira horror às trevas do Estige.
Em obediência ao
oráculo, os pais abandonaram a jovem às núpcias da morte com o monstro, mas
surpreendentemente Psiqué é levada pelo vento Zéfiro para um palácio encantado,
onde passa a desfrutar uma vida paradisíaca com Eros, seu amante invisível. As
irmãs mais velhas, corroídas de ciúme e inveja, resolvem destruir o idílio da
caçula. Não obstantes as contínuas advertências do marido, ela decide, a
conselho das irmãs, surpreende o monstro dormindo e matá-lo.
Executando o
plano diabólico, Psiqué vê a seu lado o próprio Eros, por quem se apaixona
loucamente. Uma gota de azeite fervente, porém, lhe cai no ombro. O deus
desperta e, sem dizer palavra, abandona a amante. Segue-se a busca de Psiqué,
sua luta contra a crescente ira de Afrodite e a execução da quatro tarefas que
a deusa lhe impõe. Abrindo a caixinha que lhe entregara Perséfone, a esposa do
filho de Afrodite mergulha num sono letárgico. Eros a salva, e, imortalizada
por Zeus, é festejada no Olimpo como esposa eterna do eterno Amor.
Como se pode
observa, o mito se divide em cinco partes: a introdução; as núpcias da morte; a
tentação de Psiqué e sua paixão; as quatro provas e o desfecho feliz, com a
imortalização da heroína.
É esta ordem que
segue Neumann na análise do mitologema e, tendo-o tomado por guia, vamos
perseguir com ele o mesmo roteiro.
Tema central do
mito é inquestionavelmente o conflito entre Afrodite e Psiqué. A deusa, “que
surgiu das profundezas azuis do mar e nasceu do borrifo das ondas espumantes”,
dignou-se manifestar sua divindade ao mundo e estaria vivendo entre os povos da
terra. E não obstante tanta gentileza e amizade pelos mortais, estes se
afastavam cada vez mais de seu templos e dos prazeres que somente ela lhes
poderia proporcionar. Tudo por causa de uma simples princesa mortal.
Ofensa mais
grave para a deusa, todavia, era a crença corrente entre os homens de que “o
céu chovera novo e fecundante orvalho e de que a terra germinara, como uma
flor, uma segunda Afrodite em todo o viço de sua mocidade”.
Consoante tal
convicção, Psiqué não seria apenas uma encarnação da deusa, mas uma segunda
Afrodite, recém-concebida e recém-nascida. Se a mãe de Eros fora concebida no
bojo do mar, em virtude do esperma do falo decepado de Úrano, sua antagonista
nascera da terra fecundada por uma gota de orvalho, caído do céu.
Com seus templos
arruinados, as chamas de seus altares extintas, seus leitos sagrados
desrespeitados, seu culto esquecido, e a cada dia crescendo a multidão que
atravessava as profundezas do mar para ver a nova Afrodite, a deusa deixou-se
dominar por uma cólera violenta.
Afinal, ela “a
primeira mãe de todas as coisas criadas, a fonte primordial de todos os
elementos”, ser posposta a uma simples princesa! Ferida em sua dignidade de
Grande Mãe, resolveu usar seu filho Eros para destruir a rival, ou seja, para punir
a ὕϐρις
(hýbris), a híbris, a “démesure”, o descomedimento de uma pobre mortal, “lama
imunda da terra”, que ousara igualar-se a uma deusa numinosa. Sob este aspecto,
o mito se abre dentro dos padrões de uma tragédia grega.
Enquanto se
encenava essa tragicomédia entre mãe e filho, Psiqué estava irremediavelmente
só, sem marido e sem amor e começou, desse modo, a odiar, “em si mesma a beleza
que constituía o encantamento de nações inteiras.” O pai, recorrendo ao oráculo
de Apolo, na expectativa de que a filha lindíssima obtivesse um marido, recebeu
a resposta terrível que já se conhece.
Inicia-se então o lúgubre cortejo para as
núpcias da morte, insinuadas no prólogo do drama. As tochas levemente acesas,
“obstruídas por escura fuligem e cinza”, as árias festivas da flauta nupcial
“substituídas pelos plangentes acordes da melopeia lídia” são elementos típicos
do ritual matrilinear das núpcias de morte, que precediam as lamentações por
Adônis.
Trata-se, no
caso, do tema primordial da noiva consagrada à morte, que normalmente aparece
sob a epígrafe de “a virgem e a morte”, o que denota, consoante Neumann “um
fenômeno central da psicologia feminina matrilinear”.
Para o mundo
matrilinear, argumenta o psiquiatra israelense, “todo casamento é um rapto de
Core, a flor virginal, consumado por Hades, oi violador, ou seja, um simbolismo
terreno do macho hostil. Desse modo, todo o casamento é como um exposição no
cume de um monte em mortal solidão e uma espera pelo monstro masculino a quem a
noiva é entregue.
O velar-se das
noiva é sempre o velar, o encobrir do mistério, e o matrimônio, como as núpcias
da morte, é um arquétipo central dos mistérios femininos. Na mais profunda
experiência do feminino os temas das núpcias de morte, da virgem sacrificada a
um monstro, feiticeiro, dragão ou espírito do mal, recontados em inúmeros mitos
e lendas, são igualmente um hieròs gámos. O caráter de rapto que o evento
assume, expressa, relativamente ao feminino, a projeção - típica da fase
matrilinear -
do elemento hostil sobre o homem.
Nessa linha de
raciocínio é inadequado interpretar o crime das Danaides, todas as quais, menos
uma, mataram seus maridos na noite de núpcias, como a resistência do feminino
ao casamento e como a dominação patrilinear do masculino. Indubitavelmente, tal
interpretação é correta, mas aplica-se tão somente à última fase de um
desenvolvimento, que ocorre muito antes.
“A situação
fundamental do feminino (...) prende-se à relação primordial de identidade
entre filha e mãe. A aproximação do macho, por isso mesmo, sempre e em qualquer
caso, significa separação. O casamento é sempre um mistério, mas é também um
mistério de morte. Para o macho - e isso é inerente à oposição
essencial entre o masculino e o feminino - o casamento como a
matrilinhagem o concebia é antes do mais um sequestro, uma aquisição, uma
violação, um rapto.
No casamento
greco-latino ao menos, diga-se, de caminho o “rapto” era substituído
simbolicamente não só pela fuga simulada da noiva, indo-lhe o marido ao encalço
e reconduzindo-a ao cortejo nupcial, que se realizava ao anoitecer, à luz das
tochas, mas ainda, quando a procissão atingia a casa do esposo pelo gesto deste
em tomá-la nos braços e colocá-la dentro de seu novo lar.
No mundo moderno
ainda se usa, de certa forma, a segunda modalidade, mas, ao que tudo indica, o
atraso intencional da noiva em chegar ao local do casamento se configuraria
numa simulação simbólica da fuga.
Na análise desse
profundo estrato místico e psicológico é necessário esquecer o desenvolvimento
cultural e as formas que assumiram as
relações entre homens e mulheres e
retroceder ao fenômeno do primeiro encontro sexual entre eles. Não há de ser
difícil intuir que a significação desse encontro foi certamente muito diversa
para o masculino e para o feminino. O que para o masculino é agressão, vitória,
violação, satisfação dos desejos - basta que se observe o mundo
animal e se tenha a coragem de reconhecer este nível como válido também para o
ser humano -
é, para o feminino, destino, transformação e o mais profundo mistério da vida.
Não é por mero
acaso, segundo observou agudamente Erich Neumann, que o símbolo central da
virgindade seja a flor e é extremamente significativo que a consumação do
matrimônio, a destruição da virgindade, se denomine defloração. Para o feminino
o ato da defloração representa um verdadeiro e misterioso vínculo entre um fim
e um começo, entre um deixar-de-ser e penetrar na vida real.
Eis o motivo por
que o ao de defloração representou originariamente para o masculino algo
numinoso e profundamente misterioso. Em muitas culturas este ato foi, por isso
mesmo, abstraído da vida privada e executado como um rito. Acrescente-se, além
do mais, que a defloração nem sempre era consumada pelo noivo, mas pelo rei,
por um estranho e maias especificamente por uma “divindade”, o que explica que
a noiva, não raro, passiva a primeira noite de núpcias num templo. E, quando a
tarefa era desempenhada pelo noivo, rodeava-se o leito nupcial de divindades
ajudantes e cooperantes, conforme se mostrou no Vol I, p. 308/309.
De qualquer
forma, torna-se patente quão decisiva deve ter sido, na vida do feminino, a
transição da “virgem-flor” para a “mãe-fruto”, quando se leva em consideração a
rapidez com que se esvai a juventude feminina, sob condições primitivas, e com
que pressa é consumida a fecundidade, quando a mulher é submetida a trabalhos
pesados e penosos.
O tema das
núpcias da morte ocupa, sem dúvida, uma posição central no mitologema de
Psiqué, se bem que, de início, o mesmo se nos apresente apenas como uma simples
vingança de Afrodite.
Conduzida pela
multidão para o local onde se consumaria, segundo todos acreditavam, seu
fatídico himeneu, a jovem princesa acompanha em prantos não a alegre e festiva
procissão de suas núpcias, mas o cortejo fúnebre de suas exéquias. Aos pais, abalados
com o destino da filha e hesitantes em executar o crime nefando, Psiqué os
exorta com palavras, que, nascidas de seu inconsciente, estão em perfeita
harmonia com o mistério do feminino face a essa situação de morte.
Sem discutir,
sem protestar, sem desafiar ou resistir, como agiria um ego masculino em
situação idêntica, ela aceita seu destino. Suas palavras são claras e firmes: Se nações e povos me tributam honras divinas;
se a uma só voz me consagram como a nova Afrodite, então agora chegou o momento
de vocês padecerem, chorarem e me lamentarem como morta. Assumindo a hýbris da
humanidade e não a sua própria, a de seu ego, e mais ainda sua punição, declara
estar pronta para o sacrifício: Estou ansiosa para concluir esta união sagrada
e contemplar o nobre esposo que me aguarda. Por que não protelo e fujo de sua
presença? Não nasceu ele para destruir o mundo inteiro?
Deixada só no
cume do rochedo, a princesa é arrebatada pelo vento Zéfiro e suavemente
transportada para um vale macio e perfumado.
Vem, então, a
grande surpresa, que, a princípio,dá a impressão de um conto de fadas. Esta é a
terceira parte do mito: Psiqué no paraíso de Eros.
O casamento, que
fora precedido por um autêntico préstito fúnebre das “núpcias da morte”, é
então consumado num cenário típico das “Mil e uma Noites”: Agora quando a noite
já ia avançada, uma voz suave lhe chegou aos ouvidos. Ela temia por sua
virgindade, vendo-se completamente só. Tremia de horror e recuava o
desconhecido muito mais que qualquer outro perigo que já houvesse imaginado.
Por fim chegou seu misterioso consorte; subiu ao leito e fez Psiqué sua mulher,
mas, antes do amanhecer, desapareceu apressadamente.
Em breve, o que,
de início, parecia estranho, por força do hábito tornou-se um deleite e as
Vozes alegravam sua solidão e perplexidade. Logo depois ela dá expansão à sua
felicidade: Antes morrer cem vezes que perder tão doce amor. Onde estiveres, eu
te amo e adoro apaixonadamente. Amo-te como amo a própria vida. Comparado a ti,
o próprio self de Eros seria nada.
Mas o estase em
que murmura o esposo doce como o mel ou minha vida e amor é um estase de
trevas. É um estado de desconhecimento e cegueira, uma vez que seu grande amor
podia ser sentido e ouvido, mas não visto. Psiqué, todavia, parecia feliz e
vivia em paradisíaca bem-aventurança. Todo paraíso, no entanto, tem sua
serpente e sua felicidade “noturna” da jovem esposa não poderia durar para
sempre. O intruso, a serpente venenosa desse Éden é representada pelas irmãs,
cuja irrupção deflagra a catástrofe, que, também aqui, equivale à expulsão do
paraíso.
Apesar da séria
advertência de Eros, Psiqué encontrou-se com as irmãs, que, cegas de inveja,
planejavam destruir-lhe a felicidade. O
método arquitetado pelas “bruxas” foi universalmente conhecido: não se
tratava, no fundo, de matar a Eros, mas de quebrar o tabu e desvendar o
mistério, a saber, fazer que a irmã visse o esposo.
Examinadas sob o
ângulo superficial, a proibição de ver o marido, de saber “quem ele era”, bem
como a tentação das irmãs, fadas, mas numa análise mais profunda, como o fez
Neumann, fica patente que o tema em pauta comporta vários níveis extremamente
significativos
Qual seria o
significado das irmãs no mito de Psiqué? De saída, ambas se casaram, ou melhor,
“foram casadas”, muito mal. Suas núpcias, símbolo da escravidão patrilinear,
são exemplos típicos do que se poderia denominar a escravidão do feminino na
patrilinhagem.
Diz-nos o texto
de Apuleio que elas foram dadas a reis estrangeiros, mas para que fossem suas
serviçais. Uma delas descreve o marido como mais velho que seu pai.mais calvo
que uma abóbora e mais frágil que uma criança. Dessa forma, se papel era o da
filha e não de esposa. A outra não era menos infeliz: unira-se a um doente,
gotoso, já meio alquebrado, , e sua função precípua era de enfermeira. Embora
não se possa minimizar o tema óbvio da inveja das irmãs, este, entretanto, não
se deve constituir no ponto central da
interpretação da atitude das mesmas.
Necessário se
torna ressaltar que ambas odiavam intensamente os homens, evidenciando, assim,
um ângulo típico de matrilinhagem. O sintoma mais evidente dessa atitude
matrilinear de repúdio aos homens é a caracterização que elas fazem do esposo
invisível de Psiqué. Quando falam dos abraços
de uma venenosa e asquerosa serpente, quando afirmam que Psiqué e seu rebento
serão devorados pelo monstro, expressam mais que inveja e ciúme de mulheres
sexualmente insatisfeitas. “Suas mentiras, segundo Neumann -
porque elas dizem a verdade num tom difamador, como se fosse um mal-entendido - têm
origem no desgosto sexual de uma psiquê matrilinear violada e insultada”.
O êxito por elas
alcançado deve-se à evocação que fazem na própria Psiqué desse extrato
matrilinear de ódio aos homens. Com isso intensificam o conflito já existente
no espírito da irmã, o qual pode ser traduzido numa simples frase: no mesmo
corpo ela odeia o monstro e ama o marido.
Esta relação
transparente com a matrilinhagem e com as assassinas de maridos, as Danaides, é
intensificada, quando as irmãs aconselham Psiqué não a fugir do esposo
desconhecido, mas a decepar-lhe a cabeça com uma faca, o que estampa um antigo
símbolo de castração sublimado e elevado à esfera espiritual.
O macho hostil,
a mulher como vítima do esposo-monstro, o assassinato do homem e sua castração,
símbolos matrilineares de autodefesa ou dominação, como se explica que Psiqué
tenha chegado a este ponto? Que significado tem isto no mito de Eros e Psiqué?
Para Neumann, a
atuação das duas irmãs matrilineares da heroína, as quais odeiam homens,
contrasta profundamente com o doce enlevo e auto-anulação da caçula, que se
rendera por completo à escravidão sexual do amante.
O aparecimento
delas introduz a primeira perturbação nesse paraíso de prazeres. Desse modo,
consoante a interpretação do mesmo psiquiatra, “as figuras das irmãs
representam projeções reprimidas ou tendências matrilineares inteiramente
inconscientes da própria Psiqué e cuja erupção provoca um conflito no interior
da mesma, atuando aquelas como o aspecto-sombra da esposa de Eros.
Desde a primeira
visita das irmãs, Psiqué adquire uma certa independência em relação ao marido e
a si própria. Repentinamente ela percebe que sua existência e convivência com
Eros não passam de uma prisão luxuriosa e sente saudades da presença de seres
humanos.
Até então ela
havia flutuado na correnteza de um êxtase inconsciente, mas agora começa a
perceber a fantasmagórica irrealidade de seu paraíso sensual e principia, em
contato com o amante, a tomar conhecimento de sua feminilidade. Faz cenas e
envolve aquele que a havia envolvido com murmúrios apaixonados. Assim, por mais
paradoxal que possa parecer, as irmãs-sombras (desde que se deixe de lado a
intriga superficial que as envolve) representam um aspecto da consciência
feminina que marcará todo o subsequente desenvolvimento de Psiqué.
Sem ele, ela não
seria o que é, a saber, a Psiqué feminina. Apesar de sua forma negativa,
antimasculina e assassina, a incitação das irmãs configura a resistência da
natureza feminina à situação e à atitude de Psiqué, bem como o início de uma
maior conscientização feminina.
Isso não quer
dizer que as irmãs representam a consciência, são apenas sua sombra, seu lado
negativo, seu precursor. Mas, se Psiqué consegue passar de um estado
inteiramente de sombras para um estágio mais desenvolvido é sobretudo porque se
sujeitou à orientação negativa das irmãs. Bastou-lhe quebrar o tabu que Eros
lhe impusera, ao responder a sedução das irmãs, para entrar em conflito com
ele.
Pois bem, este
conflito é a base de seu desenvolvimento. Na realidade, até o momento, Psiqué,
apesar de seu paraíso sensual, viveu na “sombra”, num perfeito estado de
servidão contra o qual a consciência feminina do self - e é exatamente esta a
atitude matrilinear do feminino - deve protestar como fizeram as
duas irmãs mais velhas.
A existência da
amante do filho de Afrodite era uma não-existência, um estar-no-escuro, um
êxtase de sensualidade, algo assim que poderia ser caracterizado como uma
situação em que ela está sendo devorada por um monstro.
Eros, enquanto
fascinação invisível, é tudo aquilo que o Oráculo, citado pelas irmãs, havia
previsto: Psiqué, sem dúvida, é vítima de Eros.
Ora, a norma
básica do matrimônio é a proibição, como demonstrou Bachofen, de a mulher ter
relações individuais com o homem: o macho é conhecido apenas como um poder
anônimo. Para a heroína, esse anonimato acabou, mas a jovem incorreu na mais
profunda e imperdoável desgraça: sucumbiu à masculinidade do marido e caiu em
seu poder.
Do ponto de
vista matrilinear, só existe uma saída para esse impasse: matar e castrar o
masculino; e é exatamente isto que as irmãs exigem de Psiqué. Mais uma vez é
necessário acentuar que as mesmas não configuram somente a regressão, pois que
um princípio feminino mais elevado está atuando igualmente: sem dúvida, elas iluminaram
o estado inconsciente da irmã.
Em seu
“conflito” com Eros, apesar das constantes recomendações e pedidos do esposo,
Psiqué lhe resiste aos conselhos de romper relações com as irmãs e com elas se
encontra, o que parece destoar de sua aparente suavidade. No decorrer desse
“litígio”, ela, finalmente, deixa escapar palavras reveladoras que são a chave
de seu estado anterior: Não mais procurarei ver tua face e nem mesmo a
escuridão da noite poderá ser um obstáculo à minha felicidade, pois tenho-te em
meus braços, luz de minha vida.
No momento exato
em que Psiqué dá mostras de aceitar a escuridão, isto é, a inconsciência de sua
situação e, quando no aparente abandono de sua consciência individual,
refere-se ao amante desconhecido como luz de minha vida, nesse instante um
sentimento até então desconhecido vem à tona: ela fala negativamente de sua
opressiva escuridão e seu desejo de conhecer o marido.
Exorcizando seu
próprio medo do que está por acontecer, revela seu conhecimento inconsciente do
que está acontecendo. Antes era prisioneira das trevas, mas agora o impulso,
que a arrasta ao conhecimento da luz, se torna imperioso. A esposa de Eros, sem
dúvida, está muito longe de ser apenas a menina “gentil” e “simples”. Ao
contrário , a atitude das irmãs, com sua hostilidade e protesto, corresponde
exatamente ao que se passa no interior da própria Psiqué.
Atuado pelas
irmãs, o protesto matrilinear aflora a partir do exterior e a impele à ação. É
exatamente esta situação que torna possível o “conflito” em Psiqué: no mesmo
corpo odeia o monstro e ama o marido e foi essa constatação que permitiu às
irmãs seduzi-la. Embora a jovem esposa ignorasse a aparência do marido, de há
muito a oposição monstro-amante vivia em seu inconsciente e foram precisamente
as irmãs que a conscientizaram do pressuposto aspecto da “fera mortífera”.
Não lhe sendo
mais possível permanecer em seu antigo estado inconsciente, ela é coagida a ver
o verdadeiro aspecto do parceiro e, apesar da ambivalência, a oposição entre a
Psiqué que odeia o monstro e ama o marido é projetada para o exterior,
obrigando-a a entrar em ação.
Armada com um
punhal afiado e empunhando um candeeiro, aproximou-se do amante e, na luz,
reconheceu Eros. Tentou matar-se, mas fracassou. Depois, enquanto se extasiava
com a beleza do marido, feriu-se em uma de suas flechas. Inflamada de desejo,
inclinou-se para beijá-lo e uma gota de óleo fervente, caindo do candeeiro,
queimou e feriu o deus. Acordando sobressaltado, e constatando a desobediência
da esposa, abandonou-a imediatamente. E aqui se inicia o drama de Psiqué, a
busca da individuação, que sempre dó muito, porque é um parto e um pacto
extremamente difíceis.
Que experimenta
Psiqué, quando, impulsionada pelas forças matrilineares de ódio aos homens, se
aproxima do leito para matar o suposto monstro e descobre Eros? A palavra está
com Neumann: “Se construirmos a grandeza mítica desta cena (...), perceberemos
um drama de grande profundidade e poder, uma transformação psíquica de
significado único. É o despertar de Psiqué como psiqué, o momento decisivo do
destino na vida do feminino, no qual, pela vez primeira, a mulher emerge de seu
inconsciente e da clausura de seu aprisionamento matrilinear e, num encontro
individual com o masculino, ama, ou seja, reconhece Eros. Este amor da jovem
princesa é um amor de tipo muito especial e, só se compreendermos o que é novo
nesta situação amorosa, é que podemos intuir o que isto significa para o
desenvolvimento do feminino como é o representado por Psiqué.”
A Psiqué que se
aproxima do leito, em que dorme Eros não é mais aquela criatura langorosa e
envolvente, seduzida por seus sentidos, que vivia no paraíso trevoso da
sexualidade e do desejo. Conscientizada pelas incursões de suas irmãs, ciente
do perigo iminente, ao aproximar-se do leito para matar o monstro, a besta
macho que a havia raptado do mundo superior em núpcias de morte e arrastado
para as trevas, ela assume a cruel e hostil militância da matrilinhagem.
Mas, ao brilho
da nova e tênue luz com que ilumina a escuridão inconsciente de sua antiga
existência, reconhece Eros. Ela, agora ama. Conscientizada, ela experimenta uma
transformação radical: descobre que a dicotomia entre monstro e marido não é
válida. Atingida pela faísca do amor, tenta apunhalar-se, em outros termos, fere-se
com a flecha de Eros.
Com isto,
abandonando o aspecto inconsciente infantil de sua realidade, renuncia
igualmente ao aspecto matrilinear do ódio aos homens. À luz do “novo amor”,
Psiqué reconhece Eros como um deus que sintetiza em si o inferior e o superior
e que é a sizígia dos dois níveis.
Viu-se que
Psiqué se deixou ferir na flecha de Eros e sangrou: Assim, desapercebidamente,
mas através de seu próprio ato, Psiqué se apaixona pelo Amor. O que a amante de
Eros experimenta agora poderia ser chamado de uma segunda defloração, uma
defloração que se passa em seu interior. Esse ato de amor com entrega
voluntária a Eros, é ao mesmo tempo um sacrifício e uma perda.
Psiqué não
renuncia ao aspecto matrilinear de sua feminilidade, mas o paradoxal da
situação é que, em e através de seu ato amor, ela o eleva à sua essência
autêntica e o exalta, simultaneamente, ao seu nível amazônico.
Psiqué, que
conheceu porque viu Eros na luz, e que quebrou o tabu de sua invisibilidade,
não é mais a menina ingênua e infantil em sua atitude contra o masculino. Não
se trata mais da cativante e da cativada: sua feminilidade se transformou a tal
ponto, que ela perdeu e realmente deveria perder o marido.
O amor da amante
que explodiu, ao ver o amante , fez com que passasse a existir dentro dela um
Eros que não é mais aquele que dormia diante dela, ou seja, fora dela. Se Eros
interior, imagem de seu amor, é, na realidade, uma forma superior e invisível
do Eros que dormia placidamente a seu lado.
Tal forma
superior é invisível porque à psiqué consciente e adulta, a uma Psiqué que
deixou de ser criança. Pois bem, esse Eros superior e invisível, interno a
Psiqué, deverá necessariamente entrar em conflito com sua imagem visível,
revelada pela luz do candeeiro e queimada pela gota de óleo fervente.
O Eros oculto
pelas trevas ainda poderia ser uma encarnação de uma imagem qualquer de Eros,
mas este Eros visível é o divino, o filho de Afrodite, o qual, como tal, não
deseja também tal Psiqué! A tarefa urgente das amante é a unificação da
estrutura dual de Eros, que também se manifesta na figura antitética de Eros e
Ânteros, é a transformação do Eros inferior no Eros superior, pois uma coisa é
o Eros de Afrodite, outra, o Eros de Psiqué.
Na interpretação
lapidar de Neumann “a perda do amante, neste momento, é uma das mais profundas
verdades dentre as verdades deste mito. Este é o momento trágico em que toda a
psiqué feminina assume seu próprio destino. Eros foi ferido por Psiqué. A gota
de óleo, que o queimou, , acordou-o e fê-lo ir embora, o que se constitui, de
qualquer forma, numa fonte de sofrimentos.
Para ele, o deus
masculino, a amante era desejável, enquanto no escuro, e ele a possuía com
exclusividade. Afastada do mundo, vivendo apenas para ele, sem participação e
interferência em sua existência divina, Psiqué se tornara apenas uma
companheira para suas noites. Sua insistência em manter-se no anonimato agrava
ainda mais a condição servil da parceira: a cada dia ela era mais devorada por
ele”. Tentando matá-lo e ferindo-o, mas vendo-o, Psiqué emergiu da escuridão e
assumiu um destino como mulher apaixonada, pois ela é Psiqué,quer dizer, sua
essência é psíquica e, por essa razão, uma existência nas trevas não pode
satisfazê-la.
Ao libertar-se
de Eros com seu punhal e um candeeiro e, desse modo, transcendendo-o e
espancando a escuridão que ele lhe impusera, a princesa despoja o amante de seu
poder divino sobre ela. Agora, os dois se defrontarão como iguais. Em um novo
plano, quer dizer, amando conscientemente, sua grande tarefa há de ser a de
unir-se de novo a ele e formar um todo em nova sizígia, uma vez que a
necessidade de uma junção a havia impelido ao sacrifício. Assim, a iniciativa
“criminosa” de Psiqué é o início de um desenvolvimento que envolve não apenas a
si mesma, mas que atinge também o seu amante.
E Eros, como se
comporta face a essa transformação?
O filho de
Afrodite, segundo se mostrou, foi ferido por sua própria flecha, quer dizer,
amou Psiqué desde o início, mas esta, já se falou, só começou a amá-lo, após
“seu ato heroico”. Aquilo, porém, que Eros denominava “seu amor” e o modo como
o desempenhava chocam-se com a amante e sua ação libertadora, “que acabou por
expulsar a Eros e a si mesma do paraíso da inconsciência urobórica” . Foi
através da esposa que ele, pela primeira vez, sofreu as consequências de suas
próprias flechas, aqui simbolizadas pela gota de óleo fervente que lhe caiu no
ombro. Que significa, porém, o óleo fervente? O texto de Apuleio é elucidativo
a esse respeito.
Ó candeeiro
temerário e insolente, tu queimaste o próprio senhor do fogo.
O instrumento
que provoca dor é uma arma cortante e perfurante como a flecha, mas a
substância que alimenta o candeeiro é o princípio da luz e da sabedoria. O
óleo, enquanto essência do mundo vegetal, uma essência extraída da terra, é um
símbolo muito difundido em todas as culturas. Assim, é significativo que sendo
a base da luz, para iluminar, deve inflamar e queimar, para purificar.
Se, através de
seu ato, Psiqué toma consciência de Eros e do amor que sente pelo mesmo, este
está apenas ferido, mas não conscientizado do ato de amor e separação da
amante. Em Eros tão somente uma parte do processo se completou: a substância
básica foi inflamada e ele arde por causa dela. Trata-se, no entanto, do início
de uma transformação, mas involuntária e o deus a experimenta passivamente.
Como se sabe,
Eros era um menino, um jovem, o filho amante de sua Grande Mãe, cujas ordens
transgrediu, amando Psiqué, em vez de fazê-la infeliz.
Esse logro,
todavia, não o libertou de Afrodite; atesta penas que ele a traiu, já que seu
objetivo era que tudo se passasse em segredo, na escuridão, às ocultas de sua
mãe. Se romance com a mais bela das mortais é mais uma das “fugas” dos deuses
gregos, longe da luz da opinião pública, representada tipicamente pelas divindades
femininas. Mas o oculto e egoístico paraíso sensual do filho de Afrodite foi
iluminado por Psiqué que rompeu a “participação mística” com seu parceiro e
lançou os dois no destino da separação, que é a consciência. O amor, como
expressão da totalidade do feminino, não é possível nas trevas, como mero
processo inconsciente. Um encontro autêntico com o outro envolve a consciência,
apesar da separação e do sofrimento.
“A ação de
Psiqué leva à individuação, na qual, como diz Neumann, a personalidade
experimenta a si mesma em relação a um parceiro como o outro, quer dizer, não somente
como unida a um parceiro. A jovem fere e fere-se e, através desses ferimentos,
desfaz-se o vínculo original e inconsciente que os unia, criando, todavia, a
possibilidade de um novo encontro, pré-requisito do amor entre dois indivíduos.
No Banquete de Platão, 189, 190, 191, a separação operada por Zeus no andrógino,
no Um, e a carência daí resultante, isto é, o anseio de “re-unir” o que havia
sido dividido,é descrito como ma origem mítica do amor. Aqui a mesma concepção
se repete em termos do individual. Desse
modo, as práxis de Psiqué “encerra a idade mítica no universo arquetípico, no
qual a relação entre os sexos dependia tão somente da força superior dos
deuses, que mantinham os homens sob seu jugo. Inicia-se, então, a idade do amor
humano, em que a psiqué, conscientemente, assume por si mesma a decisão
derradeira.”
Este fato,
afirma Neumann, nos leva de volta ao âmago do mito, quer dizer, ao grave
conflito entre a “nova Afrodite” e Afrodite, a Grande Mãe. A rivalidade se
inicia, quando os homens, adorando a beleza de Psiqué, negligenciam o culto e
os templos da deusa. A contemplação pura da beleza contraria inteiramente o
princípio representado por Afrodite, que também é bela e configura a beleza,
mas esta é um meio apenas para se atingir um fim. Se esse parece sintetizar-se
exclusivamente no desejo e na intoxicação sexual, na realidade esse fim é a
fertilidade: Afrodite também é uma Grande Mãe, como Deméter e Hera. E apesar de
a deusa do amor representar o eterno ciclo da criação, ela é igualmente um dos
aspectos do arquétipo da matrilinear geratriz da vida e da fertilidade das
coisas vivas.
A beleza, a
sedução e o prazer por ela outorgados são instrumentos de um “esporte celestial”,
armas poderosas de que dispõe e usa para a multiplicação das espécies. Mas a
aliança entre a deusa e Eros representa igualmente o atrativo da beleza e o
encanto das relações humanas, como se pode depreender das palavras de Hera e
Deméter, quando aquela explode em cólera por causa dos amores de Eros por
Psiqué:
Quem entre os
deuses e os mortais te permitirá semear paixões entre os homens, se proíbes
teus próprios familiares de usufruírem os encantos do amor e os excluis de
todas as alegrias proporcionadas pela fraqueza da mulher, um prazer que é
permitido a todo mundo? O “semear paixões” e a norma acerca da “fraqueza da
mulher” são atributos afrodíticos da Grande Mãe e que a deusa do amor, a “velha
Afrodite”, ainda representa em grau superlativo.
Pois bem, este
aspecto torna-se evidente no conflito da deusa com Psiqué que, contrariando
todos os preceitos do amor, é adotada em pura contemplação. Assim agindo, “a
nova Afrodite” interfere na esfera dos imortais. Com sua práxis, o feminino,
com força psíquica, entra em litígio com a Grande Mãe e com seu aspecto
terrível, ao qual o feminino, em sua existência matrilinear, estivera
subordinado.
Mais que isso,
Psiqué não se rebela contra a Grande Mãe Afrodite, insurge-se ainda contra o
amante masculino, Eros. Com seu auto-sacrifício, a frágil amante abandonou tudo
e assumiu a solidão de um amor pelo qual renuncia, inconsciente e
conscientemente, à atração de sua beleza, que conduz ao sexo e à fertilidade.
Agora, porém,
que viu seu amante Eros na luz, Psiqué coloca, lado a lado, o princípio do
amor, do encontro e da individuação com o princípio da atração que fascina com
o da fertilidade das espécies. Acima do preceito do amor material de Afrodite,
enquanto deusa da atração mútua entre os esposos, ergue-se o princípio do amor
de Psiqué, que a essa atração associa o conhecimento, crescimento da
consciência e desenvolvimento psíquico.
Do ponto de
vista de Grande Mãe do amor, a união do feminino com o masculino, como fato
natural, não é essencialmente diverso no homem e nos animais; a amante de Eros,
porém, transcendeu esse estágio, transformando-o numa psicologia do encontro.
Pela vez
primeira, o amor individual de Psiqué rebela-se contra o preceito coletivo da
embriaguez sensual, encarnado em Afrodite. Sua luta, agora, por isso mesmo, por
isso mesmo, será em duas frentes: contra a Grande Mãe Malvada, a sogra-bruxa, e
contra Eros, na quem terá que conquistar e desenvolver, transformando-o num
amante humano. O filho-amante de Afrodite, a quem ela beija com os lábios
entreabertos, numa relação incestuosa, filho que ela teme perder para uma nora
inimiga, terá que ser resgatado por Psiqué, de uma atmosfera transpessoal da
Grande Mãe, para ser trazido à esfera pessoal da humana e
amantíssima-nova-Afrodite.
Mas por que essa
regressão de Afrodite à condição de Mãe Terrível?
Ouçamos Neumann:
“Do começo ao fim deste mito, o princípio da
personificação secundária é dominante. Com o desenvolvimento da
consciência, fenômenos transpessoais e arquetípicos assumem uma forma pessoal e
tomam lugar na construção de uma história individual, de uma situação humana de
vida. A psiqué humana é um ego ativo que ousa opor-se, e com sucesso a forças
transpessoais.
A consequência
desse grandioso posicionamento da personalidade humana, aqui no caso feminina,
é de enfraquecer o que antes era algo todo-poderoso. O mitologema da nova
Afrodite humana se fecha com sua deificação. Paralelamente a divina Afrodite se
humaniza, bem como Eros que, através do sofrimento, prepara o caminho para a
união com a psiqué humana.
Quando se torna
claro para Afrodite que seu rebento masculino, que sempre havia sido um escravo
obediente, se excedera na função de filho e amado, um instrumento e auxiliar, e
se tornou independente como amante, surge um conflito na esfera do feminino e
uma nova fase do desenvolvimento de Eros se inicia.”
Ao deixar de
fugir de Afrodite, o que se configura, na realidade, numa busca de Eros, e ao
render-se à deusa, Psiqué está preparada para enfrentar a “morte certa”. Iria
começar a parte mais dolorosa de sua iniciação, que, em contexto religioso,
sempre pressupõe a morte do iniciado para o renascimento do homo novus. A
amante de Eros vai, nesta quarta parte do mitologema, enfrentar “os trabalhos”.
O plano de
Afrodite, para destruir a nora, gira em torno d quatro tarefas. Ao realizá-las,
Psiqué converte-se num Héracles feminino e sua sogra desempenha papel idêntico
ao de Hera e madrasta do herói do Peloponeso.
Consoante
Neumann, “os trabalhos que Afrodite impõe à amante do filho, parecem, à primeira
vista, não ter sentido nem ordem. Mas, uma interpretação baseada no simbolismo
do inconsciente mostra que o contrário é verdadeiro.” É exatamente essa
interpretação que vamos transcrever, não raro, ipsis vervis.
A primeira
tarefa, como já se mostrou, consistia em separar de um monte enorme de cereais
as sementes e grãos de trigo, cevada, milho, grãos-de-bico, papoula, lentilha e
fava... Tudo por espécie, e numa só jornada noturna!
A deusa, ferida
e “ameaçada” no mais fundo do seu ser, julga simplesmente que o primeiro
trabalho é impossível de se realizar.
Diga-s logo que
o mesmo simboliza primeiramente “uma mistura urobórica do masculino”, quer
dizer, a típica promiscuidade do estágio pantanoso de Bachofen, conforme se
mostrou nas páginas atrás. As criaturas que vêm ajudar a heroína não são as
aves da deusa, as pombas, que tanto auxiliaram a Cinderela, mas as formigas, a
raça “mirmidônica”, as ágeis criaturinhas da Terra, a mãe de todos. Foi, pois,
com a ajuda imprescindível das formigas que Psiqué conseguiu “ordenar” a
promiscuidade masculina. Kerényi fez menção do primitivo caráter humano dos
povos-formigas, nascidos da terra e sua conexão com a autoctonia, a saber com o
caráter da vida, que é oriunda da terra e particularmente com o caráter do
homem.
Aqui, como
sempre, são palavras textuais de Neumann, “os animais ajudantes são símbolos do
mundo dos instintos.” Se nos lembrarmos de que as formigas, no sonho, são um
símbolo relacionado com o sistema nervoso vegetativo, começamos a entender por
que essas forças ctônias, essas criaturas nascidas do solo, são capazes de
ordenar as sementes masculinas da terra.
Psiqué opõe à
promiscuidade de Afrodite um princípio ordenador instintivo. Enquanto a deusa
do amor se atém à fertilidade do estado pantanoso, que também é representado
por seu filho sob a forma de monstro-sepente fálico, Psiqué possui em si um
princípio inconsciente que lhe permite selecionar, peneirar, correlacionar,
avaliar e, assim, encontrar seu próprio caminho em meio à confusão do masculino.
Contrariamente à
oposição matriarcal da futura sogra, para quem o masculino é fundamentalmente
anônimo, como demonstram, por exemplo, os ritos de Ištar, Psiqué, mesmo em seu
primeiro trabalho, já alcançou o nível da seletividade. (...) Não se pode, de
outro lado, esquecer um encontro importante da jovem esposa com um
experimentado “conquistador”, depois que o marido a abandonou e depois que o
marido a abandonou e depois que o rio lhe frustrara a tentativa de suicídio,
provando-lhe, assim que a regressão era impossível.
Pã, o velho
filósofo, o sábio, um “simples pastor”, apegado à terra, aos animais e à
natureza, que, possuindo também poder divinatório, percebeu, de imediato, o que
se passava com a “nova Afrodite”. Seu conselho, aparentemente tão singelo, fez
que Psiqué continuasse vivendo e encontrasse o rumo certo:
Dirigi-te a
Eros, o mais poderoso dos deuses, com preces fervorosas e conquista-o com suave
submissão, pois ele é um adolescente suave e meigo.
Aparentemente os
desordenados e incríveis trabalhos que Afrodite impõe à nora são apenas perigos
mortais, mas o conselho de Pã - procura Eros e conquista-lhe o
amor -
dá pleno sentido ao que parecia um absurdo. O deus-pastor faz que as tarefas
passem a ter um sentido novo e definitivo para o encontro com Eros, porque até
mesmo a passagem de um trabalho a outro torna-se um caminho em direção ao amor.
A segunda tarefa
ainda mais estranha consistia em trazer para a deusa do amor flocos de lã de
ouro que cobriam o dorso de carneiros ferozes que vagavam num bosque, à beira
de um rio caudaloso. Após evitar que a desesperada Psiqué se lançasse nas
correntezas, um junto humilde ensinou-lhe como executar a ordem divina. Qual
seria o significado no mito desses flocos de lã e da prudência do verde caniço?
As ovelhas, ou
melhor, os carneiros, cuja lã Psiqué deveria recolher, são descritos pelo junco
como detentores de poderes mágicos e destruidores. Semelhante alusão patenteia
a relação do carneiro com o sol, como se atesta no Egito ou no mito do Velocino
de Ouro. Psiqué é advertida para não transitar entre os “terríveis” carneiros
até que o sol se tenha posto, “pois, enquanto o violento calor do sol os
aquece, são possuídos de uma raiva feroz, tanto que, com seus chifres agudos e
sua fronte rija como a pedra e, às vezes, com mordeduras venenosas, investem
furiosamente contra os mortais.”
Os carneiros do
sol, consoante Neumann, simbolizam o poder destrutivo masculino e correspondem,
em consequência, ao princípio negativo da morte, experimentado pela
matrilinhagem. “Essa castração”, contida na ordem da deusa, pode ser
interpretada como um “tomar posse de”, como uma opressão, uma
“despotencialização”, como o foi o gesto de Dalila, ao cortar os cabelos de
Sansão, o herói solar, e o crime das Danaides.
Psiqué estaria
destruída pelo opressivo princípio masculino, se enfrentasse os carneiros do
sol, símbolos do tirânico poder espiritual masculino, com o qual o feminino não
se pode defrontar. Se o fizesse, ela se abrasaria como Sêmele na epifania de
Zeus ou enlouqueceria como as Miníades, que se opuseram a Dionísio. A princesa,
todavia é salva pelo humilde junco, o “cabelo da terra” associado às águas
profundas, e que é contrário ao carneiro de fogo. Suas palavras caem suavemente
na consciência de Psiqué: seja paciente, aguarde o momento propício.
Nem sempre é dia
alto e o sol é abrasador: nem sempre o masculino é mortal. A tarde virá e com
ela a noite, quando, pois Hélio viaja para as entranhas da sagrada noite
escura, para junto de sua mãe, da esposa e de muitos filhos, e então o princípio
masculino se aproxima do feminino. Após o pôr-do-sol surge na situação de amor,
quando é seguro pegar os cabelos dourados dos carneiros do sol que se acalmam e
buscam o descanso.
“Física e
psicologicamente”, interpreta Neumann “estes cabelos-raios são poderes
masculinos da fertilização, e o feminino, como Grande Sol no ventre da
natureza. (...) O feminino necessita apenas consultar seus instintos para
conseguir uma relação fecunda, ou seja, uma relação amorosa com o masculino, ao
cair da noite. (...) Nesse momento, quando o espírito solar masculino retorna
às profundezas do feminino, este encontra o fio dourado, a fértil semente da
luz.
Num
comentário-síntese aos dois primeiros trabalhos, Neumann afirma serem ambos de
“caráter erótico” e arremata: “É curioso que Afrodite que havia apresentado
estes trabalhos, não como um ‘problema erótico’, mas como um separar de
sementes e como a procura do fio de lã dourado, atribua a solução dos mesmos à
ajuda de Eros. Este, e ela o sabia perfeitamente, estava doente e preso em seu
palácio: Sei muito bem que foi o autor secreto deste feito.
Apesar de tudo,
parece existir alguma relação, uma certa empatia oculta entre Afrodite e
Psiqué, pois aquela compreendeu o caráter erótico não apenas dos problemas que
havia imposto, mas também das soluções encontradas pela nora”.
Para realizar a
terceira tarefa, Psiqué deveria trazer para Afrodite uma jarra cheia com água
que alimentava dois rios infernais, o Cocito e o Estige.
A esposa de Eros
não tinha esperança alguma de poder cumprir o mandado que lhe fora imposto;
porque, se de um lado a fonte brotava nos píncaros de uma rocha encravada em
íngreme penhasco, de outro, era a mesma guardada por terríveis dragões.
Dessa feita, o deus
ex machina de Psiqué foi a Águia de Zeus.
A tarefa é uma
variante da busca da água da vida, a preciosa substância difícil de se obter. A
característica essencial da fonte é que ela une o superior e mais elevado, ao inferior,
o mais profundo. Trata-se, por conseguinte, de uma fonte circular urobórica que
alimenta as entranhas do mundo ctônio e que sobe novamente para emanar da mais
elevada rocha que coroa inacessível montanha.
A dificuldade
consiste em captar numa jarra o líquido dessa fonte, que configura a corrente
de energia vital, um Oceano ou um Nilo, em escala mítica reduzida. Afrodite
considera o feito impossível, porque, para ela, o fluxo da vida desafia a
captura, a contenção. Trata-se de movimento eterno, mudança perpétua, geração,
nascimento e morte.
A qualidade
essencial desse fluxo é que o mesmo não pode ser contido. Psiqué, como jarro
feminino, deverá sustá-lo, dar forma e repouso ao que é informe e eternamente
fluido. “Sob tal aspecto”, comenta Neumann, “torna-se evidente que, além de sua
significação de energia incontida do inconsciente, o fluxo da vida é detentor
de um simbolismo específico em relação a Psiqué.
Como o que enche
a uma-mandala, esse fluxo é gerativo-masculino como o poder fecundante
arquetípico de inumeráveis deuses-rios, espalhados pelo mundo inteiro. Em
relação à amante de Eros, esse fluxo é o poder conquistador numinoso-masculino
daquilo que penetra para fecundar, isto é, do uróboro paternal. O problema
insolúvel apresentado pela deusa à nora e que esta resolve é o de encerrar,
conter essa energia, sem ser por ela despedaçada.
Para uma melhor
compreensão, todavia, de todo o contexto e de sua simbologia, é necessário,
embora sumariamente, dar uma ideia de alguns elementos que neles figuram. Que
sentido possui o deus ex machina , representado pela águia? E por que logo esta
ave, símbolo espiritual masculino, pertencente a Zeus e ao âmbito de ar? E
particularmente, por que se trata da mesma águia, que ergueu Ganimedes ao
Olimpo?
Existe, de
saída, comenta Neumann, um paralelo evidente entre Ganimedes e Psiqué: ambos
são seres humanos amados por deuses e arrebatados às mansões celestes como
parceiros de seus amantes divinos. A intervenção da águia insinua uma certa
admiração de Zeus pela princesa, afeição, aliás, que vai decidir,
favoravelmente, o desfecho da sofrida busca de Psiqué.
O pai dos deuses
e dos homens apoia seu filho Eros, em parte por simpatia masculina, pois também
ele sabe o que é estar preso por amor e, em parte, como protesto contra a
Grande Mãe, que, como Hera, refreia a liberdade de amar de seu esposo e que,
como Afrodite, empenha-se em reprimir igualmente seu filho.
“Não é por
acaso”, diz o mesmo psiquiatra, “que a relação amorosa homossexual de Zeus e
Ganimedes interfere positivamente no caso de Eros e Psiqué. É que pares
masculinos homoeróticos e homossexuais atuam como conflitantes, assumindo a
luta para se libertarem do domínio da Grande Mãe. Também Eros, dentro dessa
mesma perspectiva, deverá também abandonar sua condição de filho-amante, para
que possa iniciar uma relação livre e independente com Psiqué.”
Para o que
aconteceu antes, é relevante o fato de que o aspecto masculino espiritual, cujo
símbolo central é a águia, venha em auxílio da amante de Eros neste terceiro
trabalho. “Se a segunda tarefa consistiu em “amansar” o princípio masculino
hostil na ligação erótica do que poderia ter sido destrutivo sob a forma de
uróboro paternal, que é uma reconciliação com o masculino, que vai possibilitar
a Psiqué estabelecer a comunicação com o mundo espiritual masculino da águia de
Ganimedes. (...) O princípio espiritual que dá ajuda, a náguia de espírito
masculino, que espreita a pilhagem e a executa, possibilita-lhe conter um pouco
di fluxo da vida e dar-lhe forma.
A águia,
segurando a jarra, configura a já masculino-femininma espiritualidade de
Psiqué, que, num único ato, ‘recebe’ como mulher, isto é, ‘recolhe’ como um
jarro, e concebe, mas, ao mesmo tempo, compreende e sabe como um homem. (...)
Assim, o princípio masculino da águia permite-lhe receber uma parcela do mesmo,
sem que seja por ele destruída.
No primeiro
trabalho forças instintivas cooperaram, para que ela pudesse separar e ordenar
o masculino; no segundo, um fio de lã é separado da abundância escaldante da
luz; no terceiro, uma urna cheia de água é retirada da abundância do fluxo.
Desse modo, em planos diferentes, as três tarefas, uma vez executadas,
significam que Psiqué pode receber e assimilar o masculino e dar-lhe forma sem
perigo de ser destroçada pelo destrutivo poder do numinoso.
Eis por que, a
cada tarefa cumprida, a amante de Eros sobe um degrau da escada que a levará
paulatinamente a transformar-se, transformando o amante.
Sob este último
aspecto, argumenta o autor já tantas vezes citado, “o desaparecimento de Eros
ganha novo e misterioso significado. Superficialmente, o filho de Afrodite desaparece
porque a amante lhe desobedeceu às ordens. Em outro nível mais profundo, ele
‘retorna para a mãe’, o que é simbolizado pelo cipreste, árvore da Grande Mãe,
no qual pousa como pássaro, e também por sua volta à prisão, ao palácio de
Afrodite.
Em nível ainda
mais profundo, é preciso compreender que Eros desaparece porque Psiqué, com seu
candeeiro, não pôde reconhecer nele o que ele era realmente. Subsequentemente,
fica evidenciado que Eros lhe revelou sua verdadeira identidade gradualmente,
no curso do próprio desenvolvimento da amante. Sua manifestação depende dela:
Eros é transformado por e através de Psiqué. Através de cada uma das tarefas, a
amante apreende, sem o saber, uma nova categoria da realidade do amado. Os
trabalhos realizados ‘para ele’ são um crescimento retilíneo, não só da
consciência de si mesma, mas também de seu conhecimento do amante. Precisamente
porque isto se dá por etapas e porque Psiqué age de forma a não ser arruinada
pelo destrutivo poder do numinoso, que também é Eros, ela se torna, a cada
trabalho, mais segura de si e mais amoldada ao divino poder e à divina figura
de Eros.
Com a
independência do amor de Psiqué, surge um fato novo e tão sério, que a própria
Afrodite julgava impossível pudesse existir no feminino, a não ser que este
possuísse “um coração intrépido e uma prudência além da prudência
característica da mulher.” A grande deusa do amor não acreditava que mulher
alguma possuísse tais atributos masculinos. Mas o que salienta e assinala de
modo ímpar o desenvolvimento da jovem princesa, é que ela executou as três
primeiras tarefas indiretamente e com a cooperação do masculino, mas não como
um ser masculino. “Forçada a construir o lado masculino de sua natureza,
permaneceu fiel à sua feminilidade, o que, decerto, esdtá bem patente no quarto trabalho que lhe
impôs a deusa.”
De outro lado,
as três primeiras missões são executadas com a assistência de “ajudantes”, quer
dizer, por forças in ternas da inconsciência da heroína. O último deverá ser
realizado apenas por ela mesma. Nos três anteriores, seus “auxiliares”
pertenciam ao mundo vegetal e anima; no terceiro, será apoiada pela Torre, um
símbolo da cultura humana. Naqueles, Psiqué lutou com o princípio masculino,
neste último entrará em litígio com o princípio feminino central, com
Afrodite-Perséfone. Se no terceiro trabalho a água da vida, o fluxo foi
recolhido no mais alto penhasco, agora o objeto da busca se localiza em
profundezas insondáveis; está nas mãos da própria Perséfone, a rainha do Hades.
Se não mais
existem ajudantes, Psiqué terá o apoio da Torre-Conselheira, cujo simbolismo é
deveras importante. Como recinto-mandala é feminina: cidade, fortaleza e
montanha, que possui como equivalente cultural a torre em degraus ou a
torre-templo, a pirâmide. De outro lado, a torre é igualmente fálica, enquanto
falo da terra: árvore, muralha, pedra. A par dessa significação bissexual, ela
é também um edifício erigido por mãos humanas, donde uma configuração do
trabalho coletivo e espiritual dos homens. Símbolo do conhecimento humano, é,
por isso mesmo, designada como “a Torre que vê longe”.
Dominando dois
níveis, ela vê para baixo e vê para cima, podendo, por isso mesmo, mostrar a
Psiqué, enquanto indivíduo, mulher e ser humano, como poderá derrotar a mortal
aliança das deusas, três das quais, Deméter, Afrodite e Hera, governam a esfera
divina superior, e a quarta, Perséfone, comanda a esfera divina inferior. Não é
por mero acaso, aliás, que três dos trabalhos são realizados no mundo da luz e
o quarto, nas entranhas das trevas.
Completamente
só, armada com as instruções da Torre, Psiqué empreende a grande κατάβασις (katábasis),
a perigosa “descida” em defesa de seu único amor, Eros.
Alguns
pormenores da viagem, como o itinerário através do cabo Tênaro, as moedas para
pagamento da passagem a Caronte e o bolo de mel e cevada para apaziguar o cão
Cérbero, não são significativos, uma vez que pertencem a temas tradicionais e
não especificamente ao mito de Psiqué. Outros fatos, no entanto, inerentes à catábase,
como a proibição de ajudar ao burriqueiro coxo, ao cadáver, às fiandeiras e de
não aceitar a cadeira e ao lauto jantar, oferecido por Perséfone, merecem um
comentário, porque, segundo a Torre, são armadilhas de Afrodite. Esta, com
tantas ciladas, procura fazer com que a nora fracasse, permanecendo para todo o
sempre no Hades, antes mesmo de transmitir à rainha dos mortos a derradeira
tarefa que lhe impusera.
No quarto e
último trabalho, como se salientou, Psiqué, munida de uma caixinha, deveria
solicitar a Perséfone, em nome de Afrodite, que enviasse a esta “um pouquinho
da beleza imortal.”
Trágico é que
cada um dos estratagemas da deusa do amor é fatal por si mesmo. O burriqueiro
coxo, o “perigoso” Ocno ou Aucno, de quem, no ensaio de Bachofen, se afasta
Afrodite, segura uma corda, cuja extremidade é devorada por um asno fálico.
Atender-lhe à solicitação, pegando a acha, símbolo fálico, que caíra no chão,
seria para sempre perder-se, na outra vida, ao sensualismo animalesco e a uma
tarefa inútil. O cadáver que, erguendo a mão podre, pede ajuda para entrar na
barca de Caronte, pode ser entendido, consoante Neumann, como uma representação
do perigo de ser possuído pelo homem morto, a saber, pelo espírito ancestral.
As fiandeiras, símbolos da Grande Mãe (da vida e da morte), sãs as Queres, as
Parcas dos latinos, que traçam os fios da vida e da morte, segundo se mostrou
no Vol. I, p. 229/230.
Em suas mãos, no
mundo das sombras, Psiqué seria apenas mais uma dos jovens que povoam o reino
de Plutão. Por fim, as ofertas de Perséfone, a cadeira e o alimento, não podiam
em hipótese alguma ser aceitos. Sentar-se numa cadeira, comer (e disto a
própria rainha dos mortos tinha experiência) e outras atitudes de intimidade e
identidade, que serão comentadas logo a seguir, estabelecem uma permanência, uma
fixação, como a respeito da cadeira aconteceu com Teseu e Pirítoo o que será exposto
no mito dos Heróis, no Vol. III) e sobretudo acerca do comer, como aconteceu
com a própria Perséfone, conforme se comentou no Vol. I, p. 304/310.
Tomadas em
conjunto, as proibições e advertências da Torre têm particular importância no
mito que estamos examinando. Psiqué foi advertida de que não ajudasse o Ocno,
ao cadáver e às fiandeiras. As palavras da Torre são claras: não te é lícito
sentir piedade.
O comentário é
mais uma vez de Erich Neumann: “Se, como iremos demonstrar em seguida, todos os
atos de Psiqué representam um rito iniciático, esta proibição implica a
insistência na ‘estabilidade do ego’, característica de qualquer iniciação. Nos
homens, esta estabilidade se manifesta como resistência à dor, à fome, à sede e
assim por diante, mas, na esfera feminina, evidencia a forma de resistência à
piedade. A firmeza do ego forte, concentrado em seu objetivo, é expressa em
inúmeros outros mitos, com suas imposições de não se voltar, não olhar para
trás, não responder, etc. (...)
O feminino é
ameaçado na estabilidade do ego pelo perigo da distração, provocada pelo
‘relacionamento’, causada por Eros. Esta é a difícil tarefa com que se defronta
qualquer psiqué feminina em seu caminho para a individuação: ela deve abandonar
o anseio pelo que está próximo em função de um objetivo diferente e abstrato.
(...)
O componente
universal do relacionamento é tão essencialmente uma parte da estrutura
coletiva da psiqué feminina que Briffault a considera o fundamento de toda a
comunidade e cultura humana, as quais ele julga pertencente ao grupo feminino
com seu vínculo entre mães e filhos. Mas este vínculo não é individual e sim
coletivo, pois pertence à Grande Mãe em seu aspecto de preservadora da vida e
de deusa da fertilidade, que não está interessada com o individual e com a
individuação, mas com o grupo que ela espera ‘seja fértil e se multiplique’.
Por que motivo,
a proibição de ter piedade traduz a luta de Psiqué contra a natureza feminina.
Obrigatoriamente, ‘ajudar’ sempre significou uma ‘participação mística’, que
pressupõe e cria uma identidade e, por isso, é perigosa. Pode, por exemplo,
conduzir à possessão por aquele que é ajudado. Nas Mil e Uma Noites, o herói
alivia a bruxa de sua carga e, como agradecimento, esta monta em suas costas e
não se deixa derrubar”.
Desse modo, a
ajuda, o comer em conjunto, o sentar-se, o aceitar presentes ou ser convidado
para ir à casa de outrem estabelecem comunhão, identidade e um elo infrangível
entre o ajudante e o ajudado.
Eis por que
Psiqué não se deve deixar mover pela piedade nem aceitar os convites de
Perséfone. Se assim agisse, jamais voltaria do Hades.
A catábase de
Psiqué ao reino de Plutão é uma viagem heroica e o mais difícil de todos os
seus trabalhos, porque requer a luta com a própria morte em seu habitat.
A grande
importância da catábase da jovem amante de Eros reside no fato de que, através
da descida, ela irrompeu da esfera matrilinear e, em seu amor consciente por
Eros, alcançou a esfera psíquica, “a experiência feminina do encontro”, que é a
pressuposição da individuação feminina.
As inimigas
irmãs-sombras devem ser configuradas como poderes matrilineares, mas a
intervenção de Afrodite deslocou o conflito do plano pessoal para o
transpessoal. Os três trabalhos iniciais patentearam que a “queda” de Psiqué
visava a terminar com a atividade primordial da matrilinhagem. Por trás da
impossibilidade de realizá-los encontrava-se a característica matrilinear de um
princípio masculino, que, conforme esperava a deusa, seria fatal à sua nora.
Com o desenrolar das tarefas, esse princípio masculino manifestou-se como
promiscuidade masculina (as sementes); o masculino mortal (a lã de ouro) e o
masculino incontível (o fluxo da água da vida). Vencida esta etapa, a deusa vai
tentar “destruir” a amante do filho no quarto trabalho, que é busca da beleza
divina, que deveria ser encerrada numa caixinha. Abrindo-a, Psiqué cai num
“sono semelhante à morte”. Que significa essa caixinha que contém a beleza
imortal e por que Psiqué, apesar da admoestação da Torre, a abriu? Qual o
sentido de seu sono estígio e da intervenção de Eros, que a “liberta do sono da
morte?”
O “creme” de
beleza imortal representa, possivelmente, a eterna juventude de Perséfone a
juventude eterna de Thánatos, a “morte”, e, por isso mesmo, Perséfone é Κόρη (kóre), a jovem. Trata-se, portanto, da
beleza “do sono semelhante à morte”, conhecida nas lendas da “Bela Adormecida”
e da “Branca de Neve” a ele condenadas pela Mãe Terrível, a madrasta, ou pela
velha bruxa. É a beleza do caixão de cristal, do qual, espera-se, Psiqué se
liberte. É a beleza árida e frígida da virgindade estéril, sem amor pelo homem,
como determina a matrilinhagem. O objetivo de Afrodite é fazer que a nora
“morra”, regredindo-a a seu antigo estado de Coré-Perséfone, ao estágio em que
se encontrava antes de seu encontro com Eros.
Tem aí a sedução
do narcisismo que tenta derrotá-la. Afrodite deseja que Psiqué regrida, da
mulher que amou Eros, que foi raptada por seu amor por ele, para a virgem
encarcerada no amor narcísica de si mesma, como se estivesse encerrada no
caixão de cristal.
Colocar o “creme”
da beleza imortal nas mãos de Psiqué é um ardil muito inteligente da deusa, que
conhece como ninguém a feminilidade. Que mulher resistiria a essa tentação e
como poderia uma Psiqué, em especial, não cair no engodo?
Surda à
advertência da Torre, abre a caixinha e cai m sono profundo. Mais uma vez, “fracassa”.
Caindo no sono estígio, ela retorna a Perséfone, com Eurídice, cujo marido, “ainda
nas trevas”, olhou para trás. Vencida pelo aspecto mortal da própria Afrodite,
torna-se Core-Perséfone e é conduzida novamente ao Hades, não por Plutão, o
noivo masculino da morte, mas pela vitoriosa Grande Mãe, enquanto mãe da morte.
Mas assim como
as exigências de Deméter junto a Plutão não foram de todo bem sucedidas,
igualmente a tentativa de Afrodite de fazer Psiqué regredir à matrilinhagem foi
em vão, uma vez que a jovem está grávida e sua gravidez de Eros é símbolo de
seu profundo vínculo individual com ele. A amante de Eros não está preocupada,
com a fertilidade da natureza, mas com a fertilidade do encontro individual. É evidente
que a independência de Psiqué começa no período da gravidez. Enquanto esta na
esfera matrilinear conduz a uma união entre mãe e filha, aqui o despertar de
Psiqué para a independência, que se inicia com a gravidez, leva-a ao encontro
do amor e da consciência.
O final feliz,
devido a Eros, que desperta a esposa do sono da morte não é uma simples
intervenção do deus ex machina, tão comum na literatura clássica, mas algo
muito mais profundo. Por que Psiqué fracassa, justamente agora, no final? Seria
apenas por irresistível curiosidade feminina somada a uma vaidade narcísica? Psiqué
fracassa e precisava fracassar, porque
ela é uma psiqué feminina e é precisamente esse fracasso que lhe dá, sem que
ela o saiba, a vitória.
Esta é a maior
luta, que se conhece, contra o dragão. Sabe-se que o método feminino de
derrotar o monstro é aceitá-lo e aqui essa perspicácia assume a surpreendente,
mas não menos eficiente, forma de fracasso da jovem princesa. Após palmilhar
toda a trilha de um grande herói, após desenvolver sua consciência e
estabilizar seu ego, ela se lança ingenuamente de volta nos braços de Afrodite-Perséfone...
Tudo isso teria sido inútil? Seu gesto, aparentemente tolo, visava tão-somente
a tornar-se atraente para Eros?
Quando Psiqué
decide abrir a caixinha e usar o “creme da beleza imortal”, devia estar
consciente do perigo a que se expunha. A Torre a prevenira o suficiente. Mesmo assim,
decidiu não entregar à Grande Mãe o que conseguira a tão duras penas.
Tudo começou com
o tema da beleza, que agora reaparece em novo plano. Quando a princesa era
chamada a nova Afrodite por causa de sua beleza, que desperta o entusiasmo dos
homens e a inveja da deusa, esse dom era considerado por ela uma desgraça. Mas agora,
exatamente para aumentar sua beleza e torná-la digna de Eros, está disposta a
atrair sobre si mesma a maior das desgraças. Tal mudança ocorreu por causa de Eros
e isso exprime uma perspicácia profundamente feminina. Psiqué é uma mortal em
conflito com deusas. Isto é mau o bastante, mas, na medida em que seu bem-amado
é também um deus, como poderá olhá-lo, contemplá-lo de frente? Ela procede da
esfera terrena, mortal, mas espera tornar-se uma igual a seu amante divino. De modo
muito feminino, ela intui que seus atos e seu sacrifício final o comoveriam e o
forçariam a salvá-la.
É que, no
início, Psiqué sacrificou-se no paraíso escuro de Eros em função de seu desenvolvimento
espiritual, mas agora está prestes a sacrificar seu desenvolvimento espiritual
á beleza de Afrodite-Perséfone, que a tornará atraente para Eros. Ao agir desta
forma, ela parece regredir realmente, as esta não é uma regressão a algo do
passado, à posição matrilinear. Ao preferir a beleza ao conhecimento, ela se
concilia com a beleza de sua natureza. E porque ela o fez por e para Eros, sua “antiga
feminilidade”, entra em nova fase. Já não é a beleza fechada em si mesma, nem a
beleza sedutora de Afrodite, que só se interessa pelo “propósito natural”. Trata-se
da beleza da mulher que ama, que deseja ser bela para ser amada, que deseja ser
bela para Eros e para mais ninguém. Ao tomar tal decisão, ela renova o vínculo
com seu centro feminino, com seu self. Professa seu amor e agarra-se ao
encontro individual com Eros. Esse “toque” feminino, de mulher que tudo sacrifica
pelo amor, é, ao que parece, a razão recôndita que leva Afrodite-Perséfone a
perdoar a Psiqué e levantar subitamente toda e qualquer oposição à deificação
da amante de seu próprio filho.
Esse fracasso
paradoxalmente feminino de Psiqué provoca a intervenção de Eros, que, de jovem
aventureiro e irresponsável, se torna um homem, transformando o fugitivo
queimado em salvador. O salvador de uma Psiqué em outro nível.
Sob esse
aspecto, o fracasso da nova Afrodite não
é um naufrágio regressivo e passivo, mas uma reversão dialética de seu
extraordinário devotamento.
Através do
aperfeiçoamento de sua feminilidade e de seu amor, a “bela” adormecida evoca a
perfeita masculinidade do Eros. Abandonando-se ao amor, ela recebe, sem o
adivinhar, a redenção através do amor.
Com essa redenção
através do amor, Psiqué completou suas quatro tarefas e, destarte, perfez o
itinerário dos iniciados através dos quatro elementos. Curioso, todavia, é que
Psiqué feminina não deve simplesmente peregrinar pelos quatro elementos, como
os iniciados masculinos nos mistérios de Isis. Ela terá que torná-los seus
através de sua práxis e de seus sofrimentos, assimilado-os como forças auxiliares
de sua natureza: as formigas, que pertencem à terra; o caniço pertence à água;
a águia de Zeus, que pertence ao ar e a ígnea celestial figura do próprio Eros redentor,
o próprio fogo.
Antes de se
conscientizar de seus componentes masculinos,
e de compreendê-los, antes de tornar-se um todo, graças ao desenvolvimento
de seu aspecto masculino, Psiqué encontrava-se na posição de confronto com a
totalidade da Grande Mãe em seu duplo aspecto de Afrodite-Perséfone. O fim do
confronto foi, paradoxalmente, a “derrota vitoriosa” de seu comentado fracasso.
Em função de sua derrota vitoriosa, ela recuperou não só um Eros adulto, mas
ainda o contato com seu próprio self central feminino.
Reconciliados o
masculino e o feminino, Psiqué foi recebida no Olimpo como esposa de Eros. Seu guia
foi Hermes, que, nessa missão, exerceu sua verdadeira função de psicopompo, de
guia da “alma feminina”.
O arrebatamento
de Psiqué, da Terra para o Céu, e sobretudo suas núpcias com Eros, vistas sob o
ângulo feminino, significam que a faculdade de amar da alma individual é divina
e que a transformação pelo amor é um mistério que deifica. E essa experiência
da psiqué feminina adquire especial importância face ao mundo patrilinear antigo,
no qual a existência coletiva das mulheres estava subordinada às leis do
princípio da fertilidade.
Se os mortais
conquistaram seu lugar no Olimpo, o feito não se deve a um herói masculino
divinizado, mas a uma psiqué apaixonada. A mulher humana, como indivíduo,
escalou o Céu e, a partir daí, na perfeição conquistada pelo mistério do amor,
a mulher encontrou-se lado a lado com os arquétipos da humanidade inteira, os
deuses imortais.
Do enlace Eros-Psiqué
nasceu uma menina, que, na “linguagem dos mortais”, se chama Volúpia; “volúpia”
sem dúvida, mas algo muito superior à sensualidade. Talvez, “na linguagem dos
deuses”, essa criança divina tenha simplesmente recebido o nome de mulher.
Fernando Pessoa,
num poema lindíssimo, Eros e Psiqué, compreendeu com a sensibilidade e a
profundidade que lhe são peculiares, a extensão desse amor-construção, em que Eros,
buscando a Psiqué, acaba descobrindo que ele é a própria Psiqué, transfigurada
em Amor...
Vale a pena
mostrar este contraste:
Conta a lenda
que dormia
Uma Princesa
encantada
A quem só
despertaria
Um Infante, que
viria
De além do muro
da estrada.
Ele tinha que,
tentado,
Vencer o mal e o
bem,
Antes que, já
libertado,
Deixasse o
caminho errado
Por o que à
Princesa vem.
A Princesa
Adormecida,
Se espera,
dormindo espera,
Sonha em morte a
sua vida,
E orna-lhe a
fronte esquecida,
Verde, uma
grinalda de hera.
Longe o Infante,
esforçado,
Sem saber que
intuito tem,
Rompe o caminho
fadado,
Ele dela é
ignorado,
Ela para ele é
ninguém.
Mas cada um
cumpre o Destino
Ela dormindo
encantada,
Ele buscando-a
sem tino
Pelo processo
divino
Que faz existir
a estrada.
E, se bem que
seja obscuro
Tudo pela
estrada fora,
E falso, ele vem
seguro,
E vencendo
estrada e muro,
Chega onde em
sono ela mora,
E, inda tonto do
que houvera,
À cabeça, em
maresia,
Ergue a mão, e
encontra hera,
E vê que ele
mesmo era
A Princesa que
dormia.
(BRANDÃO, 2002,
p. 209/251)
Mas Eros não
corresponde unicamente ao impulso sexual e passional do indivíduo na busca do
outro. Eros instaura na alma a curiosidade natural que busca a mudança e o
novo. Nesse sentido, é responsável por todas as descobertas e transformações de
todos os tipos.
A ciência é
movida de um Eros curioso e inovador que foge da mesmice ordinária e
entediante. Na simplicidade de sua busca, o Eros sempre jovem é responsável
pelas mudanças do mundo. Sempre inquieto, está à procura de soluções para os
entraves em nossas atividades diárias. E penetra também todos os segredos da
natureza e das energias universais.
Quando, Úrano,
Cronos, Zeus ou Júpiter se vestem de Eros, ele se torna um explorador, soldado
ou guerreiro cruel. Zeus inventou a espada, a lança, o canhão, as colunas
frontispícias, reproduções fálicas do sexo explorador, causadores da
exploração, dos estupros e da morte.
O deus Amor, na
versão mais veiculada, é filho de Afrodite e Hermes. Habita, portanto os
anseios que fazem vibrar o regaço e o seio das meninas, a paixão das princesas,
bem como o coração das matronas sonhadoras. Mas igualmente vibra no coração do
jovem soldado saudoso da amada e da pátria, no peito do pai que aspira a
segurança do lar da amada e da prole, como no arfante arcano do idoso que
apenas se percebe brandamente.
Suas
manifestações se fazem sentir nas cúpidas inspirações da arte que forjaram o
poema encantador, o traço magnífico do pintor e o talhe inovador do cinzel que
fere a pedra bruta e do fogo forjador do metal rude, tirando a imagem encantada
do segredo em que dormia.
Habita o
movimento sutil e harmonioso da bailarina que desliza no palco iluminado e na
voz maviosa dos gorjeios do coro e do solista que maravilham o espectador
encantado.
A mais moderna
descoberta de Eros é o telefone celular. Amor forjou-lhe os segredos das
vibrações de energia que jungem os astros num conjunto harmônico dos bilhões de
galáxias que por bilhões de anos se expandem num movimento diastólico violento
e doce.
A sutileza
arguta do cientista sonhador capturou as vibrações que percorrem o espaço
doudamente e colocou-a no ouvido e no olhar do jovem distraído que compreendeu-lhe
o som e a imagem e ficou preso ao seu domínio.
Mas nesse
universo inseriu sua alma e encontrou a voz do mundo de todos os seus vagando à
busca de outros. Somou-se a eles e criou uma comunidade universal, de onde
aprende a sapiência necessária para seu aprendizado e recebe o afago presente
na voz de todos com os quais convive e interage.
Como se viu na
análise de Brandão, Eros é o próprio inventor da dimensão humana de ser, do
encontro do humano e do divino.
BIBLIOGRAFIA
BRANDÃO, Junito
de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 2002.
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