terça-feira, 3 de março de 2015

HOMERO E A PAIDEIA GREGA

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Na cidade de Atenas, em 2008
Homero (μηρος) é o grande responsável pela paideia que teve como resultado a magnificente sociedade grega clássica. O termo paideia emerge de πας, παιδός (pais, paidós) termo do grego clássico que significa criança. Portanto, a paideia trata da formação de um povo a partir da criança. As obras do notável aedo, que compunha seus magistrais poemas e os cantava pelas cidades da Grécia, nas reuniões noturnas que os nobres promoviam em seus palácios, foram o fundamento da educação grega até o período helênico. Na Odisseia, há um exemplo clássico de um desses saraus oferecido por Alcínoo, rei dos feáceos, em honra de δυσσεύς (Odusseus), Ulisses, em português.
A Ilíada (λιάς) e a Odisseia (δύσσεια) tornaram-se os textos práticos de aula para os alunos de toda a Grécia, como ocorreria depois com a Eneida (Aeneis) de Virgílio, entre os romanos, para o ensino do latim. Porém, esses textos não veiculavam apenas a gramática de um idioma, mas toda uma filosofia e uma específica concepção da existência. Assim, por mais de quinhentos anos, a elite grega foi educada por Homero.
Mesmo havendo quem discuta o papel de Homero como personagem histórica, resta o conjunto da abra atribuída a ele, que tem uma unidade mítica e filosófica, em si mesma.
Para Homero e os sábios de seu tempo, a literatura tem um múnus educador, como vai afirmar Aristóteles séculos depois. Tem uma função catártica, visa a melhorar o mundo e os homens.
Esses saberes (πιστήμαι) podem ser classificados de três modos: há um primeiro modo de saber que nos vem pelo estudo e pela observação, é o que se pode classificar como erudição (πολυμάθεια); há outro saber que podemos identificar como cultura (ςκεσις) que adquirimos pela reflexão e pela síntese; mas há um último e mais importante modo de conhecimento que se denomina sabedoria (σοφα), que é puro dom. Quem a tem é porque a recebeu. Não está ao alcance de ninguém. Esforço algum pode conduzir a ela.
Os não teístas acreditam que ela é dom. Os religiosos creem ser, a sabedoria, uma dádiva divina. Assim criam Homero, Sócrates e depois Platão.
O poeta português Fernando Pessoa em Nota Preliminar, anexa à sua obra “Mensagem”, afirma, sobre a condição essencial para o entendimento dos símbolos, que classificaríamos como sabedoria: “Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.”
Também o filósofo alemão Martin Heidegger, em seu texto poético-filosófico intitulado “O Caminho do Campo”, (Der Feldweg) afirma a respeito da sabedoria, concebendo-a como dom: “Esta gaia ciência é uma sageza sutil. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranquilo do outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreendem-se mutuamente. Tudo, porém, se insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro lado. A serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da existência.”[1]
Homero, visitado por essa sabedoria insondável, tece, em sua “Ilíada”, os versos primorosos, que apresento mais adiante. O poeta grego, em sua apreensão do modus organizandi universal, narra a intervenção das divindades sobre as ações humanas. Aquiles, perdera seu grande amigo Pátroclo, morto, em combate, por Heitor, filho de Príamo, rei de Troia. Há mesmo quem veja traços de homoafetividade masculina na extremada amizade que ligava Aquiles e Pátroclo.
Seja como for, Aquiles vingou o amigo, enfrentando e abatendo Heitor, comandante das tropas troianas, num memorável combate singular, descrito magistralmente por Homero.
Ocorre que os heróis, no mito grego, deveriam estar muito acima da condição humana, de tal forma que, os homens, em os imitando, chegassem ao máximo permitido à nossa natureza, porém jamais atingindo a perfeição, própria dos sublimes heróis, que participavam da natureza divina.
Aquiles atrelara o corpo do príncipe inimigo à sua biga, fizera inúmeras manobras, arrastando-o, primeiramene em torno das muralhas da cidsde, e, posteriormente ao redor da sepultura de Pátroclo, durante o cerimonial de exéquias do amigo. Enquanto isso ocorria, Príamo, a corte troiana  e toda a população presenciavam a humilhação de seu general, impotentes e abatidos.
Prostra-se o idoso diante do inimigo e oscula-lhe as mãos, suplicante pelo cadáver do malfadado filho. Vejam-se os versos do magnífico Homero, que narram a cena mais consternadora da tragédia:
“[...] Respeita os numes;
Por teu bom pai, de um velho te apiades:
Mais infeliz do que ele, estou fazendo
O que nunca mortal fez sobre a terra:
Esta mão beijo que matou meus filhos.”
Príamo solicitando a Aquiles o cadáver de Heitor - Vernant

O humilhado rei pede ao vencedor que, por respeito às divindades, depois pela honra de Peleu, falecido pai de Aquiles, lhe entregue o corpo morto de Heitor amado. Vejam-se os termos como que o faz: “O que nunca mortal fez sobre a terra...”, isto é, o cúmulo da humilhação humana. E prossegue: “Esta mão beijo que matou meus filhos.” Pode haver dramaticidade mais vigorosa do que esta? Este, a meu ver, é o ápice do drama da Ilíada. A imagem de um pai, velho, octogenário já, despido de toda a vaidade e orgulho pessoais, prostrado diante do algoz de seus filhos, suplicando apenas os restos mortais daquele que ele havia gerado, agora morto em combate e desonrado, é a cena mais trágica de toda a literatura grega, quiçá de toda a literatura universal.
Trata-se do sentido pleno na tragédia. Príamo é o rei. Heitor, seu filho general. Representam Troia. A humilhação deles é a tragédia do povo troiano que está prestes a cair em irreparável desgraça. Afirma o pintor Jean-Pierre Vernant, autor da tela acima: Do corpo efêmero à glória imorredora.

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