Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Heidelberg - Alemanha |
O mito de
Narciso é um dos mais conhecidos da mitologia clássica grega e o seu
significado faz parte da nossa cultura. O termo narcisista começou a fazer parte de nossa cultura, na linguagem
comum, para designar uma pessoa egocêntrica, com um grau elevado de
consideração de si próprio e das próprias ações, que o empurram para colocar-se
acima dos demais. Antes de entrar nos aspectos psicológicos do mito, voltemos
ao mito em si mesmo.
No mito, baseado
no terceiro livro das Metamorfoses de Ovídio, além do personagem principal, há
outras figuras mitológicas que desempenham um papel cheio de significados
simbólicos. Narciso é filho da ninfa Liríope e do deus fluvial Cefiso, que
enamorando=se por ela, envolve-a com suas doces ondas e a seduz. Da união entre
eles, nasce um menino belíssimo, que recebe o nome de Narciso. A mãe, desejando
conhecer o destino do filho, consulta o adivinho Tirésias. Ele viverá até o
momento em que conheça a si mesmo, é a profecia do vate.
Narciso,
crescendo, torna-se um jovem belíssimo, doce e refinado, mas, ao mesmo tempo,
insensível e vaidoso, que despreza o amor de todos quantos o procuram: homens
ou mulheres, que se engraçam de seu encanto. Para um jovem chamado Amínio, loucamente apaixonado por ele, oferece uma
faca para que se suicide, o que de fato acontece.
ECO E NARCISO - J. W WATEERHAUSE |
A história de Narciso, a esta altura do
mito, está ligada à da ninfa Eco. O encontro é fatal para ambos. Eco é uma
ninfa das montanhas, dotada de grande eloquência. É punida por Hera
(esposa de Zeus), porque ela percebeu que a ninfa conversava muito, desviando a
atenção da deusa, com a finalidade de encobrir os casos amorosos Zeus.
A punição
consistiu em privá-la da voz. Podia somente repetir as últimas palavras
pronunciadas por outra pessoa. A
desafortunada Eco, um dia, enquanto
Narciso prepara para cuidar das redes para cervos, conhece o belíssimo jovem e por
ele se apaixona. Não sendo capaz de expressar seu amor em palavras correu para
abraçá-lo, mas Narciso rejeita-a de forma grosseira e se afasta dela. Eco,
cheia de dor, passou o resto da vida chorando o amor não correspondido, até que
dela restasse somente a voz.
Neste momento, os deuses decidiram punir a
insensibilidade de Narciso, enviando-o para a terra de Nêmesis, a deusa da
vingança. O epílogo da história de Narciso conduz-nos a uma fonte clara como
prata, em cujas águas seu semblante se reflete. Vendo que a imagem é
extremamente bela, Narciso sente uma poderosa atração.
Primeiramente, tenta abraçar e beijar o
belo jovem que se encontra diante dele. Porém, a cada tentativa de tocá-lo, a
imagem desaparece. Depois de algum tempo, reconhece-se a si mesmo no espelho da
água da fonte.
Não podendo concretizar o sonho de
realizar o amor com sua própria imagem, despedaçado de dor, Narciso trespassa o
próprio peito com sua espada. Da terra ensopada do seu sangue, nasce o narciso
branco de corola rosa.
Como já foi observado por alguns autores,
a história de Narciso e Eco permite-nos destacar que esses dois personagens
mitológicos representam dois lados da mesma moeda, dois lados, no entanto,
inexoravelmente, separados, divididos. Narciso encarna a identidade absoluta
que não conhece a alteridade (diferente de si mesmo), enquanto Eco é a
alteridade absoluta de que não conhece a identidade.
Narciso aprende a amar apenas a si mesmo e
estendeu suas emoções ao resto do mundo, não se abre para o outro, não quer
correr o risco de trair a si mesmo. Abrir-se ao outro significa colocar em questionamento o
seu próprio modo de ser, o risco de ser frágil, ficar à mercê de outros, depender
do outro, e não menos importante, sem garantia de não ser traído ou
decepcionado. O medo de sofrer por uma possível falha gera a decisão de
isolar-se do mundo, deixando de fora todos, indiscriminadamente.
Para Eco, o discurso é diametralmente
oposto, vive a alteridade absoluta, só existe em função do que ela sente pelo
outro, e quando não correspondida, a sua vida perde todo o significado, todo o sentido
ou propósito, não lhe resta outra alternativa senão deixar-se morrer. O não
reconhecimento de uma identidade própria, isto é, de existir, independentemente
do outro, é a falta de tudo; é como se raciocinasse nestes termos: "Eu
existo porque você, com seu amor, me faz
existir, sozinha eu não sou nada."
Passando da mitologia para a psicologia, a
história de Narciso e Eco permite descrever o distúrbio narscísico de
personalidade e a dependência afetiva. O núcleo fundamental da personalidade
narcísica reside na concepção grandiosa que eles têm de si próprios,
acreditam que são especiais, perfeitos, que possuem qualidades superiores a
quaisquer outras pessoas. Esta concepção é frequentemente alimentada por
fantasias de sucesso, poder, fascínio e beleza. Acreditam tudo saber, que são
capazes de fazer bem qualquer coisa melhor do que qualquer outro. Enfim, a
presunção é seu cartão de visitas.
Coerentemente com estas premissas, as
críticas são uma ofensa. Eles são movidos pela inveja, pelo ciúme, pelo ódio
gratuito, ou pelo menos pela incompreensão do outro. Reagem a esse tipo de
comportamento alheio contra-atacando de maneira agressiva, demonstrando, muitas
vezes, uma ira e um ódio feroz contra aqueles que demonstrarem mínimas atitudes
de não reconhecerem o que eles se julgam ser. Sentem-se como o centro do
universo. Seus semelhantes, caso confirmem a ideia que os narcisistas fazem de
si mesmos, são de grande valor, em caso contrário, não valem nada.
Daí a necessidade de se cercar de pessoas
que conseguem apreciar esses talentos. A admiração que eles têm por si próprios,
pretendem também que os demais a tenham, buscando cada vez mais provas do seu
próprio valor e ficando surpreendidos e frustrados quando passam despercebidos.
É como se cada gesto ou comportamento deles fosse digno de nota e devesse ser destacado
com uma salva de aplausos. Eles vivem em um mundo em que as suas necessidades
são priorizadas, de modo especial, sendo dever dos outros satisfazê-las. As necessidades
dos outros eles jamais perceberm. Tudo lhes é devido.
A quaisquer eventuais queixas, a reação é
geralmente expressa pela raiva, pela arrogância, que somente podem ser aplacadas
com milhares de desculpas. Eles não conseguem entender o argumento e os
sentimentos do outro (empatia), também são muito focados em defender seu ponto
de vista, conduta; não dão ouvidos a ninguém, exceto àqueles que confirmam o
seu valor. O que conta não é questionar suas próprias ações, que por definição,
não possuem sombra de mancha. Eles nunca fazem nada de errado: são sempre os
outros que estão errados, a razão está sempre do lado deles.
O parceiro ideal para esses indivíduos é,
muitas vezes, uma pessoa que tenha baixa autoestima, que se deixe seduzir pela segurança
externa que o sujeito narcisista exibe. Tais indivíduos, por dinâmica profunda,
não expressam a necessidade de um relacionamento amoroso apaixonante, dando a
sensação de contentar-se com pouco de cuidado e atenção, a fim de continuar a
viver. São arrogantes e, por vezes, a humilham seus parceiros. A sobrevivência
psíquica dessas pessoas está ligada à capacidade de desenvolver recompensas no
trabalho, nas amizades, nos passatempos, no cuidado de filhos e da casa. Às
vezes, desenvolvem, ao longo do tempo, uma depressão.
A história de Eco sugere uma reflexão
sobre a dependência afetiva. Se, por um lado, o sujeito, na relação narcísica
com o outro, não consegue ver as necessidades desse outro, em tudo visando à
autogratificação; por outro lado, a pessoa com dependência emocional não pode
ver a si mesma, seus próprios desejos e necessidades, em tudo visando à posse
do outro. É como se o outro tivesse o papel de preencher espaços vazios
emocionais, decorrentes das relações insatisfatórias com figuras parentais,
como mãe e pai.
A pobre Eco,
diante da rejeição de Narciso, não encontra outra solução que não seja
deixar-se morrer. Não consegue encontrar dentro de si a necessidade de procurar
a cura de si mesma, de querer-se bem a si mesma, de entrar em contato com o
próprio patrimônio de desejos, sonhos e esperanças que representam o único
medicamento capaz de evitar que a dor a afunde e a pressione a deixar-se
morrer.
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