No centro de Praga |
"Sinto um certo embaraço ao começar a escrever como se pusesse minha alma a nu, por ordem — não, Deus do céu!, digamos por
sugestão — de um judeu alemão (ou austríaco, mas dá no mesmo).
Quem sou? Talvez seja mais útil me interrogar sobre minhas paixões
do que sobre os fatos da minha vida." (Umberto Eco - O Cemitério de Praga).
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
O Cemitério judeu de Praga envolve uma história particular e
inusitada. A visão de todas aquelas lápides, sem sepultura, postas umas ao lado
das outras, naquele campo santo, causam estranheza. O visitante logo se
interroga da razão daquilo. Não se deve esquecer que este cemitério emprestou seu nome à famosa obra de Umberto Eco.
Pensa-se em uma reforma. No resgate de sepulturas de outros
locais. O simples olhar pelos arredores não oferece nenhuma resposta. Somente
uma investigação histórica traz uma explicação plausível, para aquelas cenas
insólitas.
Primeiramente, vou abordar o cemitério atual da capital da República
Checa, a maravilhosa Praga, a Paris do Leste, com seus prédios coloridos em
oposição ao tom cinza da cidade luz. Depois, farei uma explanação da história
que levou à atual situação do cemitério.
Situa-se, o cemitério de Praga, no Josefov, o conhecido
bairro judeu da cidade, onde se encontra o mais antigo cemitério judaico do
mundo.
No século X, migrantes judeus começaram a se estabelecer na
bela cidade do leste. Porém, após o primeiro pogrom, ou seja, o primeiro ataque
em massa, simultaneamente, a pessoas, casas, negócios e centros religiosos, o
povo judeu concentrou-se num único bairro da cidade de Praga, com a evidente
intenção de autoproteger-se.
Esse bairro passou a abrigar também o cemitério particular
do povo judeu. Como, em curto tempo, o espaço do campo santo esgotou-se, a
solução foi remover as lápides, para que uma nova camada de terra encobrisse os
antigos túmulos e o espaço ficasse disponível para novas sepulturas.
Assim, sucessivas camadas foram sendo sobrepostas umas às
outras de tal forma que o pequeno espaço abriga em torno de doze mil sepultos. Segundo
se crê, há doze camadas sobrepostas nesse insólito cemitério. Desse modo,
permanecendo todas as lápides na superfície, essas encontram-se quase
amontoadas.
Cemitério de Praga |
Hoje, para a visita, paga-se uma taxa que inclui também a
visita a algumas sinagogas locais. Existe um itinerário prefixado para as
visitas, para que, sendo o espaço muito exíguo e muitos os visitantes, seja
mais rápida a participação de cada indivíduo e não sejam quase possíveis as
fotografias.
Mas, vista a história particular e peculiar do cemitério da
capital checa, voltemos a uma recuperação da história do povo judeu, que
conduziu à situação das grandes perseguições, cuja culminância foi o holocausto
nazista do século passado.
Os judeus sofreram diversos
processos de diáspora (dispersão) por sucessivas vezes, através da história. A
primeira diáspora de que se tem notícia, ter-se-ia dado no governo de Nabucodonosor,
rei da Babilônia, no ano 587 a. C., em que grandes levas de judeus foram
deportados para a Mesopotâmia e escravizados pelos caldeus.
Depois, durante o primeiro período de grande instabilidade do
Império Romano, que culminou com o governo de Nero, sob a acusação de rebeldia,
o general Vespasiano cercou Jerusalém pelo longo período de dez anos. Depois da
morte do imperador Augusto, a famosa “pax augustiana” principia a desgastar-se.
Tibério, o controvertido enteado do imperador, fez um
governo cruel e ao mesmo tempo displicente: o imperador afastou-se de Roma, em
seu longo exílio na ilha de Capri, de 26 a 37 d. C., por aversão ao cargo e por
temor ao assassinato. Estabeleceu seu ministro Sejano como mandante de Roma em
seu nome. Esse distanciamento favoreceu as injustiças e a corrupção e colaborou
para o enfraquecimento do poder romano sobre as províncias.
Com a posterior desastrosa administração de Calígula, o
tendencioso governo do epilético Cláudio e a criminosa administração de Nero, a
derrocada parecia próxima. Isso favoreceu a revoltas como a da Judéia. Foram
dez anos de cerco cruel, especialmente narrados por Flávio Josefo, historiador judeu-romano
dessa época.
Pois, no período final do cerco, nos anos 69 e 70 d. C.,
foram assassinados nada menos do que quatro imperadores. Primeiramente Nero, a
seguir Galba, Otão e Vitélio foram assassinados ou obrigados a suicidar-se,
como querem alguns historiadores.
Foi então que o general Vespasiano, apoiado pelas tropas com
sede no Egito, seguido por todas as tropas do oriente, deixou seu filho Tito
para concluir a destruição de Jerusalém e restabeleceu a ordem no Império,
tornando-se o primeiro imperador da dinastia dos Flavianos, encerrando a
dinastia das famílias Júlio-Claudianas.
Lápides do cemitério de Praga |
Nos primeiros séculos da era cristã, ainda com a germânia
sob o domínio romano, chegaram os primeiros judeus à região onde hoje se situa
a Alemanha. Mesmo antes de se formarem comunidades alemãs, os judeus já
formavam um povo nessas regiões, especialmente nas cidades do Reno e do
Danúbio. Dedicavam-se ao comércio, ao artesanato, à medicina e ao estudo do
Talmude.
A partir do século XI, começaram a surgir comunidades judaicas
conhecidas como judiarias, na região da Alemanha. Porém, já a partir dos
concílios de Elvira, cidade da Hispania Romana, em 306 d. C., e Arles na Gália,
atual França, em 314 d. C., iniciaram-se as edições de um conjunto de normas
disciplinatórias em relação à conduta dos povos cristãos.
Essas normas regulamentavam, de modo mais específico, as
relações entre cristãos e não cristãos. Entre os não cristãos, três tipos de
cidadãos eram especialmente marcados: os politeístas, que recebiam a classificação
de, os judeus e os hereges, ou seja, os que não possuíssem crença divindade ou
religião alguma.
A primeira proibição aí estabelecida era o casamento entre
cristãos e não cristãos. Quem não obedecesse a essa norma era considerado
impuro, portanto, interditado à comunhão, e excluído da salvação eterna.
Acusavam os judeus pela crucificação de Jesus Cristo, embora
os próprios evangelhos afirmem que essa fora obra dos romanos. Isso consistia
num absurdo de fundo excludente e racista, pois, se, levada às últimas
consequências, essa condenação atingiria os apóstolos, não esquecendo que mesmo
Cristo era judeu.
Veja-se esta norma absurda do Concílio de Elvira: “Se algum
clérigo ou batizado come com judeus, concordou-se que se abstenha da comunhão,
para que se emende (ut debeat emendari )” ( Concílio de Elvira , c. 50).
Esse separatismo entre cristãos e judeus se foi agravando de
tal maneira que, a partir do século XIV, os judeus começaram a em comunidades
isoladas. Já no século XI, o antissemitismo principia a agravar-se na Alemanha,
provindo da França, pois o concílio de Clermont (1095), convocado pelo Papa
Urbano II, estabelece a primeira cruzada para a libertação da Terra Santa.
O lema das cruzadas consistia no seguinte: Quem matar um judeu
obterá perdão de todos os pecados. Assim, quem não queria ou não podia participar
das cruzadas, atacava os judeus locais.
Há crônicas judaicas dessa época que relatam massacres nas
regiões de Speyer, Worms, Mainz, Trier e Köln. Por toda a Europa, havia um
sentimento de inveja relativamente à boa situação financeira dos Judeus. Sucederam-se
os pogroms em vários países. Alguns bispos, no entanto, por interesses
econômicos, tentaram ajudar os judeus. Alguns judeus, para evitar as
perseguições, passaram a receber o batismo. Esses ficaram conhecidos como
cristãos novos.
Em 1146, depois da segunda cruzada, diminuíram as
perseguições e massacres, mas aumentaram as multas aos membros judeus das
comunidades. A seguir, criou-se o sagrado tribunal da inquisição, que condenou
milhares de judeus à morte. Instituíram-se os ignominiosos autos de fé, em que
os acusados, depois de humilhados e torturados pelas ruas da cidade, eram
queimados vivos em locais públicos.
A inquisição não perseguia exclusivamente os judeus, mas
eles foram o alvo mais importante de sua ação e tribunais. Acontecia também
que, muitos cristãos novos, mesmo convertidos ao cristianismo, acabaram
condenados pelos sacros tribunais.
Quando surgiu a peste negra, entre 1348 e 49, foram
novamente os judeus acusados de serem os responsáveis por ela. Foram eles
também acusados de envenenamento de poços. Por isso, algumas aldeias judaicas
foram incendiadas e seus cemitérios destruídos.
Todavia, no século XVI, com o surgimento do luteranismo,
houve um afrouxamento nas medidas antissemitas. Assim, no século XVII, alguns
abastados judeus portugueses estabeleceram-se em Hamburgo, com alguns poderosos
estabelecimentos bancários, cujas filiais se estabeleceram em outros países,
até mesmo na América.
Porém, a grande maioria dos judeus do leste europeu ainda
vivia em guetos, regidos pelas leis religiosas dos rabinos. Porém, eles tinham
acesso à escola e, especialmente, à alfabetização, o que lhes proporcionava
maior desenvolvimento econômico em relação a outros povos. Muitos judeus dessa
região falavam ídiche, um dialeto formado do alemão, do hebraico e de línguas
eslavas.
Com a ascensão da burguesia, houve a possibilidade de
emancipação dos judeus, porém sob um alto preço, ou seja, sob a exigência do
abandono de sua religião e crenças.
Vieram, então, os racismos, especialmente na Europa. Muitos
teóricos estabeleciam critérios para a classificação das raças entre superiores
e inferiores. Um dos maiores teóricos da supremacia de certas raças, de modo
especial a raça ariana, é o sociólogo francês Joseph Arthur de Gobineau. Outro
conceituado racista europeu foi o pensador inglês Houston Stewart Chamberlain,
cujo pensamento serviu de suporte para Hitler e Goebels.
Esse racismo europeu teve como consequências as barbaridades
praticadas contra o povo judeu durante o segundo grande conflito mundial, que,
por demasiadamente conhecido, abstenho-me de descrever no presente texto. Creio
que esta breve explanação seja suficiente para se entender a realidade que teve
como resultado a construção do inusitado cemitério juddeu da cidade de Paga.
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