Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
A crase é um fenômeno geral das línguas, já constatado de há
muito tempo. Na língua grega clássica já se pode perceber esse processo.
Veja-se o seguinte caso: ἐγώ καὶ (egô kái), cuja tradução é “eu e”, transforma-se
em καγώ
(kagô), ou seja, inverte-se a
distribuição dos termos, καὶ ἐγώ (kai
egô) em que se fundem o alfa (α) de καὶ, com o
épsilon (ἐ)
de ἐγώ, resultando uma única palavra καγώ,
desaparecendo o iota (ὶ) final
de καὶ.
No francês falado contemporaneamente podem-se
constatar inúmeros exemplos de crase como é o caso de “M'enfin! por "mais enfin"
(Mas, enfim!). Em espanhol, há a crase da preposição de com o artigo el, resultando del. Assim se poderiam encontrar exemplos de crase de vogais em
muitos outros idiomas.
As línguas não são estáveis, como qualquer outro elemento
social, estão em constante transformação pelas mais diversas razões. Desde as
mudanças no mundo pragmático, com a criação e o desaparecimento de certo tipo de objetos, até os contatos
com outros idiomas que provocam importações de termos e expressões ao gosto e
ao sabor de cada momento histórico. Tudo isso tem resultado mudanças na língua.
Essas alterações foram mais drásticas em momentos históricos
de conquistas de povos por outros povos. Talvez o processo mais amplo de dominação no ocidente tenha
sido a conquista romana de milhares de povos e a consequente imposição da
língua latina aos dominados. Essa imposição gerou mesmo cinco idiomas e
inúmeros dialetos.
Como as línguas fundam-se, em sua essência, na oralidade, as
mudanças foram fônicas. Quando um povo deixa de falar um idioma para adotar
outro, isso não se dá de imediato. É um fenômeno lento em que os falantes
vão-se, primeiramente, tornando bilíngues. A seguir, surgem os novos falantes,
que adotam o novo idioma.
Porém, o idioma abandonado ou de uso paralelo, deixa traços
que se espelham no novo idioma adotado. Somente um pequeno grupo de falantes,
de indivíduos mais cultos e preparados, consegue dominar quase que perfeitamente
o manejo fonético, sintático e mesmo semântico da nova língua.
A grande maioria dos falantes realiza o novo idioma com
grandes alterações em todos os níveis, desde a realização fonética dos sons até
o emprego semântico dos vocábulos. Criam-se mesmo interlínguas, que se compõem
de elementos de dois ou mais idiomas.
Um dos aspectos a serem considerados é que, nesses tempos
primitivos em que houve a maioria das grandes transformações de idiomas, a
quase totalidade da população era analfabeta. Sabe-se que a forma escrita da
língua reforça a manutenção de estabilidade das estruturas representativas.
A crase é o resultado da fusão de fonemas vocálicos nessas
mudanças. Façamos algumas demonstrações práticas em relação à língua portuguesa. A palavra latina nudus, por um alteração fonética, teve o
apagamento do fonema /d/. O resultado deveria ser “nuu”. Como o não havia
nenhum prejuízo de significado, a palavra ficou simplesmente nu. Então,
diz-se que houve uma crase do “u” da
primeira sílaba “nu” de nudus, como o
“u” da segunda sílaba “dus”. Com o apagamento do “s” final, a palavra latina nudus teve como resultado a palavra
portuguesa nu. Isso é crase.
Houve uma tendência geral na passagem das palavras da língua
latina para a língua portuguesa, através de séculos, de apagamento de toda a
consoante sonora e entre duas vogais, de sílaba não tônica. Isso provocou numerosíssimos
fenômenos de crase. Na palavra latina pedis
ocorreu isso. Primeiramente, apagaram-se o “d” e o “s” final. Depois,
fundiram-se por crase os dois “es”, resultando a palavra pé. Assim também, coloris perdeu o “l”, o “i” e o “s”,
fundiram-se os dois “os”, resultando o termo cor.
Houve também fenômenos de crase na junção de duas palavras. É
o caso da fusão do termo “outra” com “hora”, em que o “a” final de “outra” se funde com
o “o” inicial de ”hora”, resultando o termo outrora. Também na junção da
preposição “de” com o pronome “este”, resultou a palavra deste.
A crase que a gramática da língua portuguesa ordena marcar
com acento grave (à) é resultado deste último caso de fusão. Ela ocorre quando
a regência de um verbo exige a preposição a e o substantivo que compõe o objeto
exige o artigo a. Quando se diz: Fui à casa de um amigo. O verbo ir é
transitivo indireto, exigindo a preposição a. Quem vai, vai a algum lugar. Como
essa casa é uma casa especificada, deve ser determinada pelo artigo a.
Resultaria na construção Fui a a casa de um amigo. Esses dois “as”, fundidos em
um único a constituem o que se chama de crase que deve ser marcada com o acento
agudo.
Essa é apenas uma reflexão para principiantes nos estudos da
linguagem. Os usuários experientes de nosso idioma seguramente julgarão
dispensável esta demonstração. Porém, eu me pergunto sobre a necessidade da
marcação da crase com acento gráfico, de acordo com a gramática de nossa língua.
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