PRIMEIRAMENTE A TROIA
HISTÓRICA
“A esplendorosa civilização micênica, que, lato sensu, se estendeu do século
XVI ao XII a. C., e cuja expansão colonizadora já havia atingido o litoral
asiático, culminou com a histórica Guerra
de Troia.
Deixemos claro o que se entende por civilização micênica,
também conhecida por civilização heládica. O termo micênica provém de Micenas (Μυκήνες), centro civilizatório
reduzido hoje a um campo arqueológico, situado cera de 90 km de Atenas. O termo
heládica origina-se do nome Ἑλλάς
(Helás), genitivo Ἑλλάδος
(Heládos) pelo qual os gregos denominavam a Grécia, também conhecida como
Hélade.
A Guerra de Troia “Dez anos míticos” de um assédio sangrento
teriam posto fim à gloriosa Ílion ou Troia. Hodiernamente não se põe mais em
dúvida na apenas a existência de Troia, que deve ter sido uma superposição de cidadelas
muito importantes, desde o terceiro milênio até o século XII a. C., mas
sobretudo a sua destruição histórica pelos aqueus, primeiros gregos a habitarem
o Mediterrâneo, os quais foram chamados por Homero de dânaos.
Ruínas de Micenas |
O primeiro passo para o descobrimento da ‘Troia homérica’
foi dado por Heinrich Schliemann, que, a partir de 1870, fazendo escavações na
colina de Hissarlik, na atual Turquia, a noroeste da Ásia Menor, encontrou
várias cidades sobrepostas, nada menos que sete, a que seu extraordinário
ajudante, o arqueólogo Wilhelm Dörpfeld, acrescentou mais duas. Schliemann, a
princípio, pensou que a Troia II fosse a Homérica, mas a experiência e a
cultura de Dörpfeld fizeram-no inclinar-se para a Troia VI, que possuía restos
de cerâmica muitíssimo semelhantes à de Micenas e Tirinto. Por este e outros
indícios conclui-se que a Troia VI fora erigida em 1900 a. C., por um povo sem
dúvida proveniente também do mundo indo-europeu para a Ásia Menor. Cultivando a
cerâmica mínia, esse povo não apenas mantinha um comércio ativo com os
micênicos, mas, o que é mais importante, devia ter um possível parentesco com
os primeiros gregos.
Trata-se, segundo toas as probabilidades, dos hititas.
Cercada por magnífica muralha, Troia VI era uma cidade opulenta, cuja
prosperidade se baseava na fertilidade de seu solo, na pecuária e na criação de
cavalos. Os troianos são comumente chamados por Homero de ‘domadores de
cavalos’, como atesta o último verso da Ilíada,
em que o maior dos heróis de Troia recebe este epíteto:
-
Assim, eles (os Troianos) fizeram os
funerais de Heitor, domador de cavalos. (Il., XXIV, 804).
As escavações em Ílion ou Troia terminaram sob a direção de W.
Blegen e, consoante o grande mestre da Universidade de Cincinati, Troia VI foi
destruída por um tremor de terra, seguindo-lhe, sem nenhuma solução de
continuidade nem de cultura, embora sem a opulência da anterior Troia VIIa. com todas as possibilidades
de ser a cidade de Príamo, a Troia homérica, a Troia histórica. Aliás, alguns outros fatos rigorosamente
históricos, relacionados por Page, confirmam a historicidade da Guerra de Troia.
Há registros hititas de uma aliança de cidades da Ásia Menor, entre as quais
aparece Ílion ou Troia, contra uma coligação de reinos aqueus, ~ pelo
século XIII a. C., exatamente no momento do grande poderio de Micenas, e,
coincidentemente, da destruição de Ílion que deve ter-se processado ~ enter 1230 e 1225 a. C.,
segundo os arqueólogos americanos, com uma diferença de poucos decênios em
relação à data tradicional da Guerra de Troia. Esta, consoante o geógrafo e philologus, alexandrino do século III a.
C., Eratóstenes de Cirene fora em 1183 a.
C.
Ruínas de Troia |
A Ilíada funde, pois, o fausto de Troia VI com a ruína da
Troia VIIa. Com a VI, que trouxera consigo o cavalo, se dera início a uma
civilização diferente da anterior. Troia VIII que ainda se sobrepôs à Troia
VIIa, culturalmente nada apresenta de importante e Troia IX é de uma data muito
tardia.
Discutem-se ainda as causas dessa guerra. Uma vasta operação
de pilhagem ou uma bem planejada operação de expansão imperialista, para se
apossar de vastos domínios territoriais no Mediterrâneo Oriental e assegurar o
monopólio aqueu de um grande e rico empório? Na realidade, é grande o número de
objetos micênicos encontrados nas margens do Mediterrâneo, o que atesta a sua
expansão comercial. Para o expansivo comércio helênico, não bastavam, porém, as
‘praças’ conquistadas no Mediterrâneo Oriental. Avançaram também em direção ao
Egito, com o qual mantiveram excelentes relações comerciais.
Descobrimentos arqueológicos demonstraram inúmeros objetos
egípcios chegados à Grécia nos séculos XIV e XIII a. C. e, em contrapartida, desenterram-se
no país dos Faraós numerosos vasos micênicos, principalmente em Tell-el-Amarna,
a célebre Akhetaton, a efêmera capital do ‘herético’ :Akhnaton ou Amenófis IV.
Disputaram com o Egito e os hititas, já em decadência, as praças da Síria e da
Fenícia. Penetrando pelo interior, chegaram até Jericó...
Os aqueus, por conseguinte, não se satisfizeram com a
ocupação de Creta, Rodes e Chipre, mas conquistaram estabelecimentos comerciais
em toda costa do Mediterrâneo Oriental, desde Tróada até o Egito e isto sem
falar em sua ‘expansão ocidental’, que atingiu, comprovadamente, Tarento e
Siracusa. Ora, um tal império marítimo haveria, mais cedo ou mais tarde,
chocar-se com interesses de outros povos. E foi exatamente o que aconteceu. Os
micênicos, que já se haviam instalado em Mileto e Cólofon e tinham e Troia um
excelente cliente, para a qual vendiam punhais de bronze, pontas de flecha,
mármore e objetos de marfim e sobretudo vasos, acabaram chocando-se com o
império hitita e com o reino vassalo de Asuwa. Daí, possivelmente, a
supracitada coligação de vinte e duas cidades da Ásia Menor, entre as quais se
alinhava Troia, contra os aqueus. Essa é, em síntese, a tese de Denys Page.
GRÉCIA ANTIGA |
Pierre Lévêque, apoiado em outros autores, julga que seria
um método muito estranho o empregado pelos aqueus, para ampliar seu negócio:
destruir precisamente uma cidade que com eles mantinha um comércio ativo e
regular. Opina o ilustre Professor de Besançon que a Guerra e a
consequente destruição de Ílion se
deveram simplesmente ‘a uma gigantesca operação de pilhagem’. É mister, no
entanto, não esquecer que a riquíssima cidadela de Troia (as escavações o
mostram), no momento, fazia parte de uma coligação contra os micênicos. Estes,
astutamente, teriam aproveitado a oportunidade para destruir o inimigo e
confiscar-lhe as riquezas.
De qualquer forma, a Guerra de Troia foi o canto de cisne do
‘império’ aqueu. A derradeira expedição em que heróis destemidos se consagraram
para impor-se no Mediterrâneo Oriental. Tudo não teria passado de mais uma
gesta, certamente heroica, não fora a epopeia homérica, que imortalizou o
arrojo e o arrebatamento de Aquiles, a astúcia e a ‘nostalgia’ de Ulisses, a
fidelidade de Penélope, a dignidade de Heitor e a ternura de Andrômaca!
Mais um pouco e as trevas dóricas descerão sobre a Hélade.
A civilização micênica havia, pois, atingido seu clímax,
quando lá pelos inícios do século XII a. C. chegaram à Hélade as últimas levas
de invasores indo-europeus tradicionalmente denominados dórios. É inteiramente impossível, todavia, localizar no tempo um
movimento que se processou lentamente ao longo dos séculos. Uma coisa, porém,
parece indiscutível: o incêndio de Hatusa, a capital do império hitita, na Ásia
Menor, com o consequente desmoronamento deste mesmo império; (Os hititas eram
um povo indo-europeu que fundou um império poderoso na Anatólia no II milênio
a. C. que se estendia até a Mesopotâmia e à Palestina.) a ameaça que pesou
sobre o Egito por parte dos povos do mar, contida com dificuldade por Ramsés III,
bem como a destruição dos grades centros da civilização micênica, seguida de
uma completa ruptura e desagregação política, religiosa e cultural do mundo
aqueu, devem-se à erupção violenta dos dóricos.
Partindo do Danúbio e da Ilíria (A Ilíria era uma nação que
habitava as regiões que iniciavam na Macedônia Balcânica), esses ‘gregos’ já
conhecedores do ferro, aguerridos e violentos, penetraram em vagas sucessivas
pelo Epiro e, através da Macedônia e da Tessália, lograram apossar-se, grosso
modo, de toda a Grécia continental, bem como de várias ilhas, principalmente de
Creta, chegando até Rodes.
Dessa grande calamidade sobraram, ao que parece, as ilhas de
Eubeia, Chipre e Ática, com sua
Atenas eterna, talvez deixada de lado pela pobreza de seu pequeno território.
Ao apagar das luzes do século XI a. C, chegou ao fim a
catástrofe que submergiu toda a civilização micênica.
Exatamente como as invasões dóricas, as migrações aqueias,
jônicas e eólicas, fugindo ao vencedor, se fizeram paulatinamente, no tempo e
no espaço, em direção à Ásia Menor. Essas migrações, é bom acentuar, que já
haviam começado em plena época micênica, bem antes portanto das invasões
dóricas e que prosseguiram durante e por causa das mesmas, tiveram continuidade
por motivos outros, sobretudo de ordem política e econômica, até o século IX a.
C.
Assim, a época da provável ‘composição’ da Ilíada (século IX
a. C), a Grécia da Ásia, reduzida a
um esquema muito simples, apresenta-se seccionada em três zonas étnicas: ao
norte, a Eólida, com as ilhas de
Tênedos e Lesbos; ao centro, a Jônia,
com as grandes cidades de Mileto, Cólofon, Focéia, Éfeso e as ilhas de Samos e
Quios; ao sul, a Dórida, com as
cidades de Halicarnasso, Cnido e as ilhas de Cos e Rodes.
As invasões dóricas, do ponto de vista mítico, coincidem com
o chamado Retorno dos Heraclidas,
isto é, lato sensu, todos os
filhoas e descendentes de Héracles até a geração mais remota, mas, no mito,
denominam-se Heraclidas particularmente os filhos do herói com Dejanira e os
descendentes destes que colonizaram o Peloponeso, conforme este quadro
genealógico:
Héracles------------------------------------------Dejanira
êHilo, Ctesipo, Gleno, Hodites e Macária
ê
¯
Cleodeu
¯
Aristômaco
¯
Têmeno
Após a morte trágica de Héracles no monte Eta e
sua gloriosa apoteose, os filhos fugiram do Peloponeso, temendo a cólera de seu
primo Euristeu, que impusera ao herói os célebres Doze Trabalhos. Após uma curta permanência na corte do rei Cêix, em
Traquine, refugiaram-se em Atenas, onde Teseu, sem recear a pressão e as
ameaças de Euristeu, lhes deu hospitalidade. Este declarou guerra aos
atenienses, mas na batalha perdeu os cinco filhos. Perseguido por Hilo,
Euristeu foi morto junto aos Rochedos Cirônicos, no Istmo de Corinto. A
vitória, de acordo com a previsão do oráculo, se deveu ao sacrifício de uma das
filhas de Héracles, Macária, que se ofereceu voluntariamente para morrer pelo
bom êxito de Atenas e dos Heraclidas contra o despotismo de Euristeu.
HÉRACLES E O LEÃO DE NEEMEIA |
Com o desaparecimento deste e dos filhos, Hilo com
seus irmãos e descendentes e apoderou-se do Peloponeso. Ao cabo de um ano,
porém, uma peste se abateu sobre a região e o oráculo revelou que a mesma era
consequência da cólera divina, porque os Heraclidas haviam retornado antes do
tempo fixado pela Moîra. Obedientes, voltaram para a Ática, fixando-se na
planície de Maratona.
Desejoso, porém, de regressar à pátria, Hilo, a
essa época, já casado com Íole, outrora concubina de seu pai, e ao qual os
irmãos consideravam como o verdadeiro herdeiro da tradição paterna, voltou a
consultar o oráculo de Delfos. A Pítia lhe respondeu que a aspiração dos
Heraclidas só poderia ser alcançada ‘após a terceira colheita’.
À frente dos seus, ‘após a terceira colheita’,
Hilo avançou contra o Peloponeso, mas se chocou com as tropas de Équemo, rei de
Tégea, cunhado dos Dioscuros, de Helena e de Clitemnestra. Tendo- desafiado
para um combate singular, Hilo foi vencido e morto. Seu neto Aristômaco voltou
a consultar a Pítia que lhe respondeu:
Sacerdotisa de Delfos, profetizava os oráculos(1891), |
‘Os deuses te darão a vitória, se atacares pela
via estreita’. Aristômaco interpretou que a ‘via estreita’ era o istmo de
Corinto. Atacou novamente a Équemo, mas foi morto e, mais uma vez, os
Heraclidas foram vencidos. Têmeno, filho de Aristômaco, e bisneto de Hilo, fez
mais uma tentativa junto de Apolo. Este se limitou a repetir e renovar as
respostas anteriores. Têmeno obsevou à Pítia que seu pai e bisavô, tendo
seguido escrupulosamente a determinação do oráculo,foram vencidos e mortos.
Replicou-lhe Apolo que a culpa havia sido deles,
que não haviam sabido interpretar corretamente o oráculo: ‘por terceira
colheita se deveria entender terceira geração e, por ‘via estreita’ a via do
mar e os estreitos entre a costa da Grécia continental e a do Peloponeso.’
Têmeno formava com seus irmãos a terceira geração
após Hilo e, tendo compreendido agora o oráculo, pôs-se a construir uma
verdadeira frota em Naupacto, na costa da Lócrida, mas a morte do adivinho
Carno por um dos Heraclidas fez que uma imensa tempestade dispersasse a frota e
houve uma fome tão grande, que todos debandaram.
Mais uma consulta a Apolo. O deus respondeu que as
calamidades se deviam ao assassinato de Carno e que qa vitória dependia do
banimento do homicida por dez anos e de um ‘guia de três olhos’. O assassino
foi expulso e, um dia, apareceu no acampamento dos descendentes de Héracles ‘um
ser de três olhos’: um caolho montado num cavalo. Esse caolho era Óxilo, rei da
Élida, de onde fora expulso por um ano, por causa de um homicídio involuntário.
O rei se dispôs a guiá-los, desde que tivesse o
apoio dos mesmos, para recuperar o trono. Travada a batalha, a vitória, desta
feita, foi da ‘terceira geração. O rei do Peloponeso, Tisâmeno, filho de
Orestes, foi morto e suas tropas destroçadas. O Peloponeso foi, a partir de
então, dividido em três reinos básicos: Argólida, Lacônia r Messênia. A Élida
teve seu rei Óxilo de volta e a Arcádia permaneceu nas mãos de seus primitivos
habitantes. Um século após a morte de Héracles, seus descendentes voltaram ao
Peloponeso.
O retorno dos Heraclidas reflete as lutas sangrentas
travadas pelos invasores dórios contra os aqueus e o auxílio que àqueles foi
prestado ‘por guias’ e chefes de um clã aqueu no exílio.
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Com as invasões dórias houve, já disse, uma
completa ruptura e desagregação política, social, religiosa e cultural do mundo
aqueu.
Durante séculos se afirmou que os dórios havia
‘criado’ na Hélade duas novidades de importância capital: a metalurgia do ferro
e a cerâmica geométrica e que a conquista do Peloponeso se devera à superioridade
das armas de ferro dórias sobre o armamento de bronze dos aqueus. Quanto ao
ferro, não foi mesmo ‘inventado’ nem tampouco usado pela vez primeira pelos
dórios. A metalurgia do ferro já se conhecia bem antes na Anatólia e seu
monopólio pertencia aos hititas. Com a ruína do império centrado em Hatusa, o
uso do ferro se difundiu pela Palestina e Creta, depois pela Grécia,
possivelmente, isso sim pelos dórios. A cerâmica geométrica, que predominou na
Hélade de ~
1100 a 750 a. C., não é também criação dória: surgiu, na realidade, da arte
micênica e, coincidentemente, alcançou seu maior esplendor em terras não
dominadas pelos dórios: Atenas e a ilha de Chipre.
“As grandes ‘novidades’ dórias foram no plano
social e religioso. Fortemente organizadas em torno de seus chefes militares, os
invasores estavam ainda muito presos e ligados à primitiva e belicosa sociedade
indo-europeia. Reinava entre eles uma patrilinhagem feroz, dada a superioridade
do homem como guerreiro. Houve, nesse sentido, um retrocesso muito sério em
relação aos reinos aqueus, onde a mulher, mercê da influência matrilinear
cretense, gozava de uma liberdade, de uma estima e de um respeito, que nunca
mais ela terá, ao menos na Grécia continental.
Vivendo em comunidades, indissoluvelmente ligados
pela camaradagem bélica, os homens prolongavam na vida diária essa convivência
íntima, própria da guerra em que estavam de contínuo empenhados. Desse modus vivendi
originaram-se, certamente, dois hábitos, que se hão de perpetuar no helenismo:
a nudez do atleta e a pederastia. (...)
A TROIA MITOLÓGICA
Falou-se da Ílion histórica, de uma guerra
histórica, mas existe também uma Troia
mítica, com sua guerra gigantesca de dez anos. Tudo começou com o rapto de
Helena, mulher de Menelau, um dos filhos amaldiçoados de Atreu. Vamos mostrar o
mito e suas consequências, desde os primórdios.
Tétis
(Thetis), que é preciso não confundir com a titânida Tétis (Tethýs), era a
mais bela das nereidas, filha do Velho do Mar, Nereu, e de Dóris. Zeus e
Posídon queriam conquistá-la, mas um oráculo de Têmis revelou que o filho
nascido do enlace da nereida com um dos dois seria mais poderoso que o pai.
De imediato, os dois deuses desistiram de seu
intento e, para afastar qualquer ameaça, apressaram-se em conseguir para ela um
marido mortal. Outros mitógrafos atribuem o oráculo a Prometeu, que havia
predito que o filho de Zeus e Tétis se tornaria o senhor do mundo, após destronar
o pai.
O centauro Quirão, sem perda de tempo, começou a
orientar seu discípulo Peleu no sentido de conquistar a filha imortal de Nereu.
Apesar de todas as sucessivas metamorfoses de Tétis, o que é próprio das
divindades do mar, , em fogo, água, vento, árvore, pássaro, tigre, leão,
serpente e, por fim, em verga, Peleu, orientado por Quirão, a segurou
firmemente e a deusa, embora contra a vontade, deu-se por vencida.
Para as bodas solenes de Tétis e Peleu, no monte
Pélion, compareceram rodos os deuses. As musas cantaram o epitalâmio e todos os
imortais ofereceram lembranças aos noivos. Entre as ais apreciadas e notáveis
destacam-se uma lança de carvalho, dádiva de Quirão, e o presente de Posídon,
dois cavalos imortais, Bálio e Xanto, os mesmos que na Guerra de Troia, serão
atrelados ao carro do bravo Aquiles.
O casamento do discípulo de Quirão com a filha de
Nereu foi um desastre. Já haviam tido seis filhos, mas, na ânsia de
imortalizá-los, Tétis sempre acabava por matá-los. Assim foi, até que Peleu lhe
tomou das mãos o sétimo, o caçula Aquiles, no momento em que a nereida, na
tentativa de imortalizá-lo, segurava-o pelo calcanhar direito, o temperava ao
fogo.
Outra versão assevera que Tétis, segurando-lhe o
mesmo calcanhar, o mergulhava nas perigosas águas do rio infernal Estige, que tinham o dom de
tornar invulnerável tudo o que nelas fosse introduzido. Na realidade, Aquiles
era invulnerável, menos o calcanhar por onde a mãe o segurou...
CASAMENTO DE PELEU E TÉTIS - ROTTENHAMMER |
Tétis, inconformada com a atitude do marido, a
quem, aliás, não amava, o abandonou para sempre. Embora confiando ao pai o
filho caçula, jamais deixou de ajudá-lo e protegê-lo por todos os meios a seu
alcance, como se pode ver através de toda a Ilíada.
A Moîra, porém, tem os seus desígnios
e Aquiles perecerá muito jovem, exatamente pelo calcanhar não temperado pelo
fogo ou não banhado pelas águas do Estige.
De qualquer forma, foi durante as núpcias de Tétis
e Peleu que Éris, a Discórdia, com certeza ‘convidada a não comparecer’ ao
monte Pélion, deixou cair ente os deuses a maçã de ouro, o Pomo da Discórdia,
destinado à mais bela das três deusas ali presentes: Hera, Atená e Afrodite. In continenti se
levantou uma grande disputa e altercação entre as três. Não se atrevendo nenhum
dos deuses a assumir responsabilidade da escolha, Zeus encarregou Hermes de
conduzir as três imortais ao monte Ida, na Ásia Menor, onde seriam julgadas
pelo ‘pastor Páris ou Alexandre.
Antes de lhe conhecer a decisão, uma palavra sobre
o extenso mito do pastor do monte Ida. Páris ou Alexandre era o filho caçula de
Príamo, rei de Troia, e de sua esposa Hécuba. Esta, nos últimos dias de
gravidez, sonhou que estava dando à luz uma tocha que incendiava a cidade.
Príamo consultou se filho bastardo Ésaco e obteve
como resposta que o nascituro seria a ruína de Ílion. O rei, por isso mesmo,
mandou matar a criança, tão logo nasceu, mas Hécuba o entregou ao pastor
Agesilau, para que o expusesse o monte Ida. O servo assim fez, mas, regressando
cinco dias depois, encontrou uma ursa amamentando o menino.
Impressionado, Agesilau o recolheu e criou ou,
segundo uma variante, o entregou aos pastores do Ida, para que o fizessem. Páris
cresceu forte e belo, tornando-se um pegureiro corajoso, que defendia o gado
contra os ladrões e os animais selvagens, recebendo, por isso mesmo o nome de Alexandre, isto é, ‘o protetor dos
homens’, e, numa interpretação mais popular e mítica, ‘o que protege’ o rebanho
ou ‘o homem protegido’, por não ter perecido no Monte Ida.
HELENA E PÁRIS |
Certo dia, os servidores de Príamo foram buscar no
rebanho, que Alexandre guardava, um touro pelo qual o pastor tinha particular
estima. Inconformado com o fato de que o animal seria o prêmio do vencedor dos
Jogos Fúnebres em memória do filho de Príamo, quer dizer, em honra do próprio
Páris, que os pais reputavam morto, o valente zagal seguiu os servidores do
rei, resolvido a participar do certame e recuperar seu animal favorito.
Alexandre participou das provas e venceu-as todas,
competindo contra os próprios irmãos, que não sabiam quem era ele. Deífobo, um
deles, irritado, quis matá-lo com a espada, mas o vencedor refugiou-se no altar
de Zeus. Sua irmã, a profetisa Cassandra, o reconheceu e Príamo, feliz por ter
reencontrado o filho, que julgava morto, acolheu-o e deu-lhe o lugar que lhe
cabia no palácio real.
HELENA |
Pois bem, foi a este Páris, quando ainda era
pastor, que Zeus enviou Hermes com as três deusas que disputavam, com sua beleza,
a maçã de ouro, a grande provocação de Éris, a Discórdia. Ao ver as divindades,
o pastor teve medo e quis fugir, mas Hermes o persuadiu a funcionar como
árbitro, em nome da vontade de Zeus.
As imortais expuseram então seus argumentos e
defenderam sua própria causa e candidatura, oferecendo-lhe cada uma sua
proteção e dons particulares se fosse por ele declarada vitoriosa.
Hera prometeu-lhe, se vencedora, o império da
Ásia; Atená, a sabedoria e a vitória em todos os combates; Afrodite
assegurava-lhe tão-somente o amor da mulher mais bela do mundo: Helena, mulher
de Menelau, rainha de Esparta. Alexandre decidiu que a mais bela das três era
Afrodite.
Até o dia desse julgamento fatídico, que provocará
a Guerra de Troia, Páris amava a ninfa do Ida, chamada Enone. Conhecedora do
futuro e hábil curandeira, ambos dons de Apolo, tudo fez para que Páris não a
abandonasse. Ao ver que suas previsões e súplicas eram inúteis, disse-lhe, na
despedida, que se fosse ferido, voltasse, pois só ela poderia curá-lo.
Da cidadela de Ílion, m companhia de Enéias,
partiu Alexandre para Esparta, em busca de Helena. Heleno e Cassandra, filhos
de Príamo, e ambos portadores de poderes divinatórios (manteía) previram o desfecho trágico da aventura, mas ninguém lhes
deu ouvido.
No Peloponeso, Páris e Enéias foram acolhidos
pelos Dioscuros, Castor e Pólux, irmãos de Helena, que os conduziram ao palácio
real. Menelau os recebeu dentro das normas da sagrada hospitalidade e lhes
apresentou Helena. Dias depois, tendo sido chamado a Creta, para assistir aos
funerais de seu padrasto Catreu, o rei entregou os hóspedes à solicitude da
esposa. Bem mais rápido do que se esperava, a rainha foi conquistada por Páris:
era jovem belo, cercava-o o fausto oriental e tinha a ajuda indispensável de
Afrodite. Helena, apaixonada, reuniu todos os tesouros que pôde e fugiu com
Alexandre, levando várias escravas, inclusive a cativa Etra, mãe de Teseu, mas
deixando em Esparta a filha Hermíona, com apenas nove anos. Regressando a
Troia, Páris foi bem acolhido e toda a casa real, não obstante as terríveis
profecias de Cassandra.
Sabedor de sua desgraça por Íris, mensageira dos
imortais, o monarca voltou apressadamente a Esparta e, para tentar resolver
pacificamente o grave problema, Menelau e Ulisses foram como embaixadores a
Ílion. Reclamaram Helena e os tesouros carregados pelo casal. Páris se recusou
devolver tanto Helena quanto os tesouros e ainda tentou convencer os troianos a
matarem o rei de Esparta, que foi salvo por Antenor, companheiro e prudente
conselheiro do velho Príamo. Com a recusa de Páris e sua traição a Menelau, a
guerra se tornou inevitável.
Reunidos todos os reis e heróis, que haviam
prestado juramento de solidariedade a Tíndaro, por ocasião do casamento de
Helena,de que já se falou, deu-se início aos preparativos da grande expedição
contra Troia.
Consultado o oráculo de Delfos acerca da
oportunidade de se iniciar uma expedição militar contra Ílion, aquele respondeu
que se oferecesse a Atená Prónoia,
Atená ‘Providência’ porque era preciso tê-la in bono animo, um colar que Afrodite outrora
dera a Helena.
MENELAU |
Hera pôs-se, de imediato, ao lado de Menelau e
tudo fez para reunir os heróis aqueus contra Páris, seu inimigo pessoal. É
curioso, aliás como os deuses se dividiram, militarmente, nessa refrega, tendo
cada um, evidentemente, seus motivos e interesses pessoais. Se ao lado dos
helenos se aliaram Atená, Hera, Tétis, Posídon e Hefesto, nas fileiras troianas
pelejavam Afrodite, Ares, Apolo e Ártemis.
Alguns deles foram até mesmo feridos em combate
como Ares e Afrodite. Tem-se, não raro, a impressão, na leitura da Ilíada, de que a Guerra de Troia, em
determinados momentos, foi mais uma teomaquia, uma luta de deuses, do que uma
andromaquia, um confronto de heróis. Zeus posicionou-se como árbitro, não de
todo isento: dependia, por vezes, do tom da voz feminina que lhe chegasse aos
ouvidos... Em todo caso, pesava os destinos, confundindo-se muitas vezes, com a
própria Moîra e, no fundo, sabedor de
que a vitória final seria dos aqueus, soube retardá-la, para dar-lhe um brilho
maior.
Concluída a digressão, é mister voltar aos
preparativos para a sangrenta seara de Ares. Não foi fácil convocar alguns dos
chefes e heróis indispensáveis para a vitória dos gregos. É o caso, entre
outros, de Aquiles, sem cuja presença, consoante a profecia de Calcas, Troia
não poderia ser conquistada. É que o herói fora escondido pela própria mãe.
Tendo ciência de que o fim de Troia coincidiria com a morte do filho, Tétis
vestiu-o com hábitos femininos e o conduziu para a corte do rei Licomedes, na
ilha de Ciros, onde o herói passou a viver disfarçado no meio das filhas do rei
com o nome de Pirra, Istoé, ruiva,
porque o herói tinha cabelos loiro-avermelhados. Sob esse disfarce feminino,
Aquiles se uniu a uma das princesas, Deidamia, e deu-lhe um filho, Neoptólemo,
o mesmo que, mais tarde tomará o nome de Pirro.
Tendo conhecimento do esconderijo do filho de
Tétis, Calcas o revelou aos atridas, que enviaram Ulisses e Diomedes para
buscá-lo. Mesmo assim o maior dos heróis aqueus teve uma oportunidade de
escolha, pois Tétis preveniu o filho do destino que o aguardava: se fosse a
Troia, teria uma fama retumbante, mas sua vida seria breve; se, ao contrário,
ficasse, viveria por longo tempo, mas sem glória.
Aquiles escolheu a vida breve e gloriosa. O
historiador latino Caio Salústio Crispo (86~35 a. C.) muitos séculos
depois, ainda faria ecoar a opção de Aquiles: ... et quoniam uita ipsa,
qua fruimur, breuis est, , memoriam nostri quam maxume longa, efficere... (De Coni. Cat. 1,3) ‘e já que a
vida que desfrutamos é breve, devemos fazer por deixar de nós a mais longa
memória’. E Marco Túlio Cícero (106-40 a. C.) parece ter-lhe completado o
sentido: Breue enim tempus aetatis, satis longum
est ad bene honesteque uiuendum (De Sem., 19,70): ‘Curto, na
verdade, é o tempo de nossa vida, mas é bastante longo para se viver bem e
honradamente’.
Congregados, por fim, os grandes heróis, Aquiles,
Ulisses, Ajax, Filoctetes, Diomedes, Agamênon, Menelau, Nestor... os aqueus
partiram para Tróada. Apaziguada, como já se relatou, a cólera de Ártemis em
Aulis, a gigantesca frota aqueia chegou a seu destino. Eram, ao todo, conforme
o Catálogo das Naus Il., II494-769,
mil cento e noventa e três naus! Nos dois primeiros cantos da Ilíada o combate propriamente ainda não
começara, no terceiro ainda existia uma possibilidade de se resolver a grave
situação, sem grande derramamento de sangue: a proposta foi do próprio Páris,
que sugeriu um combate singular entre o ofendido, Menelau, e o ofensor, ele, Páris.
Com o vencedor ficariam Helena e os tesouros. Travou-se a luta entre os heróis
e, quando Menelau estava prestes a liquidar a Páris, Afrodite interveio.
Envolveu o triano num manto de nuvens e o transportou para os braços de Helena,
aliás o campo de batalha predileto de Alexandre, que, como herói e guerreiro,
deixa muito a desejar! Agamênon reclamou a vitória de Menelau, mas nada
conseguiu.
Houve, a seguir, um pequeno intervalo de tréguas,
que foram logo rompidas por um aliado dos troianos, o lício Pândaro, que atirou
uma seta contra Menelau. A partir desse momento começou realmente a cruenta
refrega pela posse de Ílion, que só foi tomada e destruída após a morte de seu
ínclito herói Heitor e, assim mesmo, graças a um genial estratagema inspirado
por Atená, materializado por Epeu e que ‘um dia o divino Ulisses introduziu na
cidadela, pejado de guerreiros que saquearam Ílion.’ Trata-se do Cavalo de Troia. A grande cidade grega
já aparece no canto VIII da Odisseia pelos lábios do aedo Demódoco, e que foi
magnificamente desenvolvida e enriquecida sete séculos depois no canto 2 da
Eneida do mais inspirado poeta latino Públio Virgílio Marão (79-19 a. C.).
Fingindo uma retirada, canta Homero na Odisseia
(VIII, 500-520), pela voz de Demódoco, parte dos aqueus, após incendiar as
tendas, embarcou em suas naus, enquanto outros sentavam-se silenciosos em torno
de Ulisses, dentro do cavalo, que os troianos haviam arrastado para dentro de
Ílion. Grande era a querela dos vassalos de Príamo a respeito do que fazer com
o gigantesco simulacro de madeira.
Três eram as propostas: abrir-lhe o bojo com o
bronze; arremessá-lo do cimo dos rochedos ou poupar o grande simulacro como
oferta propiciatória aos deuses. A terceira foi a vencedora, ‘porque era
destino da cidade que fosse arruinada, quando tivesse dentro o grande cavalo de
madeira, onde se escondiam todos os mais valentes dos argivos, que levavam aos
troianos carnificina e morte. E o aedo cantava como os filhos aqueus, após
saírem do cavalo e deixarem o bojo do monstro, destruíram Troia.’
Foram dez anos de ódio, de terror, de lágrimas, de
vilania e de bravura indomável, de morte e de carnificina. No fim, tudo acabou.
Ílion era um monte de cinzas e de pedras calcinadas. Milhares de heróis, bravos
e destemidos, transformaram Troia num silencioso dormitório de mortos.
Aquiles, cujo destino estava traçado, foi morto
ingloriamente por uma flecha disparada por Páris, que, escondido atrás da
estátua de Apolo, o alvejou. A flecha, guiada pelo deus, atingiu o herói na
única parte vulnerável do corpo, o calcanhar direito. Mas também o raptor de
Helena estava com seus momentos cronometrados pela Moîra: foi mortalmente ferido por uma flecha de Filoctetes.
Procurou desesperadamente o auxílio de Enone, a ninfa que ele abandonara no Monte
Ida, pois somente ela poderia curá-lo. Enone, a princípio, se recusou
atendê-lo, ainda amargurada com a ingratidão e infidelidade de Páris. Quando,
por fim, resolveu socorrê-lo, era tarde demais.
ESPARTA |
Após a morte de Alexandre, Helena se casou com
Deífobo, também filho de Príamo e de Hécuba. Menelau, porém, foi ao encalço do
casal e liquidou Deífobo. Quando levantou a espada para matar Helena, esta se
lhe mostrou seminua e ressurgiram no rei de Esparta as chamas do antigo amor!
Certamente, ao levantar a espada para descarregá-la na esposa infiel, Menelau
estava irritado com o peso o capacete empenahachado de crinas e outros enfeites
que lhe cobriam a cabeça... o retorno do casal, agora reconciliado, foi uma
odisseia. Tempestades, naufrágios, calmarias, fome e uma permanência forçada de
cinco anos no Egito marcaram-lhe o difícil regresso. Finalmente, após oito anos
de sofrimentos, abriram-se de novo para o rei Menelau e a rainha Helena as
altas porás do palácio de Esparta, onde Telêmaco, filho de Ulisses, em suas
peregrinações em busca do pai, irá encontrá-los felizes e sorridentes!
Nestas alturas dos acontecimentos, os deuses já se
haviam esquecido de Troia, perpetuando no Olimpio, sua imortalidade com o
néctar e a ambrosia num sorriso interminável!
Menelau, apesar de na Ilíada e mesmo nos Poemas
Cíclicos, não ter sido nenhum modelo de heroísmo e de apresentar-se como
personagem apagada, indecisa e sem personalidade, mereceu, já em idade
avançada, ser transportado em vida ara a Ilha dos Bem Aventurados. Um ‘prêmio’
dos imortais, talvez por ter sido genro de Zeus ou por sua rigorosa e pacífica
fidelidade conjugal... Helena, por motivos que se dirão logo a seguir, teria
ficado por aqui mesmo, em seus santuários, até mesmo porque, numa sociedade
acentuadamente patrilinear, como a enfocada por Homero, uma mulher, embora
filha de Zeus, dificilmente chegaria à Ilha de Avalon! Existe, porém, a
variante mais tardia, segundo a qual a linda Helena se teria casado com Aquiles
(post mortem) e o casal estaria
vivendo no meio de festins na Ilha Branca, no mar Negro, na foz do rio Danúbio.
Falo-se, neste capítulo, no Rapto de Helena. Tal fato merece um ligeiro comentário. Helena não
foi raptada apenas uma vez, mas duas. O mito da esposa de Menelau é deveras
confuso e complexo. Inúmeras variantes posteriores a Homero parecem encobrir o
sentido primitivo do mitologema. Filha de Zeus e de Leda, na epopeia homérica,
seu pai ‘humano’ era Tíndaro e seus irmãos os Dioscuros, Castor e Pólux, e uma
irmã Clitemnestra. Muito cedo, todavia, Helena tornou-se filha de Zeus e de
Nêmesis. Esta, para fugir à tenaz perseguição de Zeus, símbolo da fecundação,
percorreu o mundo inteiro, tomando todas as formas possíveis, até que, cansada,
no outono, se metamorfoseou em gansa.
O deus se transformou em cisne e a ela se uniu, em Ramnunte, perto de Maratona,
na Ática.
Em consequência dessa união, Nêmesis pôs um ovo que foi escondido num bosque sagrado, ‘a
semente guardada no seio da terra’. O ovo, encontrado por um pastor, foi
entregue a Leda. Esta o guardou num cesto
e, no tempo devido, nasceu Helena, que Leda criou como sua própria filha. A
tradição que faz de Leda mãe de Helena narra o fato de maneira análoga: para
evitar que Leda lhe escapasse, certamente também metamorfoseada em gansa, Zeus,
sob a mesma forma de cisne, fê-la pôr um ovo, de que nasceu Helena. Segundo
oura versão, eram dois ovos: de um nasceram Helena e Pólux que foram imortalizados pelo pai; do outro, Castor
e Clitemnestra, ambos ‘mortais’.
Pois bem, esta personagem mítica especial, Helena,
foi raptada, uma primeira vez, pelo
herói ateniense Teseu, que a conduziu a Afidna, na Ática e a confiou a sua mãe
Etra. Mas quando Teseu e seu amigo inseparável, Pirítoo, desceram ao Hades
(morada dos mortos),para raptar
Perséfone, deusa essencialmente da vegetação,
os Dioscuros atacaram Afidna, levando de volta sua irmã e como cativa a mãe de
Teseu, Etra, que, como já se viu, foi conduzida para Troia por Helena, quando
do seu segundo rapto por Páris.
Ora, todos os fatos acima narrados acerca do nascimento
da rainha de Esparta, sempre tendo, de um lado, por pai um deus da fecundação e
por matriz um ovo, e, de outro, as fugas constantes de ‘suas mães’, Nêmesis e
Leda e ‘seus raptos’ por Teseu e Páris,
parecem levar a uma só conclusão: Helena teria sido primitivamente uma deusa ctônia e, por conseguinte, uma deusa da vegetação , uma guardiã dos
ovos, das sementes depositadas no seio da terra. Como tal. Uma vítima destinada
ao rapto. Com o tempo, ‘a deusa Helena’ suplantada por outras divindades da vegetação
mais importantes, teria caído no esquecimento e passado à classe das heroínas,
fato comum e bem atestado na mitologia.
Na realidade, o rapto de deusas, Perséfone,
‘Helena’; de heroínas, caso de Europa, Leda ou das Sabinas... fazem parte
integrante não somente de um ritual de, mas também de um rito da vegetação,
como ainda se pode observar em culturas primitivas. Normalmente, o rapto se
consuma no outono, ‘quando trabalhos agrícolas estão terminados’, os celeiros
estão cheios e é, portanto, o momento de se pensar e preparar a próxima
colheita.
Na Grécia, no segundo ato do casamento, denominado
pompé, ‘ação de conduzir’, a noiva,
seguida de uma procissão alegre e festiva, é levada ou por arautos ou pelo
marido, da casa paterna para seu novo lar. Não podendo penetrar com seus
próprios pés na nova habitação, porque o fogo sagrado do lar ainda não fora
aceso, a noiva simula uma fuga e começa a gritar, pedindo o auxílio das
mulheres que a acompanham. O marido terá de raptá-la e com ela nos braços
atravessa a porta com todo cuidado para que os pés da esposa não toquem a
soleira.
No casamento romano, muitíssimo semelhante ao
grego, não por imitação ou sincretismo, mas pela origem comum indo-europeia dos
dois povos, repete-se o mesmo ritual. A segunda parte, denominada deductio in domum, ação de conduzir ao
lar, quando o cortejo para em frente à casa do marido, a noiva simula a fuga e,
raptada pelo marido, transpõe nos braços do mesmo a soleira.
O mundo moderno, embora tenha esquecido o valor
iniciático e a sacralidade da fertilização do ritual do rapto da esposa, ainda,
por vezes, sem o saber, o relembra. As noivas, ao menos as mais ‘dietéticas’,
têm ou ‘tinham’ o direito de ser transportadas nos braços ‘hercúleos’ do marido
para dentro do novo lar ou do quarto da primeira noite de núpcias!
Na expressão de Joseph L. Henderson, ‘O casamento
pode considerar-se um rito de iniciação em que homem e mulher têm que
submeter-se mutuamente. Em algumas sociedades, todavia, o homem compensa sua
submissão ‘raptando’ ritualmente a noiva, como fazem os dyaks da Malaia e
Bornéu. Hoje em dia existe uma reminiscência dessa prática no fato de o noivo
cruzar a soleira da porta com a noiva nos braços.’
Na realidade, como acrescenta ainda o mesmo Joseph
L. Henderson, ‘independentemente do medo neurótico de que as mães ou pais
invisíveis podem estar espreitando atrás do véu do matrimônio, até mesmo um
jovem normal pode sentir-se apreensivo com o rito matrimonial. O casamento é
essencialmente um rito de iniciação da mulher, em que o homem há de sentir-se
tudo, menos um herói conquistador. Por isso mesmo, não surpreende que se
encontrem em sociedades tribais ritos compensadores de semelhante temor como o
rapto e a violação da noiva.’”
(BRANDÃO 2002, p. 97/114)
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