Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Hoje
pela manhã, um lindo domingo, minha esposa convidou-me para assistir na TV a uma
versão se “Os Miseráveis” de Victor Hugo, já filmada há alguns anos. Foi uma
experiência muito agradável, pois além das encantadoras paisagens da eterna
Paris, que há mais de um ano não visito, e da incomparável companhia, tive
oportunidade de relembrar a história política, econômica, sociológica e filosófica
da França do século XIX, pós-Revolução Francesa, numa despótica disputa entre
monarquistas e republicanos, em que, como em toda parte, o pior quinhão sobra
sempre para os pobres: “Os Miseráveis”.
O magistral narrador elabora um
entrecho sociológico que envolve o miserável cidadão Jean Valjean. Vivendo, o jovem trabalhador, na
mais absoluta pobreza, órfão de pai e mãe, necessitando sustentar a irmã viúva,
que tem sete filhos menores, perde o emprego. No desespero diante da fome dos
seus, rouba um pão. Esse crime vale-lhe a condenação às galés,
primeiramente durante cinco anos. Porém, por sucessivas fugas, esses trabalhos
forçados a que é submetido prolongam-se por 19 anos.
Essa condição desumaniza-o
completamente. Chega à conclusão de que o pequeno delito que cometera transformara-se
em crime do estado contra ele. Foge da prisão. Escorraçado de todos os lugares,
é acolhido pelo bispo Don Bienvenu. Porém, à noite, foge roubando uma baixela
valiosa. Preso novamente, é defendido pelo bondoso prelado, que
afirma ter-lhe dado o precioso roubo. Mais ainda, o humanitário religioso acrescenta
ao fruto do roubo dois castiçais de altíssimo valor, afirmando que desafortunado os havia
esquecido.
Victor Hugo |
Isso permitiu ao desvalido
estabelecer-se e enriquecer, trocando de identidade. Conhece, então, Fantine uma
desafortunada jovem, que por ser mãe solteira e desempregada, fora forçada a
prostituir-se para manter a filha Cosette numa hospedaria, cujos proprietários,
o casal Thénardier, exploravam a criança, forçando-a a trabalhos caseiros.
Tamanha é a miséria de Fantine
que, embora tuberculosa, é presa pelo crime de prevaricação pelo agente
policial Javert, que Valjean conhecera nas galés, na função de guarda. Esse era
um legalista desumano que estava também no encalce do antigo prisioneiro das
galés. Não podendo salvar Fantine da morte, promete-lhe Valjean resgatar e
tomar conta do destino da menina Cosette.
Enriqueceu tanto e chegou a tamanho prestígio que se tornou prefeito de sua cidade. Porém, certo dia, Valjean assiste a um julgamento em que um miserável
inocente está prestes a ser condenado, com falsas testemunhas, ao crime de fuga
pelo qual era ele próprio procurado. Torturado pelas próprias memórias da
prisão, Valjean confessa-se como verdadeiro criminoso.
Salvando Cosette da terrível
exploração, passa a viver escondido, até a juventude da menina. Interna-a num
convento de freiras. Quando ela lhe confessa não sentir vocação religiosa,
leva-a consigo até o momento em que ela se enamora de um revolucionário, Marius,
cuja vida o ex-presidiário salva sem que o jovem tenha conhecimento disso. Os
jovens casam-se, continuando Valjean, sempre fugindo da justiça. Quando os jovens
encontram novamente o antigo prisioneiro, depois de terem descoberto todo o seu
esforço na salvação do jovem marido de Cosette, ele está morrendo.
A história de Victor Hugo
desenvolve-se no período histórico entre a batalha de Waterloo, em que Napoleão I foi derrotado, segue
com o início da República Francesa, e conclui-se com o retorno ao império, no
cruel governo de Napoleão III, marcado por um judiciário corrupto e uma elite
privilegiada, inconsequente e exploradora.
Houve uma profunda desilusão
com a grande Revolução Francesa de 89, cujo resultado prático foi a destituição
da antiga elite, a nobreza, e a tomada do poder pela burguesia, tão exploradora
quanto a classe anterior. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade
acabaram, em poucos anos, no império dos Napoleões.
As guerras, o consequente
endividamento do erário público para com banqueiros como os Rothschilds,
trouxeram um mundo de miséria sem comparação. É nesse cenário que acontecem os
dramas pessoais de Valjean injustiçado pelos tribunais e perseguido até a morte
por um sistema policial cruel e corrupto. Também a tragédia de Fantine,
explorada até a morte por um jovem rico, que jamais se aplicou a nenhuma
atividade útil, vivendo das riquezas da família e sem nenhuma sensibilidade
para com a miséria das classes desfavorecidas e exploradas.
Toda uma multidão de miseráveis vive
no total desamparo financeiro, judicial e moral, provocado por uma ordem social
que condena os pobres a penas exageradas por pequenos crimes que são efeitos do
próprio sistema exploratório a que sobrevivem. A miséria não é um processo
natural, mas é fruto da própria organização social.
O desastrado governo das cortes
predatórias, megalomaníacas e criminosas que culminou em Luís XVI, sua
deposição e execução, a malfadada Revolução, e o estado de desordem e miséria
que se seguiram começam por amainar o patriotismo romântico, gerando uma
multidão de miseráveis e infelizes, em cujo seio ainda subsistem a bondade e o
amor, mas que os exploradores não permitem, por uma ação injusta, que
sobrevivam. Todos os heróis da obra acabam morrendo na desgraça.
O próprio Victor Hugo acaba
exilado na Bélgica, justamente no país em que Napoleão sofreu sua derrota
derradeira. Quando Napoleão III oferece-lhe a anistia, responde que somente
retornaria à pátria quando houvesse liberdade. “Quando a liberdade voltar, eu
voltarei também,” afirma.
A obra denuncia os horrores a
que as pretensas reformas sociais conduziram. Como se trata de uma obra
extensamente grande, com quase duas mil páginas, o autor consegue desenvolver
desde o caráter detalhado dos indivíduos, passado pelos combates e evoluções
das atividades militares, tendo ocasião de descrever minuciosamente a França
desses tempos, desde a opulência dos ricos palácios de Paris, até a miséria dos
subúrbios pobres e a realidade das pequenas cidades e vilarejos do interior.
A sociedade europeia inicia o
processo de industrialização, sem regras nem proteção alguma aos
desfavorecidos. Mostrou Hugo ao mundo o espetáculo da miséria, sem filtros nem véus
como o do jovem pobre condenado às galés, sofrendo toda a sorte de torturas e
injustiças; a prostituta pobre, esfarrapada, doente e desdentada; o combatente
idealista e ingênuo e tantíssimas outras situações que somente uma acurada
leitura de suas páginas permite.
Suas denúncias estimularam o
surgimento de uma política de solidariedade para com os deserdados da sorte e
esquecidos das elites administrativas, muito mais preocupadas com seus pequenos
prazeres e caprichos pessoais, nem que para isso muitos tenham de viver em
completa desgraça. A partir das páginas de Hugo, passou-se a descobrir os
miseráveis da vida real. O drama dos miseráveis da vida, superando os moldes
românticos da literatura, continua estimulando e gerando instigantes peças
cinematográficas.
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