Desde há
trinta mil anos, na Era Paleolítica, portanto, o sistema de organização da
sociedade humana era matriarcal, quase em sua totalidade. Isto é, a administração dos povos se dava pelo poder da mulher. A divindade era feita
à imagem da mulher. Assim também a realeza era feminina e a própria transmissão
do poder se dava pela via materna. O Deus patriarcal, único e onipotente, é
relativamente jovem: estima-se que o patriarcado mais antigo tenha surgido há
mais ou menos sete mil anos.
Marija
Gimbutas, arqueóloga lituana que dedicou-se essencialmente a descobrir e
catalogar imagens da grande Deusa, da deusa mãe, reuniu um acervo
impressionante que mostra o culto à fertilidade ao longo de diversas eras. O
homem, masculino, prosternava-se diante da mulher, admirando e invejando sua
capacidade de reproduzir, considerada uma função divinal.
Segundo a
versão de muitas autoras e autores estudiosos do assunto, a mulher,
principalmente pela sua capacidade de gestar e pelo mistério da menstruação,
por suas qualidades lunares e cíclicas, sua capacidade de trazer melhorias em
prol da sobrevivência de seus rebentos foram sempre vistos como uma
manifestação da Divindade.
As próprias
atividades femininas como a arte da tecelagem, a arte cerâmica, a agricultura e
a irrigação eram mais delicadas. Não se pode esquecer que o macho da espécie
dedicava-se mais à caça e à guerra, cujas conquistas traziam grandes riquezas
para a comunidade, quando bem sucedidas. Porém, muitas vezes traziam também a
desgraça e a destruição.
Quando se
afirma que a agricultura era uma atividade feminina, não se pode conceber o
cultivo da terra nos moldes de hoje, com áreas enormes cultivadas. A
agricultura desses tempos primevos reduzia-se a pequenos canteiros ao redor da
residência com hortaliças e plantas medicinais, acrescida, nos povos mais
desenvolvidos, de alguns tubérculos como cebolas, batatas e algumas outras raízes
comestíveis. Acrescente-se a isso, em algumas comunidades, alguns animais
domésticos, como galinhas e às vezes, alguma cabra ou ovelha de leite. Os
animais maiores, como gado e cavalos são acréscimos de eras bem mais avançadas.
Nesses
tempos, abrangendo essas culturas, a Sacerdotisa ou curandeira era o centro da
comunidade – ela podia ter bens, realizar transações e contatos com outras
tribos e os filhos recebiam herança e nome da família da mãe. Assim,
gradativamente se foi transformando em rainha.
Ísis com Hórus ao colo |
Esse apego à
terra, sentimento telúrico, que envolvia um local, as residências, um curso de
águas foi evoluindo para o culto da Grande Mãe, que entre os gregos era Gaia, a
própria terra mãe e suas transformações como Deméter, a terra cultivada. A
terra mãe recebia, gerava e alimentava todos os viventes e mesmo acolhia as
cinzas de todos os mortos em seu seio.
Segundo Karl
Gustav Jung, em seus tratados do inconsciente e do processo de simbolização, a
experiência de uma Mãe Sagrada provedora, vai inserir-se no simbolismo
primitivo como primeiro grande componente do inconsciente coletivo. Todos os
demais se lhe irão seguindo, como Dionísio Zagreu, a imagem de toda criança,
originando-se os mitologemas, ou sejam, as imagens únicas e perfeitas de cada
tipo, ao modo platônico de formação da mente.
Abrigados nesse
mesmo processo, os primitivos egípcios cultuavam a Grande Isis, a deusa alada
do Nilo. Seu nome, em grego antigo era Ἶσις. Significa "nasci de mim mesma, não provenho de
ninguém", "dona do trono" ou "deusa da fertilidade e do
amor maternal". Os primeiros registros escritos acerca de sua adoração
surgem pouco depois de 2500 a. C., durante a V dinastia egípcia. Era mãe
de Hórus. Na genealogia dos deuses egípcios, foi a primeira filha de Geb,
o deus da Terra, e de Nut, a deusa do Firmamento, e teria nascido no
quarto dia intercalar, que era o quarto dia do quarto crescente.
Ísis |
Isis desposou
seu irmão Osíris. É cultuada como mãe e esposa ideais, protetora da natureza
e inspiradora da magia. É a amiga dos escravos, pescadores, artesãos,
oprimidos, porém, por outro lado, escutava as preces dos opulentos, das
donzelas, aristocratas e governantes. É a Grande Mãe, deusa da
maternidade e da fertilidade.
Certa
ocasião, Osíris foi assassinado por seu irmão Seth, divindade egípcia da
violência, da traição, do ciúme, da inveja, do deserto, da guerra, da
escuridão, das tempestades, dos animais, de modo especial das serpentes. Seth era encarnação do
espírito do mal e irmão de Osíris. Seth era marido e irmão da deusa Néftis. Segundo
antiga tradição, Seth teria rasgado o ventre de sua mãe Nut com as
próprias garras para nascer.
No reino de Osíris,
embora ele envidasse todos os esforços para criar um ambiente de paz, sempre
havia insatisfação, entre os homens seus protegidos e mesmo entre os deuses,
seus comandados. Seu irmão Seth não perdia ocasião para criar discórdia e rejeição
aos atos do irmão. Jamais se conformara Seth em ser apenas a divindade do seco
deserto que cerca a reino de Osíris.
Sabendo que
Osíris havia organizado uma grande expedição civilizatória, preparou uma conspiração. No dia da partida,
Seth, que também havia recebido convite do irmão para tomar parte do evento,
enviou mentirosas escusas e permaneceu no Egito. No período da expedição, Seth
organizou armadilhas para o irmão em todo o território egípcio. Recrutou
setenta e dois dos piores conspiradores muitos dos quais entre os próprios
deuses.
Quando Osíris
retornou, recebeu um convite de Seth para comemorar com ele o sucesso da
expedição. Foi recebido no reino do deserto com falsas alegrias. Convidou,
então, Seth o irmão para repousar da viagem, cerrando ele próprio as cortinas
do leito dele.
No dia
seguinte, preparou um banquete, cedendo ao irmão a cabeceira de honra.
Sentou-se à sua direita e distribuiu os setenta e dois conspiradores entre os
demais convivas. Osíris agradeceu a deferência e narrou, durante o banquete, as
façanhas de sua exitosa expedição. Antes que o irmão concluísse deu discurso,
Seth pediu licença e introduziu no recinto uma grande arca, com o formato de
ataúde.
Feito do mais
puro sândalo resistente e aromático, todo cravejado das mais ricas pedrarias,
cujo tampo levava esculpida a imagem do escaravelho sagrado a erguer do
horizonte o disco solar, sob a forma do olho místico do deus Rá esse sarcófago encantou a todos os visitantes. Acontece que,
enquanto Osíris repousava, Seth entrara sorrateiramente em seus aposentos e
tirara as medidas do corpo do irmão.
Ao
interromper o discurso do irmão com a introdução da preciosa arca, deixou todos
em suspense: Qual seria o significado do alaúde no banquete? Seth esclareceu o
enigma afirmando que o sarcófago pertenceria àquele que tivesse as medidas
exatas de seu interior passaria a usá-lo para todo sempre. Deu a suas últimas
palavras um tom de indisfarçada ironia. Inocentemente, Osíris não percebeu a
farsa. E, assim, passaram a tirar as medidas de todos os participantes, colocando-os mesmo no interior da urna. Osíris foi deixado para o último lugar. E procedeu-se o experimento como uma
brincadeira. Todos os que entravam na arca, ora eram grandes demais, ora
demasiado gordos, outros tantos pequenos demais.
Por fim,
restava apenas Osíris, cujas medidas do corpo adaptaram-se perfeitamente ao
ataúde. Seth conclamou a todos para confirmarem o fato. Sem que Osíris tivesse
tempo de reagir, Seth ordenou que o sarcófago fosse trancado. Pregou-se, então
a tampa do caixão. Osíris, fez com que seu espírito se libertasse e abandonasse
aquele ambiente aterrador. Embora liberta, a alma de Osíris ainda deveria vagar
sem destino, por longos anos, até receber o benefício da mumificação, única
possibilidade de poder rumar para a Mansão dos Mortos e tornar-se ali o
soberano absoluto. Assim, Osíris, traído por Seth, é morto e esquartejado por
esta divindade que é associada à essência do mal.
Ísis,
desesperada, procurou e conseguiu reunir todas as partes do corpo que tinham
sido despedaçadas e espalhadas por todo o Egito por Seth e, por meio de suas
habilidades mágicas e de seu poder da cura, recompõe o corpo do amado Osíris,
com exceção do genital masculino, trocado por um órgão de ouro. Após isto, ela
consegue procriar com o corpo de Osíris, gerando o filho solar Hórus, e manteve
o corpo recomposto do marido para proteger Hórus enquanto criança, para que ele
crescesse e então tivesse direito a reivindicar o trono usurpado por seu tio
Seth, a quem ele mata.
Mesmo sendo
Ísis venerada como a Grande Mãe universal, era também invocada como a divina
auxiliadora das mulheres em particular. Como a
doadora da vida, aquela que gera todos os seres vivos, nutre-os durante
toda a existência, presidindo a vida e a morte, ela também particularmente era
protetora das mulheres durante o parto, tendo também a seu encargo a ternura de
confortar aquelas que perdiam seus entes queridos. Assim, era a divindade
acolhedora dos mortos e, a um só tempo, também, confortadora de todos os
viventes, seja qual for sua condição social.
Madona - Rafaello Sanzio |
Nela, as mulheres
encontravam o apoio e a inspiração para prosseguirem suas vidas. Ísis
proclamava ser, em hinos antigos, a deusa das mulheres e dotava suas seguidoras
de poderes iguais aos do homem. Retomando o que já se disse, segundo o mito,
portanto, Ísis é a primeira filha de Geb (deus egípcio da terra) e Nut (deusa
do firmamento), esposa de seu irmão Osíris e mãe de Hórus (deus dos céus,
inebriado de energia solar, cuja designação na língua egípcia era Horu-saAset,
que significa exatamente Hórus, Filho de Ísis), com os quais integra a
principal tríade (Ísis, Osíris, Hórus) da religião do antigo Egito. É novamente
a retomada do número três, indivisível, imortal, portanto, símbolo de tudo o que é eterno,
permanecendo para sempre.
Pietà |
Essa entidade religiosa primitiva serviu de protótipo às religiões posteriores, mesmo ao próprio cristianismo, que fundaram-se em suas imagens e em seu modo de concepção para criar cultos e representações artísticas.
Ísis serviu de modelo aos artistas cristãos que reproduziram belíssimas imagens da Madona com seu filho Jesus ao colo como Rafaello Sanzio e tantos outros. Chegou-se mesmo à bela e triste imagem em que Michelangelo Buonarrotti representa a santa mãe de Jesus com o filho morto ao colo após a cruel crucifixão.
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