sexta-feira, 11 de abril de 2014

LITERATURA BRASILEIRA - CRISTÓVÃO TEZZA

LITERATURA BRASILEIRA – CRISTÓVÃO TEZZA
        
      
   Cristóvão Tezza é basicamente um escritor paranaense embora tenha nascido em Santa Catarina, em Lajes, pois dede a infância reside em Curitiba. A capital do Paraná é o cenário da maioria de suas obras.
         Iniciou sua vida no teatro. É romancista e também doutor em Literatura Brasileira, com uma tese sobre a teoria de Mikhail Bakhtin. Trabalha como professor de Linguística na Universidade Federal do Paraná.
OBRAS:
Gran Circo das Américas, São Paulo, SP: Editora Brasiliense (1979)
A Cidade Inventada, Curitiba, PR: Coo Editora (1980) (contos)
O Terrorista Lírico, Curitiba, PR: Edições Criar (1981)
Ensaio da Paixão (1982)
Trapo, São Paulo, SP: Editora Brasiliense (1988)
Aventuras Provisórias, Porto Alegre, RS: Mercado Aberto (1989)
Juliano Pavollini, Rio de Janeiro, RJ: Editora Record (1989)
A Suavidade do Vento, Rio de Janeiro, RJ: Editora Record (1991)
O Fantasma da Infância, Rio de Janeiro, RJ: Editora Record (1994)
Uma Noite em Curitiba, Rio de Janeiro, RJ: Rocco (1995)
Tradução eslovena por Nina Kovič, Noč V Curitibi, Novo mesto: Goga (2011)
Breve Espaço entre a Cor e a Sombra (1998) - Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
O Fotógrafo ("The Photograph"), Rio de Janeiro, RJ: Rocco (2004) - Prêmio Academia Brasileira de Letras 2005
O Filho Eterno, Rio de Janeiro, RJ : Editora Record (2007)

O Professor, Editora Record – lançamento em 02 de abril de 2014.
Livro sobre o envelhecimento, recém lançado.

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 1994
Resenha Crítica
A CONSTRUÇÃO DE UM ESCRITOR
Prof. Rosse Marye Bernardi
Professora da Universidade Federal do Paraná
Em: Cristovão Tezza. Série Paranaenses, nº 5.
Curitiba: Ed. da UFPR, 1994. pp. 5-16
Eu sou um homem construído pelas histórias que escrevi.
Curitibano nascido em Lages-SC, podemos dizer que Cristovão Tezza se fez escritor por vontade, seguindo um projeto a tal ponto incorporado a sua personalidade que o próprio autor diz não conseguir imaginar a sua vida sem o ato de escrever.
Começou poeta - escreveu seu primeiro livro aos 13 anos e já nessa época, textos na mão, percorria a redação dos jornais, em busca de espaço para publicação. Os poemas do adolescente não ficaram (nem mesmo escondidos no baú da memória), mas restou a certeza do ser escritor, dado fundamental no desenvolvimento de sua personalidade. essencialmente literária.
Tezza foi um típico representante da geração dos anos 60 - uma geração que acreditava nos sonhos, desejava mudar o mundo e fazia opções por formas alternativas de vida. Em busca de caminhos, participou do Centro Capela de Artes Populares, dirigido por Wilson Rio Apa, cuja postura artística e ideológica influenciaria sua produção inicial. Em 68, integrado à comunidade, em Antomna, pequena cidade no litoral paranaense, Cristovão é oficializado como um dos autores teatrais do grupo, além dc desenvolver experiência como ator, diretor, contra-regra e iluminador. Monólogo do amanhã e Os confinados, peças de sua autoria, montadas pelo grupo, tiveram à época algum sucesso. Essa experiência teatral - propiciando a percepção da síntese, da visibilidade e domínio do diálogo - marcará para sempre a visão artística de Tezza.
Em 71, ele conclui seu primeiro romance - O papagaio que morreu de câncer. Seguem-se A televida e A máquina imprestável, todos impiedosamente destruídos. Nesta época, ainda, Cristovão escreve Sopa de legumes. uma brincadeira que carnavalizava a vida quase mitológica da comunidade - hippies, marginais, desocupados - que se agrupava sob a liderança de Rio Apa. Nesse texto, zelosa e afetivamente guardado, e cuja tônica maior era o riso, a crítica e a autocrítica, vamos encontrar o humor, marca registrada da sua narrativa. No tocante a seus personagem, Sopa de legumes é, de certa forma, a antecipação da incrível humanidade que povoará a obra madura de Cristovão Tezza.
A experiência comunitária é interrompida em dois momentos. Primeiro, em 1971. quando o canto da sereia o leva a uma frustrada tentativa de tornar-se oficial da Marinha Mercante. Já em 75, a intenção é estudar Letras em Coimbra. Como a Universidade está fechada - é a época da Revolução dos Cravos em Portugal - Cristovão se faz trabalhador clandestino na Alemanha e viaja pela Europa. A solidão o faz escrever e reescrever a maior parte dos contos de A cidade inventada.
Um ano depois, em 76, ei-lo novamente em Antonina, agora transformado em joalheiro - (a curiosidade pelos mecanismos delicados e precisos é análoga à paixão com que se debruçará, mais tarde, sobre o mecanismo das ações humanas) - dono de uma pequena joalheria de insuspeitado nome literário: "Cinco em ponto", homenagem ao poema de Lorca. Mas não consegue mais se reintegrar ao espírito da comunidade, ao seu sonho de reinventar lendas ancestrais. A literatura que ele precisa escrever não mais se enquadra nos limites do romantismo anárquico.
Já casado, parte para o Acre, onde vai ser professor de Cursinho e aluno do Curso de Letras. Ainda inseguro de seus meios expressivos, aventura-se novamente na linguagem romanesca, iniciando a escritura de Gran circo das Américas. No ano seguinte - 78 - atraca em Curitiba, matricula-se em sua velha Universidade e escreve poesias. Nesse ano tem o seu primeiro texto publicado. Trata-se de Os telhados de Coimbra, na antologia Assim escrevem os paranaenses. A essa época encanta-se com as ciências da linguagem. Na construção do artista este é um momento crucial. A vida já nutrira de aventuras e experiências a sua curiosidade e sensibilidade. Agora é a vez do conhecimento científico. Assim aprofunda teorias e conscientiza-se de técnicas antes apenas intuídas. É também o momento em que descobre que a prosa é a linguagem mais adequada à cristalização literária de sua visão de mundo. Sem medo de influências, transforma-se num devorador cada vez mais voraz de livros, ao mesmo tempo em que começa a produzir sistematicamente a sua própria literatura. Em 83, já tem publicados Gran Circo das Américas e A cidade inventada. O terrorista lírico, Ensaio da paixão e Trapo repousam na gaveta.
Apesar dos prêmios, para sobreviver, enquanto o sucesso não vem, decide-se pela vida acadêmica. Matricula-se no Curso de Pós-Graduação em Letras na UFSC. A tese, sobre a obra de Rio Apa, é a comprovação de que a arte pode conviver com a ciência, e é, ao mesmo tempo, a releitura do próprio passado. Eu acrescentaria - é também a superação do seu passado artístico.
Em 1986, contratado como Professor de Língua Portuguesa na UFPR - retorna a Curitiba. Desta vez para ficar e escrever a sua obra.

A OBRA EM CONSTRUÇÃO
Considero o ato de escrever uma aventura ética. Não posso entender nenhuma obra de arte que não tenha relação com todo o complexo sistema de valores que nos rodeiam.
A leitura atenta dos oito títulos já publicados por Cristovão Tezza surpreende uma obra que processa o adensamento dos temas e o amadurecimento dos meios expressivos de livro para livro. Para melhor evidenciar tal pressuposto, como fio condutor destes breves comentários críticos sobre sua obra, optamos pela cronologia da produção dos textos - que nem sempre corresponderá à cronologia das publicações.
Assim, A cidade inventada, que teve muitos de seus textos escritos nas andanças europeias do autor, é uma obra que sob alguns aspectos se diferencia de todas as demais. Primeiro, por ser um livro de contos - o que implica um tratamento específico da linguagem; segundo, porque o registro literário, acompanhando a atmosfera temática. privilegia o fantástico e o simbólico, a maneira de Borges, a quem aliás é dedicado Os sábios, a última e melhor parte do livro - que (fazendo a abertura de um dos seus mais frequentes temas) se debruça sobre a própria literatura.
Mas é na visão de mundo, na postura diante da civilização urbana e nos conceitos literários que mais percebemos o distanciamento entre este e os livros mais recentes. Aqui os contos funcionam como uma espécie de fragmentos organizados em torno de uma ideia central - a decadência de uma cultura desumana, com sua sofisticação vazia, sua arte degenerada, e um isolamento exacerbado que caminha para um inexorável fim. Em quase todos os textos há uma tentativa de fuga. As personagens correm por catacumbas, percorrem teatros vazios, dirigidos por estranhos guias - sempre mulheres - em busca de uma saída e uma liberdade que não se consegue encontrar.
A atmosfera e a ideologia deste livro, com sua apocalíptica visão dos aglomerados urbanos e sua implícita recusa de toda arte que não seja essencialmente popular, que não pretenda encontrar o homem enquanto arquétipo - tem tudo a ver com a experiência comunitária do jovem Cristovão na minúscula Antonina e com a sua contraface - a viagem por uma Europa ainda não refeita dos conflitos ideológicos urbanos da década de 60, e sua quase reedição na Revolução dos Cravos portuguesa. Produto de uma sensibilidade historicamente datada, implicando relações sócio-culturais específicas. a obra é a cristalização literária das revoltas e dos sonhos de um momento de uma geração. Daí a sua importância - e a força de suas ideias que tingirão ainda. de maneira desigual, outras obras - além da inegável qualidade de muitos contos (leia-se atentamente A obra, o fim, ou Memória, por exemplo), que mereceram o pertinente comentário critico de Milton José de Almeida:
Os contos de Tezza dão a impressão de ensaios para projetos mais profundos, como um músico que toca aquelas peças de praxe, que apesar de simples, mostram a qualidade do instrumentista. Esperamos que ele chegue a nos dar um concerto.(*)
Gran Circo das Américas, escrito entre 77 e 78, reflete uma alteração de postura ou pelo menos a tentativa consciente de alterar tecnicamente o tratamento dado ao assunto literário. Não mais contos, não mais fantásticas atmosferas, embora enquanto núcleo permaneça o tema do desajuste, da inadequação ao sistema. O olhar do autor-narrador, ainda desprovido dos recursos da argúcia e da ironia, despreza os personagens comuns e enfoca o ser que recusa enquadrar-se.
O circo, com toda a sua carga semântica e simbólica de aventuras, poesia e marginalização, é o espaço onde aporta o jovem Juliano para fugir à autoridade opressora do tio, velho juiz destituído de qualquer sensibilidade. É a história desta fuga, de uma perseguição sem trégua e da solidariedade da pequena troupe mambembe que Cristovão nos transmite nesta narrativa linear, bem estruturada e de fortes traços românticos, que privilegia o diálogo. Livro simples, de fácil leitura, caiu no agrado dos jovens. Esteticamente poderíamos dizer que nele o autor praticou exercícios literários, úteis para aprimorar a sua técnica, mas que pouco acrescentaram, a sua obra.
Desta fragilidade não se ressente O terrorista lírico, livro escrito em 1980 e publicado no ano seguinte. O texto, em primeira pessoa, apresenta a estrutura de um diário e é um mergulho na solidão humana e na incapacidade de relacionamento entre as pessoas, ao mesmo tempo que expõe a construção do texto, não como um mero exercício metalinguístico, mas como reflexão sobre as relações entre a vida e a arte.
Nesse livro. Cristovão já manipula com alguma segurança a distância entre a sua visão de mundo enquanto centro ideológico e a visão de mundo de um personagem narrador, no caso o terrorista Raul Vasques. E este distanciamento que permite ao leitor vislumbrar o olhar que vê outro olhar, a linguagem que comenta e refrata outra linguagem, criando a zona da ironia e do humor, porta aberta para a reflexão sobre a condição humana - que se constituirá numa das características mais importantes da obra de Tezza.
O Terrorista Lírico tem em comum com o livro anterior o tema da destruição da cidade - acontecimento totalmente inverossímil, mas que. submetido a um tratamento realista, dá ao texto uma configuração fantástica. Ainda marcado para um romantismo ideológico, o autor permite que seu personagem encontre uma saída. Destruída a cidade (símbolo de uma civilização apodrecida), Raul desce para o mar com a mulher e juntos vão reconstruir o mundo.
A esta época. Tezza produz com bastante rapidez. Em 81 já esta pronto o livro Ensaio da paixão, que inicialmente recebera o título de Devassa da paixão. Reciclando a concepção de Sopa de legumes, que não estabelecia distância entre a vida e o texto, esse novo romance é a recriação artística, ficcional, da experiência comunitária e das atividades de teatro popular que o autor viveu nas décadas de 60 e 70. Reatualizando e ritualizando a encenação da Paixão e carregando em algum momentos na linha do fantástico, o texto, à maneira do que se fazia à época em Alexandra, no Paraná, e depois em Florianópolis, dá ao mito conotações político-existenciais, pois o que se ensaiava ou encenava acaba sendo a própria vida dos participantes, simbolizando, na absurda batalha final, a luta de todos os homens contra a tirania e a opressão.
Na comunidade Tezza também encontrou, confessadamente, a matéria prima para seus personagens:
pessoas desvinculadas do sistema de produção ... marginais, hippies e desocupados em geral. Esse miolo parece que permaneceu na minha literatura como se essas pessoas reservassem o que há de melhor na espécie humana. Uma reserva de revolta.
É no Ensaio da paixão, pela sua própria marcação teatral, que vai aparecer o mais amplo painel desta humanidade, tão cara à sua visão de mundo e que estará presente em toda a sua obra. No entanto, fique claro ao leitor que as pessoas reais são apenas pontos de referência para o desenho das personagens, seres ficcionais com características sociais determinadas. Em Ensaio da paixão não temos protagonistas, mas personagens que se destacam pelas suas próprias possibilidades dramáticas como Pablo, Cisco, Toco e seu inseparável anjo, Miro, Edgar, Isaías e muitos outros. Há ainda e não poderia deixar de ser, para um autor que faz da literatura um dos seus mais constantes temas, um escritor, Antônio Donetti, que não consegue vencer os limites da própria pequenez. O texto, apesar de envolvente, dinâmico, se ressente do tamanho excessivo e ainda, a meu ver, mereceria um melhor tratamento narrativo. Mas é uma obra inegavelmente importante no universo ficcional de Tezza.
É a partir do romance Trapo, escrito em 82, que vai ocorrer o grande salto qualitativo de sua obra. E também o texto que vai abrir-lhe as portas da critica e do público: "Alguma coisa nova, realmente nova, na temática, no estilo e na criação dos personagens foi introduzida por Cristovão Tezza", saúda Wilson Martins. Na realidade, em termos formais, há aqui, nesta obra uma consciência da linguagem e um tal domínio das possibilidades da linguagem romanesca, que de repente se percebe que toda a produção anterior era o paciente preparo para este momento - provavelmente o do "concerto" de que falara o crítico Milton José de Almeida ao comentar A Cidade Inventada.
Apropriando-se de diferentes extratos da linguagem social - o do jovem poeta desajustado e o do velho professor aposentado - para citar apenas o contraponto dos discursos que constroem a narrativa, Cristovão trabalha com maestria, a alma de duas gerações antagônicas - dando a cada uma delas um grau de humanidade só alcançado pela boa literatura. Ou como observou Liliane Reales:
As vozes narrativas que conduzem o romance, a de Trapo e a do Professor Manuel - um viúvo solitário e de suspeita competência profissional a cujas mãos vão parar as caóticas páginas escritas por Trapo permitem ao autor um cativante exercício da fealdade, escrita numa linguagem oral despida de qualquer lance súbito de poesia e beleza. A emoção fica por conta das sutilezas, ou por conta do avesso.
A escritura de Cristovão Tezza sabe dar conta de muitas paixões, muitas razões e paradoxos. Nas palavras de Elisa C. de Quadros: "o velho professor passa a valorizar a vida quando espreitado pela morte do jovem". Poderíamos acrescentar - como a maioria dos homens, o Professor Manuel só vai saber de si a partir do que lhe contam os escritos de Trapo. Um bom mote para nossa própria reflexão.
Mas, se em relação à visão de mundo houve amadurecimento dos temas comuns às obras anteriores, Trapo é, no tocante à geografia romanesca. a descoberta do espaço ideal do romancista:
Cristovão Tezza escreve o romance da vida cotidiana da cidade moderna, organismo psicológico em estado de permanente fluidez, que sentimos sem poder definir (...) Estamos em Curitiba, mas a Curitiba de Cristovão Tezza não é mais a Curitiba de Dalton Trevisan.
Esta Curitiba a que o crítico se refere, tão ambígua que permite duas soberbas apreensões literárias, transcende evidentemente as simples referências espaciais, para se caracterizar como um olhar enviezado. um estado de espírito, uma atmosfera, uma maneira de ser. Em Cristovão, tudo isto condimentado por um humor tipicamente curitibano, que Wilson Martins diz ser "descontraído, cáustico e vingador". Enfim, o cenário ideal para os homens passearem os seus dramas.
O romance seguinte - Aventuras provisórias - nome definitivo para um texto que já fora provisoriamente Elogio do fracasso e Minha mãe e outras mulheres, é a consagração deste espaço, aparente paraíso de uma classe média a perseguir o conforto e a satisfação em infindáveis mudanças pelos bairros de Curitiba.
Mas Aventuras provisórias é principalmente uma bela e terrível história, suavizada por sarcástica ironia - e que faz reviver Pablo, personagem de Ensaio da paixão. Este recurso vai dar à obra como um todo, uma unidade e uma coesão prenhe de significados. Fiel a sua dolorosa humanidade, Cristovão focaliza seres inadequados, desajustados à engrenagem social, aqui colocados no limite entre o salvar-se ou o perder-se para sempre. Pablo se perde na busca da salvação - ele não consegue deter a Roda - o sistema, muito maior do que o seu sonho marginal. Depois do crime, ele pede ao amigo: "Você escreve, então? Assim já tenho outro projeto na vida: ler minha história".
E é este texto, em primeira pessoa, em que Cristovão se movimenta com extraordinária maestria, que vai iluminar as aproximações e diferenças entre os dois personagens. João, o narrador, é o indivíduo classe-média, rico, que se desencontra na vida e nas suas mulheres, sempre aquém ou além dos seus desejos, dai o fracasso íntimo, existencial - que se espelha pelo avesso na história do amigo Pablo:
Quem não veria em Pablo, o Puro, marginalizado em comunidades rurais, e dado a metafísicas contemplações, o "duplo" dum João pequeno-burguês, para quem tudo é "provisório' porque não consegue se fixar em nada, preso à mãe que execra, mas de quem não se libertou?
Entre ambos, a uni-os ainda mais em suas desesperanças a Roda, - o sistema, personagem e leitmotiv do texto, sempre presente e implacável, a vedar as saídas e esmagar todas as ilusões.
Juliano Pavollini, escrito entre 87 e 88 é o terceiro e provavelmente o mais elaborado livro da trilogia que o autor chamou "informal", referindo-se ainda aTrapo e Aventuras provisórias.
Apesar de aproximações temporais. espaciais e temáticas, encerrando uma espécie de ciclo que revisita a Curitiba dos anos 60 e 70, há nestas obras diferenças fundamentais quanto à linguagem, que bem ilustram o cuidado do autor em relação a este tópico. Partindo do pressuposto de que a "voz" de um personagem implica a sua própria substância humana e a sua própria individualidade - Cristovão tem primado pela elaboração de linguagens diferentes em cada livro, embora isto se evidencie mais claramente nas narrativas em primeira pessoa. onde o olhar que vê e conta o mundo apresenta-se marcado pelos elementos culturais e o universo de referências, evidentemente diversas de personagem para personagem.
Assim, por exemplo, a "voz" de Juliano é a "voz" da sua consciência social - somatória de todas as linguagens que constituíram a sua aprendizagem do mundo e que é comentada e refratada pelo autor de uma forma tão sutil que:
Parece que os personagens e não o autor possuem o controle do enredo. Passa-se do cacoete "proustiano" a um realismo "bukowskiano" ou a la Rubem Fonseca (o de Feliz ano novo,), como preferirem. O livro começa a ser freqüentado por palavrões e Juliano se multiplica: malandro, tímido, pervertido, inseguro, intelectual e virgem, tudo cabe na sua imagem.
Os mais diversos ingredientes romanescos cabem na escrita memorialística de Juliano. Adolescente rebelde. educado num bordel, onde se alimentara de livros de aventuras, para ele escrever é se construir enquanto verdade ou enquanto mentira desesperada maneira de estabelecer uma ponte afetiva com o outro:
A minha palavra é minha sedução - a cada capítulo estou mais próximo da liberdade, Clara tem poderes no presídio. Avanço dia-a-dia no labirinto da minha história, sempre dupla: o texto que ela lê não é este que eu escrevo. O texto que eu escrevo não é o que eu vivi, e aquele que eu vivi não é o que eu pensava, mas não importa - continuo correndo atrás de mim e esbarrando numa multidão de seres. E neles, só neles, que tenho algum esboço de medida. (Juliano Pavollini, p. 113).
Entre este velar-se e desvelar-se. o narrador vai compondo uma narrativa quase camaleônica que prende o leitor da primeira á última página e que deu à crítica a certeza de que já se está diante de um universo romanesco singular:
O leitmotiv de Cristovão Tezza é a solidão moral de seus protagonistas, seres cindidos entre a enormidade dos sonhos, maiores que toda uma vida, e a estreiteza do dia-a-dia, sucessão de trivialidades. O descompasso entre querer e poder, entre planejar e realizar ou entre pensar e dizer traduz-se em hediondas transgressões às normas éticas e sociais, a repelir os que se queriam próximos, a provocar o ódio quando se anseia por amor a trazer a guerra em lugar de paz.
Afirmações que cabem também ao último livro publicado por Tezza - A suavidade do vento, desenvolvido a partir de um projeto aprovado pela Fundação Vitae de Literatura, em 90, o que lhe valeu uma bolsa para escrevê-lo.
A obra gira em torno da implícita tese de que o indivíduo só existe a partir do olhar e da aprovação do outro ou dos outros - proposição que lembra as elocubrações machadianas de Teoria do Medalhão e O espelho e que nos diz da família de escritores a que Cristovão vai filiar-se, não como influência (pois escrever para ele é um processo de autoconhecimento) mas como aproximações estético/sociais que enformam visões de mundo afins, não idênticas.
O texto, em termos de procedimentos estruturais, expõe-se à maneira de uma peça dramática. Há um "Prólogo" em que um autor ficcional estaciona o seu velho ônibus, liberando figuras enfumaçadas que no "Primeiro Ato", no "Entretanto", e no "Segundo ato" ganham a consistência de atores dirigidos por um narrador que lhes comenta as ações e o desempenho. Finda a "peça", na última parte do texto - "Cortina", o autor reúne os "personagens atores" para que vão comentando a encenação até desaparecerem lentamente. Por trás de tudo, o verdadeiro autor Cristovão Tezza dá aos seus leitores uma bela lição do distanciamento ficcional, comentando e retratando com sofisticado humor os pontos de vista das personagens, que nada mais são do que possibilidades ou virtualidades nas suas mãos de criador.
Quanto ao drama encenado, nele temos um professor interiorano, Josilei Maria Matôzo, tímido e solitário até a patologia - e que sobrevive no seu quarto povoado de monstros, fazendo consultas aoI-Ching e lendo A paixão Segundo GH, de Clarice Lispector. Estas ações vicárias são complementadas com a lenta escritura de um livro - A suavidade do vento que, segundo sonha, irá redimi-lo e transformá-lo num outro homem. No entanto, a publicação do livro, mais uma entrevista que Matôzo (agora J. Mattoso) concede a uma revista, cheia de mentiras contadas por ele mesmo, criam uma série de equívocos que tornam impossível qualquer comunicação com os habitantes da aldeia. Súbito, ele se descobre o próprio livro e lhe vem a aguda consciência de que:
Só a negação de tudo, do livro, do nome, da matéria na revista, da diferença pode fazer com que (...) sobreviva a própria história. O sacrifício se torna inevitável e Matôzo opta por se enquadrar, por ser aquilo que esperavam dele (...).
Assim, no fechamento da amarga parábola. Matôzo renuncia a si mesmo, rendendo-se à constatação de que ele só tem existência real quando refletido no olhar do outro, que o legitima. A única saída que lhe resta, portanto, é sobreviver por caminhos destroçados.
A obra construída por Cristóvão até o presente momento já é suficiente para que o consideremos um escritor maduro, fiel a um projeto narrativo que se aprimora constantemente e que tem permitido aos leitores que viajam ao seu lado, investigar eticamente o homem - fim maior de toda literatura.
Escrevendo por prazer e necessidade, Cristóvão já tem no prelo o romance O fantasma de infância, a ser editado no segundo semestre de 94, pela Record. A obra que o autor adianta ser uma "narrativa dupla" trará de volta Juliano Pavollini, uma de suas mais belas criações. Mas acreditamos que o autor, como sua criatura, terá ainda muitas e boas "idéias na cabeça".

Curitiba, julho de 1993.

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