sábado, 17 de novembro de 2018

PREFÁCIO DO MEU LIVRO "SANCTA LUCREZIA DEI CATTANEI"


PREFÁCIO DO MEU LIVRO "SANCTA LUCREZIA DEI CATTANEI", escrito por meu amigo Aldyr Garcia Schlee, jornalista, professor, escritor dos melhores de nossa pátria, espírito sagaz e arguto, mais que qualquer outro.
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Oscar Luiz Brisolara, o autor deste romance, é um respeitado e conceituado professor que se distinguiu por trinta anos nas áreas de Latim, Linguística, Literatura e Língua Portuguesa da Universidade Católica de Pelotas e que agora atua no Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande.

Ao nos apresentar seu livro de estreia, que tenho aqui a satisfação e a honra de prefaciar, Oscar Brisolara afirma-se também como ficcionista, aproveitando-se de um importante lastro cultural que, incluindo o domínio da língua portuguesa e do latim, adquiriu em aprofundados estudos feitos quando seminarista – e que o fizeram sempre interessado em temas como os que tão bem romanceia neste seu Sancta Lucrezia dei Cattanei, uma surpreendente, inquietante e original história de Lucrécia Bórgia, sublinhada muito apropriadamente com a frase “solatio est miseris habere communis malorum”.

De Lucrécia Bórgia muito se soube, como também de sua família e do tanto que se atribuiu a ela e à família; mas já se sabe pouco ou quase nada, na medida em que o tempo foi se encarregando de borrar e apagar o que se sabia – e toda a documentação, todos os textos, todas as imagens, todos os registros artísticos quedaram-se como que perdidos num passado cada vez mais remoto e inacessível. Nem mesmo a literatura ou o cinema – nem a televisão recente – incursionando pela vida dos Bórgia, têm conseguido recuperar o que já (ainda) não sabemos antes de ler Sancta Lucrezia dei Cattanei.

A História conta – e consta em qualquer anotação vulgar – que Lucrécia Bórgia era filha do Papa Alexandre VI. Nascera em 1480 e morreria com apenas 39 anos de idade, tendo casado três vezes para satisfazer interesses políticos do pai. Aos 13 anos, fizeram-na esposar João Sforza, mas o casamento seria anulado por Alexandre VI para que ela se casasse com Afonso de Aragão, assassinado depois por interesses da família; finalmente, seria feita esposa de Afonso d’Este, Duque de Ferrara – e se tornaria Duquesa de Ferrara.

As notas biográficas de Lucrécia Bórgia geralmente não dizem que a mãe dela, Rosa Giovanna dei Cattanei, era uma prostituta conhecida por Vanoza dei Cattanei. Também não revelam que “Orlando Furioso”, a obra prima do grande poeta Ariosto, era dedicada a Lucrécia; e que César Bórgia, irmão dela, fora tomado como modelo por Maquiavel em “O Príncipe”. E não dizem, ainda, que ela seria e foi Sancta Lucrezia dei Cattanei, eternizada numa pintura de Bartolomeu Veneziano, na qual aparece com um seio à mostra, um enigmático e desafiante olhar enviesado e algo na mão direita – talvez um punhal sangrento, em forma de crucifixo, que o leitor verá na capa deste romance.

A imagem de Santa Lucrécia, aliás Sancta Lucrezia dei Cattanei, na capa deste livro, é bem a imagem da protagonista do romance, muito mais próxima da literariedade com que foi construída por Oscar Brisolara do que da obscura e multifacetada realidade com que terá sido vista, retratada e esquecida por seus coevos. Já por aí começa a se distinguir, por sua singularidade, esta obra de ficção posta desafiadoramente sobre a História.

É assim que, tratando de História, Brisolara faz Literatura. Faz Literatura, trabalhando predominantemente com e a partir da memória de Lucrécia Bórgia, personagem histórica transformada em figura literária.

A memória de Lucrécia, com a qual o escritor trabalha neste livro, recuperando-a entre muitas e reveladoras vozes, insuspeitadas confidências, disparatados delírios, imprevisíveis horrores e confessados suplícios, é contraponteada aqui e – de certa maneira – reposta no tempo por uma sucessão de diálogos entre dois personagens vivendo no presente: um, crente; e, um outro, ateu.

O livro, desenvolvido em torno de cinquenta aparentes capítulos, compõe-se na verdade em um bem elaborado e muito adequado arranjo dessas partes em conjuntos que nos remetem ao desenvolvimento da trama ficcional, a qual se alterna num crescendo entre vozes do passado (principalmente de Lucrécia) e vozes do presente (muito especialmente as do bancário Pio Sguelti, crente, e do professor Demétrio da Silva, ateu).

O leitor perceberá, no andamento da leitura de Sancta Lucrezia dei Cattanei, que o autor, muito habilmente o prenderá numa teia de interesse, dúvida e mistério, construída e desenvolvida em pelo menos três grandes tempos (ou grandes partes) do livro. Uma, inicial, compreendendo vozes, confidências, delírios e horrores, com mínima ocorrência de diálogos entre o crente e o ateu; outra, final, predominantemente ocupada por nove trechos atribuídos a Sancta Lucrezia dei Cattanei e outros nove, de diálogos presentes entre o bancário e o professor. Intermediando esses grandes tempos da história (memória) de Lucrécia, há um desfilar dos marcantes “suplícios de Savonarola” e das pungentes vozes de “uma prostituta romana” (sem interferência do professor ateu e do bancário crente).

A tensão da leitura (escritura) constitui marca preponderante e característica desta obra de estreia de Brisolara que, tendo sua temática voltada para o velho, inscreve-se desde logo e por isso mesmo, como algo de novo no plano geral da narrativa literária brasileira.

O novo, finalmente, apresenta-se aqui como forma de assediar, de invadir, de conquistar e de incorporar o velho. O novo que aproveita e recupera o ontem esquecido, o passado oculto, o decorrido inimaginável – e alcança no velho uma nova dimensão estritamente literária, criativa e original.

Oscar Luiz Brisolara estreia, assim, com um romance cujo fascínio e novidade estão em não ser necessariamente um romance histórico nem uma biografia de Lucrécia Bórgia; mas em ser a reconstrução ficcional da história de uma certa Sancta Lucrezia dei Cattanei, sempre e sempre posta diante do leitor como uma protagonista literária de bem urdida e cativante trama.

O autor assume-se, assim, como um escritor pronto e acabado como seu próprio romance. Recuperando a memória de Lucrécia Bórgia e legando-nos com seu rememorar a lembrança de Lucrécia, ele alcança já no seu primeiro livro, a condição de um escritor que sabe o que quer, sabe o que faz e sabe o legado de que é capaz, no desenvolvimento de sua atividade literária.


Sou imensamente grato ao Aldyr por mais este prefácio que muito acrescenta a minha primeira obra no campo da ficção literária. Oscar Luiz Brisolara.