domingo, 26 de julho de 2015

LITERATURA FRANCESA – OS MISERÁVEIS – VICTOR HUGO – EXPLANAÇÃO E ANÁLISE



Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Hoje pela manhã, um lindo domingo, minha esposa convidou-me para assistir na TV a uma versão se “Os Miseráveis” de Victor Hugo, já filmada há alguns anos. Foi uma experiência muito agradável, pois além das encantadoras paisagens da eterna Paris, que há mais de um ano não visito, e da incomparável companhia, tive oportunidade de relembrar a história política, econômica, sociológica e filosófica da França do século XIX, pós-Revolução Francesa, numa despótica disputa entre monarquistas e republicanos, em que, como em toda parte, o pior quinhão sobra sempre para os pobres: “Os Miseráveis”.
O magistral narrador elabora um entrecho sociológico que envolve o miserável cidadão Jean Valjean. Vivendo, o jovem trabalhador, na mais absoluta pobreza, órfão de pai e mãe, necessitando sustentar a irmã viúva, que tem sete filhos menores, perde o emprego. No desespero diante da fome dos seus, rouba um pão. Esse crime vale-lhe a condenação às galés, primeiramente durante cinco anos. Porém, por sucessivas fugas, esses trabalhos forçados a que é submetido prolongam-se por 19 anos.
Essa condição desumaniza-o completamente. Chega à conclusão de que o pequeno delito que cometera transformara-se em crime do estado contra ele. Foge da prisão. Escorraçado de todos os lugares, é acolhido pelo bispo Don Bienvenu. Porém, à noite, foge roubando uma baixela valiosa. Preso novamente, é defendido pelo bondoso prelado, que afirma ter-lhe dado o precioso roubo. Mais ainda, o humanitário religioso acrescenta ao fruto do roubo dois castiçais de altíssimo valor, afirmando que desafortunado os havia esquecido.
Victor Hugo
Isso permitiu ao desvalido estabelecer-se e enriquecer, trocando de identidade. Conhece, então, Fantine uma desafortunada jovem, que por ser mãe solteira e desempregada, fora forçada a prostituir-se para manter a filha Cosette numa hospedaria, cujos proprietários, o casal Thénardier, exploravam a criança, forçando-a a trabalhos caseiros.
Tamanha é a miséria de Fantine que, embora tuberculosa, é presa pelo crime de prevaricação pelo agente policial Javert, que Valjean conhecera nas galés, na função de guarda. Esse era um legalista desumano que estava também no encalce do antigo prisioneiro das galés. Não podendo salvar Fantine da morte, promete-lhe Valjean resgatar e tomar conta do destino da menina Cosette.
Enriqueceu tanto e chegou a tamanho prestígio que se tornou prefeito de sua cidade. Porém, certo dia, Valjean assiste a um julgamento em que um miserável inocente está prestes a ser condenado, com falsas testemunhas, ao crime de fuga pelo qual era ele próprio procurado. Torturado pelas próprias memórias da prisão, Valjean confessa-se como verdadeiro criminoso.
Salvando Cosette da terrível exploração, passa a viver escondido, até a juventude da menina. Interna-a num convento de freiras. Quando ela lhe confessa não sentir vocação religiosa, leva-a consigo até o momento em que ela se enamora de um revolucionário, Marius, cuja vida o ex-presidiário salva sem que o jovem tenha conhecimento disso. Os jovens casam-se, continuando Valjean, sempre fugindo da justiça. Quando os jovens encontram novamente o antigo prisioneiro, depois de terem descoberto todo o seu esforço na salvação do jovem marido de Cosette, ele está morrendo.
A história de Victor Hugo desenvolve-se no período histórico entre a batalha de Waterloo, em que Napoleão I foi derrotado, segue com o início da República Francesa, e conclui-se com o retorno ao império, no cruel governo de Napoleão III, marcado por um judiciário corrupto e uma elite privilegiada, inconsequente e exploradora.
Houve uma profunda desilusão com a grande Revolução Francesa de 89, cujo resultado prático foi a destituição da antiga elite, a nobreza, e a tomada do poder pela burguesia, tão exploradora quanto a classe anterior. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade acabaram, em poucos anos, no império dos Napoleões.
As guerras, o consequente endividamento do erário público para com banqueiros como os Rothschilds, trouxeram um mundo de miséria sem comparação. É nesse cenário que acontecem os dramas pessoais de Valjean injustiçado pelos tribunais e perseguido até a morte por um sistema policial cruel e corrupto. Também a tragédia de Fantine, explorada até a morte por um jovem rico, que jamais se aplicou a nenhuma atividade útil, vivendo das riquezas da família e sem nenhuma sensibilidade para com a miséria das classes desfavorecidas e exploradas.
Toda uma multidão de miseráveis vive no total desamparo financeiro, judicial e moral, provocado por uma ordem social que condena os pobres a penas exageradas por pequenos crimes que são efeitos do próprio sistema exploratório a que sobrevivem. A miséria não é um processo natural, mas é fruto da própria organização social.
O desastrado governo das cortes predatórias, megalomaníacas e criminosas que culminou em Luís XVI, sua deposição e execução, a malfadada Revolução, e o estado de desordem e miséria que se seguiram começam por amainar o patriotismo romântico, gerando uma multidão de miseráveis e infelizes, em cujo seio ainda subsistem a bondade e o amor, mas que os exploradores não permitem, por uma ação injusta, que sobrevivam. Todos os heróis da obra acabam morrendo na desgraça.
O próprio Victor Hugo acaba exilado na Bélgica, justamente no país em que Napoleão sofreu sua derrota derradeira. Quando Napoleão III oferece-lhe a anistia, responde que somente retornaria à pátria quando houvesse liberdade. “Quando a liberdade voltar, eu voltarei também,” afirma.
A obra denuncia os horrores a que as pretensas reformas sociais conduziram. Como se trata de uma obra extensamente grande, com quase duas mil páginas, o autor consegue desenvolver desde o caráter detalhado dos indivíduos, passado pelos combates e evoluções das atividades militares, tendo ocasião de descrever minuciosamente a França desses tempos, desde a opulência dos ricos palácios de Paris, até a miséria dos subúrbios pobres e a realidade das pequenas cidades e vilarejos do interior.
A sociedade europeia inicia o processo de industrialização, sem regras nem proteção alguma aos desfavorecidos. Mostrou Hugo ao mundo o espetáculo da miséria, sem filtros nem véus como o do jovem pobre condenado às galés, sofrendo toda a sorte de torturas e injustiças; a prostituta pobre, esfarrapada, doente e desdentada; o combatente idealista e ingênuo e tantíssimas outras situações que somente uma acurada leitura de suas páginas permite.
Suas denúncias estimularam o surgimento de uma política de solidariedade para com os deserdados da sorte e esquecidos das elites administrativas, muito mais preocupadas com seus pequenos prazeres e caprichos pessoais, nem que para isso muitos tenham de viver em completa desgraça. A partir das páginas de Hugo, passou-se a descobrir os miseráveis da vida real. O drama dos miseráveis da vida, superando os moldes românticos da literatura, continua estimulando e gerando instigantes peças cinematográficas.

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