Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Como aquele ancião que, de quando em quando, abria o seu
alforje e dele tirava coisas antigas e novas para contemplá-las e partilhar com
os transeuntes, por vezes, sinto uma força irresistível que me impele aos
textos da minha infância e da minha juventude nos quais busco arrimo para a
saudade que me surpreende a alma.
Eu não tive cartilha. Fui alfabetizado pela velha antologia
do nosso idioma “Seleta em Prosa e Verso”, do inesquecível intelectual Alfredo
Clemente Pinto (1853-1938). Era uma coletânea de textos e poemas de variados
autores, cuja réplica da versão original ainda guardo comigo. Ali catávamos a gramática e desenvolvíamos o gosto de visitar textos
bem escritos.
Um poema que seguidamente visita meu espírito, que, de tanto
relê-lo guardo de memória, intitula-se “O Rei e o Sapateiro”. Dirão muitos que
não se situa no que hoje se julga sociologicamente, ideologicamente e politicamente
correto. Que seja. Continuo amando esses velhos versos do poeta português já bastante
esquecido também Bulhão Pato (1828-1912).
O REI E O
SAPATEIRO
Era uma vez... quando foi
Eu bem ao certo não sei!
Porém sei que era uma vez
Um sapateiro e um rei.
Olha, Helena, o sapateiro
Era um pobre remendão,
Casado e com quatro filhos,
Que vivia quase sem pão.
No recanto de uma escada
Noite e dia trabalhava,
E por alivio de mágoas,
Esta cantiga cantava:
"Ribeiros correm aos rios,
Os rios correm ao mar;
São tudo leis deste mundo
Que ninguém pode atalhar:
Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar!"
O rei tinha montes d'ouro
E joias em profusão,
E tinha mais que ouro e joias,
Pois tinha um bom coração.
Em vendo um pobre, acudia-lhe
Sem que o soubesse ninguém,
Que assim quer Deus que se faça.
E assim o faz tua mãe.
Por muitas vezes saía
Sem criados de libré,
E sozinho e disfarçado
Corria a cidade
a pé.
Na rua do sapateiro
Passa o rei e ouve cantar:
"Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o
trabalhar."
Isto uma vez e mais de uma
com voz que o pranto cortava,
E o rei condoeu-se d'alma
Do velho que
assim cantava.
Chegado ao palácio ordena
Que lhe arranje o seu copeiro
Um bolo, do melhorio,
E que o mande ao
sapateiro.
No melhorio do bolo
E' que estava o delicado,
Pois era de peças d'ouro
Todo, todo
recheado.
Os pequenos, quando o viram,
Helena, imagina então,
Os olhos que lhe deitaram
Eles que nem
tinham pão!...
Mas o pai a um seu compadre,
Que às vezes o socorria,
Foi dar de presente o bolo,
Sem ver o que
nele havia!
No dia seguinte o rei
Torna de novo a passar,
E com grande espanto seu
Ouve ainda o
velho cantar:
"Ribeiros correm aos rios,
Os rios correm ao mar;
São tudo leis deste mundo
Que ninguém pode atalhar:
Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o
trabalhar!"
Mandou-o chamar ao palácio,
E agastado então o rei
Lhe diz: " Que é das peças d'ouro
Que no bolo te
mandei?"
O pobre do sapateiro
Tremendo conta a verdade:
Abalou-se novamente
O rei na sua
piedade.
"Toma esta saca", lhe diz,
"Ao erário vai daqui
Enchê-la de peças de ouro,
Que as peças são
para ti."
Oh! Helena, supõe tu
Qual foi a sua alegria,
Vendo que um tesouro aos filhos
Naquela saca
traria!...
Encheu-a a mais não poder,
Pô-la ás costas e partiu;
Deu quatro passos...nem tantos,
E nisto morto
caiu!...
Na mão direita lhe acharam
Um papel onde se lia
Esta sentença, que o povo
Ser sobre humana
dizia:
"Eu para pobre o criei,
Tu rico fazê-lo queres;
Agora ali o tens morto:
Dá-lhe a vida,
si puderes."
Bulhão Pato.
Obrigada por publicar esse poema que não sabia mais o nome do autor. Também para mim surgem recordações da minha adolescência quando ele foi recitado por minha irmã na Escola Normal de Ouro Preto.
ResponderExcluirMas será que não tem algum engano na sexta estrofe?
Na minha memória ressoava: "assim o fazia também."
Obrigado, querida, pelo estímulo a minhas publicações. Pode haver outras versões, mas esta é a que está na antologia de Alfredo Clemente Pinto, intitulada "Seleta em Prosa e Verso". Bom fim de semana.
ResponderExcluirBoa noite, não imaginas a alegria de encontrar esta letra. Minha avó cantava uma canção de ninar com esta letra, mas pouco me lembrava dela, mas, tão-somente, de algumas frases e da melodia. Agora poderei ensaiá-la e quem sabe, um dia, cantar para os meus netos. Obrigada!
ResponderExcluirFico feliz por ter contribuído.. Obrigado pelo prestígio da visita.
ResponderExcluirDeclamei este poema na década de 50,na escola primária, em Goiânia.
ResponderExcluirTempos que coronavirus não conseguem apagar.
Obrigado pela visita.
ResponderExcluirMinha mãe cantou pra mim umas cantigas que minha bisavó cantava pra ela, em uma delas lembrava apenas alguns versos, fui pesquisar e ela confirmou que era essa!
ResponderExcluir"Ribeiros correm aos rios,
Os rios correm ao mar;
São tudo leis deste mundo
Que ninguém pode atalhar:
Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar!"
Obrigada pela postagem :
Nossa que legal!Meu cunhado recitava pra mim quando era menina nunca esqueci!
ResponderExcluirObrigada. Não saia da minha cabeça alguns versos, porém, a maioria não conseguia me lembrar. Aprendi quando estudava, há muitos anos , no então Grupo Escolar Pandiá Calógeras, de Belo Horizonte. Vou copiar e guardar com muito cuidado.Obrigada por me proporciona esse prazer. Elma V
ResponderExcluirasconcelos