terça-feira, 30 de setembro de 2014

SOB A PROTEÇÃO DE SULLY PRUDHOMME

 Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
          Pela manhã, enquanto saboreava o pão fresco matutino, invadia-me a alma o imenso prazer da primeira refeição. Lembrei, então, o sonho de Sully, em que agradecia aos artífices todos através de seu magistral poema...
PAVILLON SULLY - LOUVRE

A dádiva do trigo é insondável à mente que investiga... por meses, permanece pacientemente voltado para o alto, receptivo às energias do sol e a força dos ventos que, balançando-o lentamente, provocam catálises transformadoras, para o desenvolvimento do amor que habita a essência da farinha, nutridora dos corpos e alentadora dos espíritos.
Assim também a água que habitou as profundezas incógnitas das rochas, rolou por rios sem conta séculos afora, elevou-se às alturas insondáveis dos céus e, pelas gotículas da chuva, entranhou-se no seio fecundo do solo... Depois, engenhosamente, subiu pelo caule teso do vegetal e, vagarosamente, foi-se instalando, célula por célula, engendrando os segredos remotos da vida e dos que dela fruem...
Campo de trigo maduro



Misturou-se também aos sonhos do agricultor que, por longos dias seguidos, arando os campos... semeando o eito... e, placidamente, aguardando pelo milagre perene da transformação, sabiamente aguarda a obra do gestor do universo. E, ao constatar a messe doirada, ceifou as plantas... depositou no moinho o fruto de seus esforços e anseios... e retornou para o lar com o alento dos seus...
Juntaram também seus anelos aos dele, primeiro o moleiro triturador dos grãos; depois o veloz transportador, rolando por estradas e almas. Por fim, o artífice padeiro juntou sua própria alma sob a mão do arquiteto dos mundos a fim de engendrar este alimento divinal.

Sem jamais esquecer que todo o grão é dom, apesar do meu trabalho, sou Salomão, usufruindo as dádivas divinas, mesmo sob a máscara de um simples artesão de letras...

HONG KONG E OS INGLESES

O Império Britânico, o que restou dele, tem muita responsabilidade sobre o que ocorre hoje em Hong Kong. Primeiramente, tomaram da China aquele ponto estratégico, em meados do século XIX e utilizaram-se dele para seus negócios escusos, inclusive de ópio. Agora, depois de quase 200 anos de uso, quando não mais lhes interessou e porque se lhes tornava caro, abandonaram aqueles milhões de chineses europeizados e confinados num minúsculo istmo à sua sorte, nas mãos do grande dragão oriental.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A COMPLEXA HISTÓRIA DE HONG KONKG – DOMÍNIO INGLÊS – ANEXAÇÃO À CHINA

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
         
A primeira observação que se precisa fazer ao olhar para Hong Kong é a sua densidade populacional. Para tal, vou fazer uma comparação com o município de Rio Grande, Rio Grande do Sul.
Nosso município tem uma área de 2.813 km², Hong Kong, por seu lado, tem uma área de 1.104 km², menos da metade, portanto. Porém, o que contrasta conosco é a densidade populacional.
Enquanto em Rio Grande vivem em torno de 207.000 habitantes, em 2014, em Hong Kong, 7.184.000. Nossa densidade populacional é de 0,07, a de Hong Kong é de 6.544 habitantes por km². Para se ter uma noção das consequências disso, Trago um fato particular. Em 2004 fui convidado para um congresso de linguística nessa cidade e, pelo excesso de compromissos, não pude comparecer ao encontro, mas duas colegas que lá estiveram contaram-me que há guardas sobre pedestais na rua para comandar o movimento das pessoas.
HONG KONG MAP


Caso um grupo pare para uma conversa em local movimentado, o guarda dá um comando de apito para que sigam andando para não congestionar a cidade. É um dos lugares de maior densidade populacional do mundo. É como se quase toda a população do Rio Grande do Sul vivesse em um espaço como o do município de Rio Grande.
Pois, politicamente também há hoje, nesse lugar, uma situação complicada.  Desde 1841, essa região pertencia à Inglaterra, como veremos mais adiante. Porém, em 1 de julho de 1977 foi devolvida à China.
Organizou-se, a partir desse ano, um sistema administrativo específico para a cidade, concedendo-lhe grande independência em relação à administração chinesa. Criaram-se duas RAE (Regiões Administrativas Especiais) dentro da República Popular da China: Hong Kong, e a ex-colônia portuguesa Macau.
Hong Kong, assim, passou a reger-se por um sistema político diferente do da China Continental. O judiciário independente de Hong Kong funciona no âmbito da Common law (do inglês "direito comum") sistema que se desenvolveu em alguns países: neles, as leis emergem de decisões dos tribunais e não mediante atos dos legislativos e executivos. Além do mais, haveria um administrador local eleito democraticamente.
A Lei Básica, ou seja, a constituição dessa espécie de cidade-estado devia ter um elevado grau de autonomia, em todas as esferas. Ficaria dependente da China apenas no que diz respeito às relações internacionais e à defesa militar. Foi eleito pela população, para chefe do executivo Tung Chee-hwa. Ocorre que o governo central da China nunca olhou com bons olhos essa independência.
Começou, o governo de Pequim, em 2003, por criar leis que restringiam os direitos civis do cidadão, como leis de antissubversão. Houve, nesse ano, movimentos de rua contra essas limitações. Em 2005, os burocratas de Pequim proibiram as eleições previstas para 2007 e adiaram sine die a expansão do número de juízes popularmente eleitos.
Visão panorâmica de Hong Kong

Depois de realizarem, por pressão, um processo eleitoral, uma multidão de manifestantes tomou as ruas novamente para criticar o governo. Acontece que o resultado das eleições deu ampla maioria aos candidatos pró-democracia, que conseguiram 60% dos votos nas eleições de setembro de 2004, enquanto os pró-Pequim garantiram apenas 40% das cadeiras na legislatura. 
Depois de inúmeras manifestações de insatisfação contra seu governo, o primeiro executivo eleito Tung Chee-hwa abandonou o poder em março de 2005, alegando problemas de saúde. Muitos especuladores acreditam que ele tenha sido forçado a renunciar. Donald Tsang, vice do governante anterior, tornou-se chefe do executivo de Hong Kong.
Por fim, em 2012 procederam-se novas eleições e o candidato Pró-Pequim Leung Chun-ying, conhecido como C. Y. Leung, foi eleito como terceiro chefe do executivo de Hong Kong.
Mas, é necessário fazer uma retrospectiva histórica para recuperar duas grandes ocorrências com relação a Hong Kong: primeiramente o modo como a região se tornou possessão inglesa; depois, a relação com a República Popular da China, especialmente durante o conflito entre Mao Tse Tung e  Chiang Kai-shek que resultou no governo comunista de Pequim.
No século XIX, a Inglaterra e a França dominavam o comércio internacional, com a decadência do império espanhol. A Inglaterra tomara a Índia do domínio Francês nos meados do XVIII. A França continuava com seu domínio sobre a China e todo o sudeste asiático, mantendo domínio comercial sobre países como Vietnam, Camboja e adjacências.
No século XIX inicia-se um processo imperialista mais agressivo em que as próprias frotas dos países dominadores do comércio internacional, fortemente armadas, impunham o próprio monopólio. O ópio era uma mercadoria que proporcionava grandes lucros. Os ingleses produziam o entorpecente na sua colônia da Índia. Porém, a China não permitia o ingresso desse produto em seu território. Ocorreu, entre 1839 e 1842,  a operação militar conhecida como Guerra do Ópio. A Inglaterra se impôs com seu poderio bélico e tomou a região de Hong Kong, um profundo porto natural, para fazer seu ponto de comércio para o território chinês.
Hong Kong - parte insular

Outro fato histórico importante envolvendo a região de Hong Kong foi a Revolução Comunista Chinesa. Chiang Kai-shek foi o líder da República Chinesa desde 1927. Chefiou as guerras sino-japonesas, recebendo mesmo o apoio dos comunistas liderados por Mao Tse Tung. Porém, entre 1946 e 1950, enfrentou os comunistas de Mao, que de há muito militavam no interior do país, e foi derrotado. Nesse ano de 1950, Chiang Kai-shek faz um acordo com Mao, abandona a China e recolhe-se para a ilha de Formosa, onde forma a China Nacionalista, hoje Taiwan. Foi durante a guerra civil chinesa que muitos inimigos do comunismo se estabeleceram em Hong Kong, aumentando mais ainda sua população.

A Inglaterra, de há muito temia perder pela força esse enclave no território chinês, com o crescimento do poderio militar e depois econômico da China. Além do mais, não representava mais importante negócio. Hong Kong, por seu lado, tem uma poderosa bolsa de valores, uma indústria sofisticada e uma posição militar significativa para os chineses, voltada para Taiwan, o Japão e o Oceano Pacífico. Além do mais, pertencendo a uma potência europeia, é uma posição do ocidente em seu território.
Os movimentos anti-chineses de agora em Hong Kong têm profundos laços com sua longa história ligada ao ocidente, relacionada a processos filosófico-ideológicos. Isso pode ter resultados político-militares imprevisíveis.

domingo, 28 de setembro de 2014

A CIÊNCIA E A PROFESSORINHA DO CAMPO

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Quase nada sabia... sabia que não sabia... ensinava tudo o que sabia... e os alunos aprendiam tudo... mesmo o que ela não sabia...
Ah, os sábios... o verdadeiro sábio sabe... sabe que não sabe nada... Porém, há os que sabem tanto... especialmente os que já sabem tudo... E fala-se tanto em cultura... saberes... tecnologia... ciência... Ah!!!... novamente a ciência... Mas, o que é, enfim, a ciência, se ninguém sabe o que há de vir?
Há mesmo aqueles... muitos... que olham do alto de sua vida chique, com desdém dos de debaixo... De alto de quê, se o universo não tem nem cima nem baixo? Chegaram mesmo a fazer um globo universal colocando os do norte para o alto e os pobres do sul para baixo... Neste universo que doidamente roda a espantosas velocidades, o único parâmetro central é o umbigo do indivíduo que fala... aqui, lá, abaixo, acima... tudo só pode ser dito em referência ao umbigo, ponto central de quem tomou a palavra... Eu vi na Austrália um globo com o sul para cima... e estava certo... tão certo quanto o outro que poderia também estar errado...
O sábios são os que aprenderam algumas técnicas... uns truquezinhos de como se utilizar das forças da natureza para facilitar as coisas do dia-a-dia... registraram esses truques e os guardam secretamente para ganhar dinheiro e muito... para engambelar a vaidade dos outros... Assim arquitetou-se o nosso universozinho e suas instituições, que se vão transmutando ao sabor das regras mundo...
Não posso esquecer o sábio judeuzinho alemão que fugiu para a América (se pudesse chamar alguém de sábio, esse o era, mas ele não gostava dessa pecha...) Pois Nikola Tesla foi contratado pelo poderoso patrocinador de Thomas Edison, George Westinghouse. Edison somente trabalhava com corrente contínua porque a alternada matava.
O ambicioso Westinghouse, descobrindo que o jovem Tesla dominava a corente alternada, muito mais poderosa, passou a patrociná-lo para vender energia ao mundo inteiro. Porém, quando recebeu as fórmulas e plantas das mãos do jovem, incendiou o laboratório do judeu. Este desenvolvia um processo para dar energia de graça a todos... E com o petróleo e tudo o mais é assim... vendem-nos até mesmo as ondas por onde circula esta mensagem...
Voltemos à professorinha do campo que tinha perfeita noção de que nada sabia... eu também nasci no campo e também não sabia nada... Mas aí fui para uma escola de frades... e me ensinaram a língua e depois as línguas... acontece que os sábios criaram até uma língua da sabedoria para dizer que os outros não sabem nem falar...
Não criaram uma só, foram muitas... e grego e depois latim... (houve um tempo em que, o que não fosse escrito em grego ou em latim não era científico)... francês... inglês... alemão... japonês... hoje, bonito é falar chinês (não, é mandarim)... muito fácil, por sinal... e eu fui aprendendo um pouco de tudo isso... porque direitinho, direitinho ninguém sabe nada...
Depois, ensinaram-me filosofia e me fizeram mestre e doutor e eu me palhacifiquei de toga... e do alto de meu doutorado disse uma série de palavras que alguns consideraram até mesmo sábias...

Mas, pensando bem, saber uma língua é saber dizer uma coisa de outro modo... portanto, não é saber nada... saber uma ciência é saber um truquezinho de usar as forças da natureza... logo, também isso não é um saber... ergo, nihil scio... (Portanto, nada sei). Pois acontece simplesmente, no momento em que estava para chegar à revolucionária conclusão de que nada sei...Que decepção! Sócrates já se me havia antecipado há, pelo menos, 2400 anos... (Há mesmo os que dizem isto, smomente para dizerem que sabem).

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

ABISMO

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Desesperadamente, o bebê, sem êxito, tentava, por dias seguidos, apossar-se de um móbile fascinante que lhe encantava o olhar perquiridor e a alma ingênua. Por fim, quando estava crescido e hábil o suficiente para atingir seu objetivo, encontrou-o, a mãe, todo enredado em cordões inúteis numa situação até mesmo de perigo.
NOVA TORRE - NEW YORK

Vieram, então, escola e rua. Natal infeliz, sem os patins dos sonhos... pai sem dinheiro... Hoje seriam Celular... Iphone... Ipad... Com o passar dos anos, foram mudando os desejos sempre mais altos... mais distantes também... Ausências cavando abismos na alma... Era a nuvem que se afastava da mão que a perseguia...
Primeiro automóvel, lindo, um sonho... outro... mais outro... sofisticação... luxo... mais valor... mas, à medida que apanhava o pombo ainda havia a lua distante... o mundo maneja os desejos... sempre a criança com novas cobiças... mãos ignotas, projetando sombras na parede...

Oitenta e dois... e cinco meses... luxuosas viaturas... imóveis sem conta... fazendas a perder de vista... incontáveis servidores... investimentos do oriente ao desconhecido... comendador... honrarias... prazeres...? Subiu à cobertura da torre... a mais elevada de Nova Yorque... tudo era seu... tudo o que estava ao alcance da vista, por fim, estava também disponível ao seu bolso... Confuso, perguntou à jovem que o conduzia... Por que estamos aqui? Não sei, respondeu ela, o senhor não disse a ninguém...

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

VISEIRAS GREGAS


O jovem de apenas 16 anos, rapidamente transpôs a elegante multidão. Chegando ao enorme portão de entrada, foi barrado pela guarda que organizava o festival. Sem entender o que ocorria, contornou a plataforma inferior e foi galgando os jardins, na busca de um posto de onde tivesse uma visão de conjunto e pudesse entender o que se passava.
Deslumbrado pela novidade, nunca havia visto tanto povo reunido, como era ágil, esgueirou-se entre plantas, monumentos e muros e viu-se no alto da Acrópole ateniense. Empoleirou-se nos braços estendidos de uma gigantesca estátua de Dionísio. Dali, despercebido, podia contemplar a grandiosidade do imenso teatro de Atenas.
Àquela hora do fim de tarde, o sombra da montanha cobria confortavelmente as arquibancadas todas. Pode presenciar as filas de casais e jovens ricamente trajados, como jamais presenciara em toda sua breve existência, irem elegantemente ocupando seus lugares.
De repente, ecoa nas dobras da montanha um poderoso som que lhe provoca certo pavor. Um pano enorme, como jamais tinha visto igual, sobe lentamente deixando ver um ponto mais elevado e uma estranha personagem, de longas vestes, com uma estranha máscara cobrindo-lhe as faces.Essa máscara ampliava o alcance do falante.
TEATRO DE ATENAS

Todos levantam e batem juntamente as mãos. Em seguida, uma fala de voz poderosa envolve o silêncio de todos. Nada entendia das primeiras palavras... Aos poucos, foi catando uma palavra aqui outra acolá... quando tudo acabou... apenas uma minúscula história martelava sua mente... um homem havia assassinado o próprio pai... os deuses exigiam um castigo...

Quando retornou para o subúrbio onde vivia, Acrísio, jovem grego da época de Péricles,  não esquecia a tal história... também ele tinha um pai cruel... não fora necessário executá-lo... os deuses já haviam feito justiça há um ano... Assim, podia caminhar sem culpa... Podia? Amaldiçoara-o por tantas surras... Jamais havia levantado a mão contra ele... por falta de coragem... porém, muitas vezes desejara fazê-lo... Pedira inúmeras vezes a Ares que o punisse... Teria o deus posto em sua conta esse crime? E, como criminoso... um forte remorso roendo-lhe as entranhas... contorcia-se no leito desconfortável...

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

RETORNO A BOTTICELLI

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara

Tarde ensolarada...  final de setembro...  vale de ladeiras contrapostas...  Oeste, sol caindo no poente... larga sombra partia do topo e vagarosamente encobria a face da colina toda... No aclive oposto, na sua completude,  os raios solares iluminavam tudo até o derradeiro momento em que o astro se escondia por trás do topo, a luminosidade esmaecendo  vagarosamente à medida que a tarde morria...

Nesses momentos fugazes, sentado numa pedra embutida entre as ramagens coladas na encosta sul, eu observava a exuberância dos pomares de pessegueiros, em plantas alinhadas, cujo esquadrejamento perfeito contrastava com a desordem aparente do mato contíguo...
Ao nascente, num aclive mais íngreme, o pomar terraceado acompanhava a curvatura do morro...  pelo poente... do lado oposto, numa inclinação menos acentuada, a chácara delineava-se de forma muito mais geométrica...
No entanto, o que diferenciava aquela tarde era a floração dos pomares que, em ambas as faces da serra, resplandecia ao sol que sucumbia no poente... um aclive contrastava com o outro... Enquanto as flores do poente exibiam um tom de rosa mais escuro pelo menor grau de luminosidade que recebiam, as do nascente rebrilhavam aos milhares conferindo a impressão de um certo tremeluzir diante do olhar do observador...
No final do dia, mesmo estando o sol encoberto por entre os topos dentados dos morros, uma luminosidade avermelhada ainda pairava sobre as colinas e perdia-se na imensidão do céu. Ao fixar as plantas à distância, delineavam-se os espíritos da natureza nos contornos mais definidos da floresta, em que as plantas individualmente perdiam sua identidade para conformarem-se na imagem da grande deusa das matas. Contornos enegrecidos projetavam-se no horizonte, deixando, aqui e ali, resquícios de azul, por entre ramagens esquálidas.

 Uma cúpula de trevas  aos poucos cobria a natureza toda... Por fim, tudo enegrecera... desci pela encosta, sentindo as flechadas dos arbustos nas canelas desprotegidas pela calça semi-arregaçada...

No olhar envolto pelas trevas, carregava ainda as cores abundantes da natureza e os vaga-lumes incendiavam-me o trilho que me conduzia ao fundo do vale... o vento levemente frio trazia-me para o mundo real... No espírito, abrigava raios de efusiva felicidade...

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A LAMPARINA ALUMIAVA A ALMA

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara

Interior do Rio Grande do Sul, Serra dos Tapes... sul do sul... para os migrantes europeus, acostumados aos gelos do Tirol... aquele frio era nada... No inverno, às seis horas não havia mais sol... minha avó acendia uma lamparina de querosene e começava a ler suas preces... ora em latim... ora em alemão... ora em italiano... se repetiam pelo tempo afora...

Eu olhava a pequena chama que tremulava à procura do oxigênio do ar... de quando em vez, eu abria a porta da rua e contemplava as estrelas tão alto... passava pela cozinha... aquecia as mãos no fogão a lenha onde um braseiro fazia chiar a água numa chaleira preta do fogo...
Minha mãe, cochilando, aguardava pacientemente pelo meu pai, que jogava cartas numa venda de campanha... vez por outra, bebia um mate doce... beijava-a e retornava para minha caminha no quartinho da vovó...
A lamparina, sobre uma toalhinha branca, com flores bordadas a mão no centro... bordadinhos enfeitando os quatro cantos... Nojos... gostos... coisa boa... coisa ruim... concluí muito depois que tudo isso vem de um jeito de olhar a vida e o mundo... não percebia o odor forte do combustível... era muito barato... um litro durava dias... eu buscava...  sem calçado... as pedras machucando os pés... era assim com todos... Quando ainda não havia rádio... o tempo era um tempão que não passava nunca... o ano... era como muitos dos de hoje...
O pão era gostoso... e como era... leite era leite... o café, uma delícia incomparável... o pão no forno de lenha da rua... a lenha, se buscava no mato... todo mundo... e a fumaça subia da chaminé marcando o céu de branco tisnado...

E Deus sempre olhava pra gente... nada preocupava ninguém... os sonhos tão pequenos... ninguém tinha nada e nada faltava a ninguém... mais, pra quê? Não havia ladrão... roubar o quê? Ninguém tinha nada que prestasse... e como tudo era bom... No sétimo dia, criou o homem e viu que tudo era perfeito... a gente era completamente perfeitos... E o sol de cada dia a todos abençoava... o calor das cobertas era tão terno... o beijo de minha avó em meus cabelos era uma bênção divina... corria do cabelo para a alma... eu era santo e não sabia...

ARTE BIZANTINA POR UM DILETANTE


Quem me apresentou a arte bizantina foi São Francisco de Assis. Francisco tinha, na pequena capela de São Damião, um crucifixo bizantino. Quando, em 1956, ingressei no seminário franciscano e fui introduzido nos rudimentos da cultura específica da Ordem Franciscana, encantei-me com esse Cristo tão diferente dos demais.
CRUCIFIXO BIZANTINO DA CAPELA
DE FREI DAMIÃO, EM ASSIS

Observando esta imagem do Cristo Crucificado, percebe-se, já à primeira observação, a enorme diferença entre ele e os crucifixos anteriores. Os crucifixos comuns reproduzem apenas um homem crucificado, mutilado e sofredor. Na cruz bizantina, não se reproduz um Cristo das dores. Embora crucificado, ele tem uma imagem serena, conforme o princípio cristão de que sua cruz é o princípio de sua própria glória. Mas não se trata de uma glória de quem se exalta pela vitória. É a vitória humilde do simples, que venceu porque assim tinha de ser.
A figura central do ícone é o Cristo, não só por seu tamanho, mas também por ser o Cristo a figura luminosa que domina a cena e transmite luz para as demais figuras. "Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida" (Jo 8, 12). Os olhos de Jesus estão abertos: Ele olha para o mundo que salvou. Ele vive e é eterno. A veste de Jesus é um simples pano sobre o quadril - um símbolo tanto do Sumo Sacerdote como de Vítima. O tórax e o pescoço são muito fortes. Atrás dos braços esticados do Cristo está seu túmulo vazio, representado pelo retângulo preto.  Essa análise simples mostra o essencial da arte bizantina (http://franciscodeassis.no.sapo.pt/bizantino.htm).
ASCENSÃO

A mesma fonte anterior apresenta uma análise da ascensão do Senhor. A ascensão é retratada no círculo vermelho: Cristo está saindo dele segurando uma cruz dourada que, agora é Seu símbolo de realeza. As vestimentas são douradas, símbolo de majestade e vitória. A estola vermelha é um sinal de sua autoridade e dignidade supremas exercidas no amor. Anjos lhe dão boas-vindas no Reino dos Céus. IHS são as três primeiras letras do nome de Jesus em grego. NAZARÉ é o Nazareno.
A arte bizantina desenvolveu-se em Constantinopla, que é a própria cidade grega de Bizâncio, rebatizada pelo imperador Constantino, quando no século IV d., torna o cristianismo a religião oficial do Império Romano. A capital do Império Romano será, nesse período, Constantinopla. A arte bizantina terá seu apogeu no século VI d. C., como expressão máxima da arte religiosa desse momento.
Maestà - Cimabue

















A arte bizantina ressurge no gótico florentino dos séculos XIII e XIV, com artistas como Giotto e Cimabue. Vejam-se, agora, imagens de Nossa Senhora de acordo com os moldes artísticos bizantinos.
Giotto - Madona

Essa é uma pequena observação de um leigo em arte e diletante do belo sobre a arte bizanrina, ao mesmo tempo diferente e bela.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

OS EQUINÓCIOS E A MITOLOGIA – O MITO DE ADÔNIS

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Na mitologia grega, há uma célebre narrativa ligada aos equinócios, que já se constatava serem os divisores das principais estações do ano: o verão e o inverno. Trata-se do mito de Adônis.
ADÔNIS

Segundo Ovídio, o jovem era fruto de uma relação incestuosa. Cíniras, rei de Panchaia, cidade da Arábia, engravidara a própria filha Mirra.  O rei era também sacerdote de Afrodite.  Ele e sua esposa Metharme conceberam uma encantadora menina a quem deram o nome de Mirra. A mãe afirmava ser a criança mais linda que a própria deusa. Afrodite, ficou tão irada com a ofensa, que lhe rogou uma praga, segundo a qual a menina apaixonar-se-ia pelo próprio pai, o que de fato ocorreu.
Hipólita, criada de Mirra, por doze noites seguidas, introduziu a jovem no leito paterno pela madrugada, retirando-a logo a seguir até que ela, por fim, engravida. Sabrdor do embuste, o pai decidiu sacrificar a filha. Ela, porem, fugiu pela floresta e recorreu, desesperada, à ajuda de Afrodite que, compadecida, transformou-a em árvore, um pé de mirra, que produziria  uma resina altamente amarga em consequência das lágrimas da jovem. Aos dez meses de sua concepção, o tronco da árvore abriu-se  e nasceu o mais encantador dos jovens gregos, Adônis.
PRIMAVERA - SANDRO BOTTICELLI

Afrodite colocou o menino em um baú e solicitou a sua amiga Perséfone, deusa do Hades e esposa de Plutão, divindade dos mortos, para que o guardasse em um canto qualquer de seu palácio. Curiosa, a deusa abriu o baú para ver o que ele continha. Percebendo a excepcional beleza do jovem, apaixonou-se por ele.
A deusa da fecundidade e do amor, quando tomou conhecimento do ocorrido, desceu ao Tártaro para reclamar sua propriedade. Perséfone negou-se a devolvê-lo, uma vez que por ele estava apaixonada. Para resolver o impasse, os deuses estabeleceram que, por meio ano o jovem permaneceria no Hades com Perséfone e a outra metade retornaria à terra para junto de Afrodite.
VÊNUS E ADÔNIS - TIZIANO

Essa seria a origem da alternância entre invernos e verões. Quando Adônis vem à terra, os campos reverdecem e se enchem de plantas e flores. O sol aquece a todos com o brilho de seus raios e a alegria de sua luz. Porém, quando Adônis desaparece para ficar ao lado de Perséfone, nas profundezas da terra, o próprio sol perde sua força e toda a natureza sofre com o frio, a geada e os ventos cortantes. Tudo, no inverno, fica aparentemente morto, com a vida adormecida no solo (Hades), período indispensável ao repouso, assimilação e preparo para novo ano.

EQUINÓCIO DA PRIMAVERA

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Hoje, 22 de setembro de 2014, é o equinócio da primavera no hemisfério sul, correspondendo ao equinócio de outono no hemisfério norte. Isso significa que o dia e a noite de hoje são absolutamente iguais. O termo equinócio forma-se de dois radicais latinos: aequus, que significa igual, e nox, noctis que tem o significado de noite.
Também significa que, em nosso hemisfério sul, inicia-se a primavera e, no norte, o outono. Em termos de astronomia, o equinócio refere-se ao momento em que a terra é iluminada pelo sol em sua faixa do equador.

Em termos de astronomia, o equinócio acontece quando a linha que une o centro da Terra ao centro do Sol está sobre o equador, equivale afirmar que o sol está a pino, em termos de astronomia dir-se-ia que o sol está no zênite, na linha do equador, o que, em ciência chama-se de latitude 0º (latitude zero). No Brasil, por exemplo, a cidade de Macapá, situa-se na linha do equador, e, portanto, terá hoje sol a pino. Isso vale dizer que, no momento do equinócio, o segmento de reta que une o centro da Terra ao centro do Sol é absolutamente perpendicular ao eixo de rotação da terra.



BIBLIOGRAFIA
Imagem disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Equin%C3%B3cio#mediaviewer/File:Equin%C3%B3cioPT.jpg

domingo, 21 de setembro de 2014

SUFRÁGIO UNIVERSAL

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara

O irrequieto Voltaire, depois de muitos embates políticos e uma soma de fracassos e pesadas desilusões, repousava já de há séculos, sereno e pálido, em seu suntuoso jazigo do panteão parisiense.
Cândido, já viúvo de sua Cunegundes, desiludido de todos os governos que conhecera por diferentes partes do mundo, séculos a fora, chegara, num transatlântico de luxo, à paradisíaca Rio de Janeiro.
Não compreendia o que tinha a ver Rio com janeiro. Não encontrara rio algum. Era setembro, estava diante de uma imensa baía, povoada de jovens deslumbrantes. Julgou que, inadvertidamente, houvesse, como Dante, chegado ao próprio paraíso. Do purgatório e do inferno, já havia provado sobejamente nos conturbados caminhos da Europa.
Foi descoberto, de imediato, por um estudioso de literatura francesa que o reconheceu pela candura. Contou-lhe, o novo admirador, que Pangloss falecera, desiludido da filosofia iluminista de Leibniz, sem, no entanto, abandonar a teoria do melhor dos mundos possíveis.
Como, pelos giros do destino, recebera uma herança de valor incalculável de sua amada e falecida Cunegundes, filha do barão de Thunder-ten-tronckh, não tinha o pensador Cândido, como o Rubião de Machado, restrição financeira alguma. Desde que chegara, encantara-se com a generosidade dos cariocas. Ofereciam-lhe de tudo. Tudo muito barato.
Havia adquirido, por módicos valores, até mesmo uma ilha na cidade. Haviam-lhe garantido que por aqui todos são absolutamente honestos, de tal forma que poderia confiar seu cartão de crédito a qualquer cidadão, que seriam indistintamente confiáveis. Desde esse momento, não mais se deu o trabalho de ir ao comércio. Os amigos faziam tudo por ele, com inteiro desprendimento.
CANDIDE

O intelectual que o acompanhava, que por sinal já se instalara no apartamento contíguo ao dele, no luxuoso hotel em que estava instalado, convidara-o para conhecer Brasília.
Cândido estava encantado com a honestidade local e atribuía esse fato, filosoficamente, à influência do espírito indígena, de que já tomara conhecimento no velho mundo. Sabia que os nativos daqui não conferiam valor algum ao dinheiro e aos bens materiais, chegando até mesmo ao cúmulo de trocar ouro e diamantes por pequenos espelhos.
Mas, na capital do país, aconteceu o apogeu de seu deslumbramento. Passou dias e dias enclausurado, no apartamento que o amigo adquirira para ambos, na área das embaixadas, ouvindo, lendo e assistindo aos discursos políticos.
Em parte alguma desse universo de Deus constatara tamanha lisura, tal desprendimento e espírito de amor ao povo e à pátria. Aqui, o mal não florescera. A honradez de comportamento marcava todos, desde o mais simples cidadão de rua ao mandante máximo do país. A partir desse instante, jurou jamais afastar-se deste paraíso terreal, habitado por anjos reencarnados. Beato Cândido, Deus abençoe tua perspicácia.

O irrequieto Voltaire, depois de muitos embates políticos e uma soma de fracassos e pesadas desilusões, repousava já de há séculos, sereno e pálido, em seu suntuoso jazigo do panteão parisiense.
Cândido, já viúvo de sua Cunegundes, desiludido de todos os governos que conhecera por diferentes partes do mundo, séculos a fora, chegara, num transatlântico de luxo, à paradisíaca Rio de Janeiro.
Não compreendia o que tinha a ver Rio com janeiro. Não encontrara rio algum. Era setembro, estava diante de uma imensa baía, povoada de jovens deslumbrantes. Julgou que, inadvertidamente, houvesse, como Dante, chegado ao próprio paraíso. Do purgatório e do inferno, já havia provado sobejamente nos conturbados caminhos da Europa.
Foi descoberto, de imediato, por um estudioso de literatura francesa que o reconheceu pela candura. Contou-lhe, o novo admirador, que Pangloss falecera, desiludido da filosofia iluminista de Leibniz, sem, no entanto, abandonar a teoria do melhor dos mundos possíveis.
Como, pelos giros do destino, recebera uma herança de valor incalculável de sua amada e falecida Cunegundes, filha do barão de Thunder-ten-tronckh, não tinha o pensador Cândido, como o Rubião de Machado, restrição financeira alguma. Desde que chegara, encantara-se com a generosidade dos cariocas. Ofereciam-lhe de tudo. Tudo muito barato.
Havia adquirido, por módicos valores, até mesmo uma ilha na cidade. Haviam-lhe garantido que por aqui todos são absolutamente honestos, de tal forma que poderia confiar seu cartão de crédito a qualquer cidadão, que seriam indistintamente confiáveis. Desde esse momento, não mais se deu o trabalho de ir ao comércio. Os amigos faziam tudo por ele, com inteiro desprendimento.
O intelectual que o acompanhava, que por sinal já se instalara no apartamento contíguo ao dele, no luxuoso hotel em que estava instalado, convidara-o para conhecer Brasília.
Cândido estava encantado com a honestidade local e atribuía esse fato, filosoficamente, à influência do espírito indígena, de que já tomara conhecimento no velho mundo. Sabia que os nativos daqui não conferiam valor algum ao dinheiro e aos bens materiais, chegando até mesmo ao cúmulo de trocar ouro e diamantes por pequenos espelhos.
Mas, na capital do país, aconteceu o apogeu de seu deslumbramento. Passou dias e dias enclausurado, no apartamento que o amigo adquirira para ambos, na área das embaixadas, ouvindo, lendo e assistindo aos discursos políticos.

Em parte alguma desse universo de Deus constatara tamanha lisura, tal desprendimento e espírito de amor ao povo e à pátria. Aqui, o mal não florescera. A honradez de comportamento marcava todos, desde o mais simples cidadão de rua ao mandante máximo do país. A partir desse instante, jurou jamais afastar-se deste paraíso terreal, habitado por anjos reencarnados. Beato Cândido, Deus abençoe tua perspicácia.

sábado, 20 de setembro de 2014

CUIDA DE MIM

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Quando eu ainda não era, cuidava dos nossos um homem truculento, que prendia e arrebentava quem se lhe antepusesse à passagem e desejos. E mandou seus estudiosos ao mundo e implantou à força tudo o que de mais moderno descobriram. Quando viu que não dava mais, impôs até mesmo a democracia, que manipulou, como de resto. Elegeu, manipucraticamente um general seu amigo. E depois voltou... e, numa cartada de mestre... tirou-se  de cena... e virou deus... Meu pai me dizia que era muito seguro para quem não contrariasse os interesses do baixinho...
A seguir... quando eu ainda não sabia direito de nada... vieram outros truculentos... os mesmos métodos... mais sofisticados... e, como antes, as ruas estavam seguras... só não dava para discordar... vi discordantes morrerem... e fiz quase nada... e sobrevivi

Os discordantes venceram... democracia... direitos... agora já velho... olho ao redor... não posso sair à rua... temo até por minha casa... estou como as rãs de Esopo, pedindo a Zeus um novo rei... Que não vos advenha outro pior, respondeu-lhes a suprema divindade... Será?

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

VISITA

Prof. Dr, Oscar Luiz Brisolara
Na tarde quieta, resolvi visitar minha mãe... há tanto tempo já não o fazia... ela não mais me aguardava. Quando entrei no portão estreito, avistei, no posto mais elevado, o mocho piando sinistramente... eram amigos agora... o velho, chorando... a deixara ali... nós achávamos também que sim...
Entrei pelo portãozinho metálico... eu tinha a chave na mão... um ranger rouco anunciou-me... nada... apenas o silêncio foi resposta... eu a queria muito... ela amava-me mais ainda... imensamente... Espreitava-me... acredito que sabia da minha estada... ouvi-lhe mesmo o murmúrio da voz macia...
Ouvi teus passos... por que estás mancando?... Não dói, minha velha... desejava afagar-lhe os poucos cabelos... não era possível... Olhei um retrato dela afixado... como fora linda por antes daqueles tempos...
Eu era bonita... ainda és linda... mentiroso... como estás agora, perguntei baixinho?... somente silêncio... o mocho piou mais perto de mim... não temes o piado dele? ... novo silêncio enorme ressoou no tempo... dizem que eles comem ratos... deve haver muitos deles por aqui... novo silêncio macio...
Havia um velho rosário pendurado ao alto... tomei-o... as contas gastas dos dedos dela por anos a fio... olhei as cinco continhas adiante da cruz... não lembro como se faz... me ensina... nada respondeu... Padre-nossos, Ave-Marias, tinha o Salve-rainha... mas onde era...? não te lembras mais?... deixa pra lá... Deus sabe da gente...
Ouvi o som da hora do Angelus... piados de mocho... em julho a noite cai cedo... o sino calou-se... para quê, ali? Ninguém se importava... todos calados... mudos... falam de outros tempos nos rótulos de suas moradas... Não estás com medo? Não, já passou o tempo dos meus sestros... neblina bem baixa molhava meu rosto... na esquina, entre a bruma, pálida lâmpada refletia umidade na luz que filtrava em repuxos estranhos...

Mãe... eu já me vou... sestro... de noite eu não sei... depois, está frio e começa um chuvisco... Já não via as moradas... dobrei no corredor da esquerda... a seguir, no da direita, e vi as luzes da rua... Mãe, gritei de longe,... daqui a uns tempos posso vir morar contigo? Silêncio... Eu venho... é certo...

OVÍDIO, O POETA ENAMORADO

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
(O texto original latino encontra-se no final desta página)
OVÍDIO, sempre o enamorado Ovídio. Escuta-o em seu estro inspirado e forte:



Eu, o poeta que escrevo enamorado, Ovídio,
eu que nasci na úmida terra dos pelignos,
estes versos compus, que assim Amor mandou:
longe de mim, longe de mim, ó vós, austeras!
Não sois a boa audiência para ternos cantos.
Leiam-me a virgem que se inflama ao ver o noivo
e o jovem que só agora conheceu o amor.
Que alguém, ferido pela mesma seta que eu,
pelos vestígios sua chama reconheça
e diga, surpreendido: "Como foi que o poeta
veio a saber destes meus casos?"

Eu ousava
-recordo-me- narrar as guerras celestiais
e Giges de cem mãos, e voz não me faltava
para dizer de como Tellus se vingou
e Pélion e Ossa vieram a cair do Olimpo.
Nuvens eu tinha em mãos, e o raio com que Júpiter
defenderia os céus.

Portas me fecha a amada:
largo Jove e seu raio, que me saem do espírito.
Perdão: não me serviam, Júpiter, teus raios.
Às meiguices voltei e às leves elegias,
que são as minhas armas, e as palavras doces
amoleceram logo a dura porta.

Os versos
fazem descer os cornos da sangrenta Lua
e recuar os corcéis do Sol, brancos de neve;
o canto esmaga a fauce aberta da serpente
e faz retroceder à fonte a água corrente.
Com os meus versos cedeu a porta; e a fechadura,
em carvalho encaixada embora, foi vencida.
Que me daria o ágil Aquiles, se o cantasse?
Que me adviria de qualquer dos dois Atridas?
Do que errou tantos anos quantos combateu,
e de Heitor que arrastaram os corcéis da Hemônia?
Mas se canto a beleza de uma terna jovem,
como preço do poema ela procura o vate:
eis uma digna recompensa. Adeus, heróis
de ilustres nomes: vossa paga não me serve.
Formosas jovens, vós porém lançai o olhar
sobre estes poemas que me dita o Amor púrpureo.


(Ovídio, Amores II, 1. In: Poesia Grega e Latina.)

Texto latino original:

Hoc quoque conposui Paelignis natus aquosis,
ille ego nequitiae Naso poeta meae.
hoc quoque iussit Amor – procul hinc, procul este, severae!
non estis teneris apta theatra modis.
me legat in sponsi facie non frigida virgo,   5
et rudis ignoto tactus amore puer;
atque aliquis iuvenum quo nunc ego saucius arcu
agnoscat flammae conscia signa suae,
miratusque diu 'quo' dicat 'ab indice doctus
conposuit casus iste poeta meos?'   10
Ausus eram, memini, caelestia dicere bella
centimanumque Gyen – et satis oris erat –
cum male se Tellus ulta est, ingestaque Olympo
ardua devexum Pelion Ossa tulit.
in manibus nimbos et cum Iove fulmen habebam,   15
quod bene pro caelo mitteret ille suo –
Clausit amica fores! ego cum Iove fulmen omisi;
excidit ingenio Iuppiter ipse meo.
Iuppiter, ignoscas! nil me tua tela iuvabant;
clausa tuo maius ianua fulmen habet.   20
blanditias elegosque levis, mea tela, resumpsi;
mollierunt duras lenia verba fores.
carmina sanguineae deducunt cornua lunae,
et revocant niveos solis euntis equos;
carmine dissiliunt abruptis faucibus angues,   25
inque suos fontes versa recurrit aqua.
carminibus cessere fores, insertaque posti,
quamvis robur erat, carmine victa sera est.
Quid mihi profuerit velox cantatus Achilles?
quid pro me Atrides alter et alter agent,   30
quique tot errando, quot bello, perdidit annos,
raptus et Haemoniis flebilis Hector equis?
at facie tenerae laudata saepe puellae,
ad vatem, pretium carminis, ipsa venit.
magna datur merces! heroum clara valete   35
nomina; non apta est gratia vestra mihi!
ad mea formosos vultus adhibete, puellae,
carmina, purpureus quae mihi dictat Amor!




quinta-feira, 18 de setembro de 2014

DE PROCEDIMENTOS E ETNIAS

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Tinham uma servente doméstica afro-descendente. Vestes e avental impecáveis dia após dia... deveria invariavelmente trocar-se ao entrar na mansão... dependências especiais para ela... sentiam orgulho disso... consideravam-se mesmo generosos por tudo o que faziam por ela... tens um banheiro somente teu... nãos uses, por favor, os demais da casa, dissera-lhe madame...
 O relacionamento era bom-dia, Neide... o cardápio de hoje está aqui... lava os vidros da sala de visitas... e sempre assim... tudo no mais absoluto respeito... podes consumir o que desejares no almoço... não te esqueças de guardar teu prato especial e teus talheres nos teus aposentos... tudo isso é só teu... poucos dão essas regalias aos funcionários... usa sempre as luvas... jamais toques em nada com tuas mãos... A senhora precisa de algo mais.?.. até amanhã... Deus te proteja...
CRISO EUROPEIZADO

Tinham asco daquela africana... não toques nela... diziam à neta que chegava da escola... por quê? Perguntava a pequena... ela está suja? ... não... muito limpa... se não, não entraria aqui... sabes... essa gente... pode ter micróbios... vive em favela... baratas... ratos... formigas... e a menina passou a olhar com asco para Neide...
Não precisas trocar a menina... eu e a mãe dela necessitamos exercitar atitudes de carinho e intimidade para que ela se sinta amada... Ficavam todos muito distantes da criada... não gostavam de intimidades... era ela lá... eles ali... somos generosos... ela até pode levar as sobras. Está até mesmo feliz conosco... somos muito generosos... damos frequentes gorjetas... mas termina aí...
Velório na família da Neide... temos de ir... pegaria muito mal... Entram na capela pobre... muito elegantes... bem cheirosos... Porém, ali o odor acre de tudo agredia as entranhas daquele casal tão sofisticado... havia mesmo um ar desagradável de origem ignota... envolvia tudo... as pessoas... o local... o defunto, então... Foram muito gentis... ofereceram-se para ajudar nas despesas... não... ele é nosso... tantos anos mirrando no leito... sozinho... sem queixas... Ficaram o tempo necessário... foram-se... gente importante tem compromisso inadiável... enfim... livres...
Esses ambientes tétricos, constantemente fechados, utilizados apenas para encontros desagradáveis, não raramente trágicos, abrigam espíritos malignos que infundem nos corpos e nas almas dos participantes um ar sinistro... é como se a própria morte espreitasse a todos, por trás das máscaras fúnebres que se apossam das faces dos participantes desses cerimoniais, à espera da ocasião propícia para o golpe derradeiro e fatal... aliados à pobreza, então, chegam à culminância de sua manifestação funérea... Não há religioso ou mago que possa livrar os vivos das emanações da funesta maldição de Adão...
Lá se iam os patrões... a alma leve pela sensação do dever cumprido... felizes para consigo mesmos em razão da generosidade do próprio gesto... afinal, eram do bem... nada temos com a miséria deles, argumentava a madame para seus próprios botões... são orgulhosos... não aceitaram a ajuda... problema lá deles... ninguém pode dizer que não tentamos... todos lá ouviram... Que família generosa! deve ser a opinião daquele populacho... ninguém mais faz isso hoje...
Em casa... banho... roupa limpa...desinfetante... sabe que isso pega... doenças mal tratadas... No entanto Neide, embora pretinha, é de alma branca... mas há negrice em tudo, não desgruda dela, dizia a madame para o esposo, a mais ninguém ela jamais revelaria isso.... é a própria imagem da ineficiência... se não fosse assim, estaria num gabinete de chefia... replicou o marido... Porém, essas verdades todas não estão na ordem do que se possa dizer... não pega bem... ainda mais nestes tempos em que tudo está constantemente posto à prova...
Porém, à tardinha chegou a Lígia da Universidade na capital... um beijão, um abraço apertado na Neide ao entrar pela porta... carinhos nos cabelos dela... outros repetidos beijos... no topo da escada, a mãe esquivou-se... vai te higienizar... da viagem?... não... dela... mãe... deixa disso...Neide é da casa... da família... mais, é minha amiga e já foi minha confidente... a mãe se doera com última revelação... mas engolira a ofensa em silêncio...
Vem cá, mãe... senta aqui...  que pensas tu lá da faculdade?... grande parte de meus colegas são negros... muito mais do que a Neide...  como o faço com os colegas de qualquer outra origem, convivo com eles com a maior naturalidade... trocamos confidências...  uma até mora comigo de uns tempos para cá... iria deixá-la perder o curso?... Essas intimidades eu não aceito, minha filha... não somos racistas... somos diferentes... a própria natureza nos fez assim...  são eles para lá e nós para cá... só isso... pronto... isso é ser do mal?
IMAGEM DE CRISTO SEGUNDO A PESQUISA

E achas que isso tudo que vocês fazem seja o quê, mamãe...?   amor ao próximo? Aceitação dos diferentes? É desses procedimentos que papai e a família tanto se orgulham? Essa é a justiça social que tanto vocês afirmam defender?
Mas, minha filha...
Vai, mãe, vai para teu oratório, rezar para teu Cristo loiro europeizado, enquanto vou matar saudades da Neide...

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

OS KIBUTZIM - FAZENDAS COLETIVAS

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Os kibutzim são colônias agrícolas coletivas muito utilizadas de há muitos anos em Israel. O termo kibutz provém da palavra do hebraico “kvutza”, cujo significado é grupo. Os primeiros kibutzim surgiram na Rússia entre 1881 e 1884, no período dos pogroms, isto é, ataques sistemáticos contra os judeus. Como estavam confinados em pequenos vilarejos pelo império russo, iniciaram a trabalhar na agricultura em coletividade.
KIBUTZ
A segunda investida dos russos contra os judeus ocorreu no início do século XX. Com o recrudescimento da política russa contra os membros das comunidades hebraicas durante a guerra russo-japonesa, iniciou-se uma migração em massa dos judeus principalmente para os Estados Unidos. Uma parte deles, porém, começou a estabelecer-se na Palestina. Aí, a partir de 1903, começaram os primeiros kibutzim. Tratava-se de uma idéia revolucionária baseada em uma sociedade de voluntariado em que as pessoas vivem sob os termos de um contrato social específico,  fundado em princípios sociais e econômicos igualitários e comunitários.
As principais características da vida no Kibutz são o coletivismo em termos de propriedade e cooperação nas áreas de educação, cultura e vida social. Portanto, os membros do Kibutz pertencem a uma unidade maior do que seus próprios círculos familiares.
O funcionamento do kibutz funda-se no princípio sociológico comunitário, estabelecendo uma regra básica: a de  que todas as receitas geradas pelo kibutz e seus membros são destinadas a um fundo comum. O fruto do trabalho coletivo é usado primeiramente em favor do kibutz, a fim de realizar os investimentos necessários a garantir a manutenção e crescimento da comunidade. Há regras que asseguram o apoio e o respeito mútuo entre os membros.
O resultado do trabalho coletivo, feitos os investimentos indispensáveis da coletividade, é rateado pelas diversas famílias, considerando o número de membros de cada uma. Não há diferenciação de pagamento nem pela qualificação do indivíduo, nem pela função que exerça no grupo. Em termos de educação, todas as crianças submetem-se ao mesmo processo educacional e recebem as mesmas oportunidades.
O kibutz é administrado segundo o sistema de democracia participativa direta em que os indivíduos têm uma influência direta sobre as decisões da comunidade. Nesta comunidade auto-suficiente, a ética do trabalho coletivo desempenha um papel fundamental.
Existem, no entanto, outros kibutzim com outro tipo de funcionamento, cujos membros recebem diferentes salários e acolhem trabalhadores temporários como estudantes nos períodos de plantio ou colheita. Esses contratam operários até m esmo de outros países, pagando uma taxa estipulada, geralmente levando em conta a produtividade. Muitos estudantes europeus participam dessas atividades como experiência profissional e até mesmo para obter algum dinheiro.
Essas fazendas coletivas, com a criação do Estado de Israel, tornaram-se a grande fonte de produtos agrícolas para a novo estado, e se multiplicaram por todas as regiões, acolhendo as famílias judaicas que migravam para a nova pátria de todas as partes do mundo.
KIBUTZ

Os kibutzim também são responsáveis por inúmeras pesquisas agrícolas e desenvolvimento de modernas tecnologias agrícolas como técnicas de irrigação e melhoramento genético. Assim, Israel tornou-se um dos maiores fornecedores de hortigranjeiros e flores para toda a Europa.