Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Eu descia
pela margem direita do rio Jauru. Uma estrada de chão batido... terra
vermelha... havia passado pela enorme ponte de madeira da estrada asfaltada
que liga Cuiabá a Porto Velho... dobrara à esquerda no sentido em que o Jauru
leva as suas águas para jogá-las no rio Paraguai... e acabara de passar pela
pequena Porto Espiridião...
Era
pouco mais de meia tarde e a temperatura beirava os 40º Celsius... à medida que
a camionete da universidade que usávamos avançava entre os arbustos da margem
do rio e as grandes árvores da floresta à direita um rolo de pó alaranjado
permanecia no ar como se nada fluísse naquelas paragens distantes de todos e de
qualquer coisa...
Aí
tudo é enormemente grande... os rios... as árvores... as distâncias. ...longe é verdadeiramente longe... ali é sempre e muito mais para lá do que seria
em outra parte... Celular... não... TV, em poucos lugares... vilarejos
perdidos... porém muito diferente do que está no imaginário do homem do sul...
tudo tem dono... fazendeiro... posseiro... grileiro... mais a enormidade do impensável...
Quando
um cidadão possui de 800 a mil hectares nesses espaços perdidos, ele diz que
mexe com sítio... se diz que tem uma fazenda, deve ter pelo
menos 5.000 hectares... mas há as de 30.000 hectares e muito mais até...
Um indígena
jovem havia chegado de barco pelo Jauru à casa onde nos hospedávamos, professor
e um grupo de estagiários do sul... sua irmã, lá dele, estava num parto
complicado... peguei a pick up em que viajávamos e chamei uma japonesinha sextanista
de medicina... em companhia do rapaz, descíamos rumo a aldeia dos Kaiapós em
que nos aguardava a parturiente...
Depois
de rodar por quase duas horas, chegamos em uma tradicional aldeia indígena... as
construções, uma mistura entre oca e rancho... mistura cultural e racial... nossa estagiária era muito
prática e habituada a tais ocorrências... isso me tranquilizava... embrenhou-se
na casa e eu fiquei com a mãe da moça em uma peça grande, de chão batido, muito
pó... sem móvel algum... trouxeram-me um cepo enorme e descansei minhas pernas
doídas sobre ele enquanto os demais acomodaram-se naturalmente ao solo com os
joelhos elevados e os pés cruzados...
A
mãe me disse que se tratava do primeiro parto da jovem de dezoito anos... muito
velha para isso, me dizia... enquanto uma menina de seus dez anos, praticamente
nua, sentou-se diante de mim, sorrindo... e passando às minhas mãos uma pequena
cuia fechada e seca, cheia de sementes que pipocavam a qualquer movimento e
beijou-me carinhosamente...
Perguntei-lhe
pelo nome ao que ela me respondeu... Juliana,
mas me xingam de Jarina... e se foi... Então comecei a falar com um senhor
mais idoso que tinha ares de chefe... indaguei-lhe sobre o modo de
sobrevivência deles ali... que de fato eu já sabia... queria ver de novo...
Convidou-me
para fora... eles não são caseiros... já de há muito me tocara disso...
mostrou-me a roça... não mais de vinte pés de milho... um pouco mais de
mandioca... as folhas já haviam caído... só os talos marcavam onde se escondiam
as raízes comestíveis... ninguém se atreveria aqui no sul a chamar aquilo de
roça... olhe lá uma horta... isso tudo num emaranhado de capins e cordas de
toda a espécie...
Preocupado,
perguntei por que não plantavam mais... ao que ele me respondeu com uma
pergunta... pra quê?... isso dá pra nóis...
a resposta deixou-me absolutamente desarmado... eles não têm nenhuma
preocupação em produzir qualquer excedente... lembrei o meu tempo na roça... um
hectare... lavourinha... lavoura era lavoura... se olhava longe... depois havia
as lavouras médias das fazendas... 20 ou 30 hectares... e as lavouras grandes
mesmo... mil quadras de arroz... ou as grande lavouras de soja ou algodão do
Mato Grosso... 5.000 ou mais hectares...
Isso
conduziu-me a um inexorável conflito... para que acumular tanto?... quando tudo
deu certo... o menino na sala... passou por todos... a moça de pé... a japonesinha
sorrindo... presentes de toda espécie... para a doutora... para mim...
Juliana trouxe-me duas bananas geminadas... um Felipe doutor... Felipe?...
nunca soube o que era... por fim... duas meninas... um lindo jabuti... disse que onde eu moro não tem casa para
ele... não precisa... ele faz numas pedras... como explicar para uma indiazinha
da floresta que não dava... beijei-lhe os longos cabelos negros e botei o bicho
na viatura... precisava cobrar deles a gasolina... mas como?... deixa pra lá...
pra mim... o infinito há de prover...
E tirei-me
dali confuso, rolando silencioso pela estrada solitária de pó e sem vento... valores...
preocupações... quanta tralha inútil enche nossas casas... nossas mentes...
nossas almas... pra quê?
Emocionei-me ao ler teu texto. Verdade verdadeira! Saudades de tudo o que vi durante 19 anos de trabalho em diferentes áreas indígenas. É o texto que eu escreveria ... se tivesse a tua competência e generosidade no repartir o conhecimento. Penso que tenho um débito com as 12 etnias com que trabalhei....quase nada escrevi sobre o muito que aprendi com elas.. Faltava-me tempo naquele tempo....Hoje, falta-me ânimo no tempo de vida que me resta.
ResponderExcluirEscreve sempre, meu querido irmão.
Oi, querida, tua generosidade me faz feliz. Acho que ainda é tempo. Lembro do tempo em que atuavas na amazônia, querida maninha. Quem sabe um artigo de quando em quando para dividir com a gente a longa experiência que acumulaste neste campo. Tens muito mais do que eu a dizer.
ExcluirQuerido professor, que belo texto! Quanta sensibilidade, quanta habilidade e quanta riqueza. Certa vez, na sala de aula, a Cristina falou para a Kamila: "não há nada igual a um homem sensível, né?. Um homem sensível é tudo de bom; encanta." De fato, ela comprovou que seu discurso é verdadeiro. Está casada há anos com um dos homens mais sensíveis que já tive o prazer de conhecer. Obrigado pela partilha do ser encantador que tu és. Um grande abraço!
ResponderExcluirObrigado, querido. Vocês são muito generosos. Estou organizando um livro de crônicas.
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