Prof. Dr. Oscar Luiz Brizolara
A chuva rolava quente ladeira
abaixo, engrossando à medida que se aproximava do fundo do vale. A água tomava
a cor avermelhada do pó que se acumulara fino e leve por dias seguidos de sóis
escaldantes, pisoteio de animais pesados e de lerdas carretas que se arrastavam
numa direção e na outra oposta movidas pelos sonhos daquelas gentes simples e
modestas. Nada de televisão, nem mesmo de rádio...
O velho Morales se havia criado ali
mesmo. Não tinha documento algum. Naqueles tempos que precediam o trabalhismo
oficializado, não era preciso. Era a segunda metade do século XIX, lá pelos meados
de 1868, um pouco mais. Setembro quase acabava. As grandes águas enchiam
arroios e barragens e se armazenavam pelas brenhas das montanhas de onde
escorreriam pelos meses afora, mitigando a sede de bichos e gentes
Primeiro, estivera na estância
do Coronel Py Crespo, para o qual cuidara de bicheiras de gados com benzocreol
e, mais que tudo, esquilara milhares de ovelhas, amontoando toneladas lã, ao
lado de outros tantos sem nada como ele. Depois, passara à estância dos Souto,
onde ficara até que a companheira, depois de dezesseis partos, muitos enterros
de pequenos e grandes, seus e dos outros, fora ela também enterrada de sob um
montículo de terra vermelha na colina solitária dos ausentes.
Quando não tinha mais préstimo
na casa, o capitão Souto mandara seus peões construírem para ele um rancho
barreado, de pau a pique e torrão para o qual se transferira a fim de esperar a
morte. Um velho cão, o Guarani, o acompanhava. Sua moradia estava numa
encruzilhada a distância estratégica da sede da fazenda. Devia reparar em
tudo... nos passantes... se estivessem armados. Deram-lhe um velho petiço para
avisar nas casas, se novidade acontecesse. E foi juntando cachorros perdidos,
sem dono. Diziam que comia cachorro.
Não era verdade. Depois que
todos se tinham ido, uns para o cemitério, outros para a cidade, eles eram de
companhia. Havia perdizes, perdigões e pombas selvagens. Carregava sua 28 de
dois canos e se ia pelo campo. Trazia caça para si e para os cães. Todos os pobres
faziam assim.
Pois nessa tardinha chovia, como
já se viu. Morales observava as formigas que haviam saído à busca de folhas
para seu pão lá delas. Como elas sabiam da chuva? É bem verdade que sempre havia
umas patetas, que a água levava. E enquanto coçava os pés com um caco de telha,
sentado à soleira de pedra bruta, consultando o bestunto, vasculhava o passado.
Pensava ser soldado como seu pai
que lutara com Bento Gonçalves. Mas viveu no entre-revoluções. Pra mim, assuntava com seus botões, não teve vez... Se tiver revolução... tô
quebrado... não presto mais. Quem ia me querê? Posteiro é resto. É aposentadoria de peão que
espera a morte. Sem documento. Sem nada. Em pouquíssimo tempo ninguém mais saberá
de quem é aquela cruz. Os netos perguntando por quem era seu avô... Sei lá, diz
a mãe, teu pai diz que foi um tal de Morales. E o menino esqueceu para não
lembrar nunca mais.
E
a chuva corria pro vale, chorando um murmúrio, no silêncio da tarde, enquanto o
sabiá e a rola aguardavam o sol para chamarem por seus amores na tarde seguinte
no fluxo contínuo da vida que corre. Para onde?
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