terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O SONHO DE UM PEQUENO LENHADOR


Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Teria uns doze anos. Seu irmão, dois a menos. Chegaram ao proprietário do eito. Cada um com seu machado.
- Devem cravar duas estacas de cada lado para fazer a pilha. Cada pau deve ter um metro. Um cabo de machado. Pago no sábado. Sempre só no sábado. Três reais por metro.
É preciso destacar que, naqueles tempos, não havia motosserra. Toda lenha era feita a mão. Machado e braço humano. Quando as árvores eram muito grosas, havia os serrotes traçadores, puxados pelos braços de dois lenhadores, num vaivém, até o troco tombar.
Pois, os dois se achegaram, cada um a uma árvore e principiaram a bater no tronco, com os ferros afiados. Os machados pesam mais de 1kg em aço bruto. Quando o fio do aço atinge o tronco, o cabo vibra na mão.
As árvores não eram exageradamente grossas. Os trocos mais avantajados não passavam de 20cm de diâmetro. Além do mais, a árvore viva, verde é mais cortável do que um troco seco, morto.
Assim, foram vinte, trinta batidas de lâmina afiada para ouvir-se o tombar das duas primeiras plantas. Então, era desgalhar. Depois, partir os trocos em pedaços de metro, que deveriam ser empilhados em montes geométricos para a medição.
Como eram apenas eucaliptos, cujos troncos são bastante retos, as pilhas ficavam parelhas e facilmente mensuráveis. Desse modo, abatendo troncos, decepando varas, metro a metro, o dia foi correndo.

O sol subindo no céu claro e, pelo meio-dia, parecia cozer os cérebros dos meninos,  cobertos de cabelos bastos, por sob os chapéus de palha, ensopados de suor. Haviam abatido seis troncos cada um, que, somados, não passavam de um metro cúbico.

Dirigiram-se, então, ao outro lado do eito. Ali, quatro fortes rapazes, com mais de vinte anos, cada um cortava dez metros cúbicos por dia, a R$ 3,00 por metro, perfazendo um total de 40m3 diários, a cada jornada faziam jus a R$ 120,00. Assim, numa semana de seis dias, receberiam R$ 180,00 reais cada um.
Voltaram para o próprio eito, para devorarem a marmita fria e tocarem avante obra e sonho. Eles, que haviam cortado meio metro cada um em meio dia, produziriam dois metros no dia todo, se o cansaço e os calos das mãos permitissem, ou seja, R$ 3,00. Na semana, seriam R$ 18,00. O sonho era modesto. Decidiram prosseguir.

No segundo dia, as mãos cheias de bolhas ardiam severamente só ao aperto do cabo da ferramenta. Enfrentaram a dor, as bolhas explodindo, a carne nua exposta à madeira rija de cabo e tronco, os braços pesados, os troncos renitentes em deitar-se no monte e a produção caindo.
E assim, retornaram, jornada após jornada, a semana inteira, por pura teimosia. As bolhas infeccionadas, os músculos doendo, a madeira cada vez mais dura e pesada. O pai, em seus silêncios, assuntava com a própria alma, remoendo as aprendizagens necessárias, no trato com a vida. Arrastaram-se, no fim de tudo, pela manhã de sábado para receber o fruto do próprio esforço desumanizante.
O dono mediu a pilha. Mal feita, disse... frouxa... correu o metro novamente... olhou os troncos... Mal cortados, afirmou com o cenho franzido e puxou do bolso seis reais que passou às mãos do mais velho, dando-lhes as costas, com passo pesado, em cortante silêncio.
Retiraram-se lentamente... machados aos ombros... uma lágrima nos olhos do mais velho... o outro nem se dera conta da miséria recebida... Engolia a dor... rememorava as pequenas esperanças de um brinquedo para o Natal... mas, com aquilo? nada... absolutamente nada... Uma cruel desilusão turvou sua vista e maculou seu espírito... Titubeou... e o passo tropeçou no solo irregular... pés e alma pareciam caminhar por rumos distintos... E o sonho parecia morrer para sempre, naquela alma cândida...

Como reverter aquele destino tão inexorável... com mãos tão sensíveis e frágeis... e almas tão ingênuas e amarguradas?... Aí estava a encruzilhada de duas misérias: a indigência ou o crime... Haveria alguma outra alternância de perspectiva, para aquelas pobres criaturas desgraçadas, na Terra Prometida, onde até às aves silvestres, há sobeja abundância?

O VAGA-LUME E O MONGE


Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Em Bratislava
A noite completa caíra sobre os campos enegrecidos. Lua nova. Apenas as estrelas no céu. Como um fumo, o negror da noite entre os outeiros e as estrelas, delimitava a borda dos bosques perdidos naquele ermo distante dos homens e da civilização.

Porém, riscos luminosos dourados cortavam o ar em todos os sentidos. Um calor abafadiço subia do solo e envolvia os seres viventes por banhados e campos, canhadas e rochedos aprumados apontando para o céu calado e brilhante.

No sul, o Cruzeiro, depois as Três Marias, e alguns pontos brilhantes maiores destacavam-se de uma poeira luminosa que se perdia no infinito sem medida, ao correr do olhar do observante perdido.

De quando em quando, uma nuvem, esvoaçante e clara, enxugava o halo das estrelas menos luzidias, e depois se perdia no horizonte, por detrás das cordilheiras longínquas.
Sentado num rochedo duro, o velho monge orava a seu Deus embuçado entre estrelas e crenças. Esses pirilampos eram as metáforas passageiras das estrelas perenes. Multiplicavam-se, eles na terra, elas no firmamento infinito.

Noite de pirilampos
Os agricultores gregos, há milênios, procuravam no horizonte as colunas que sustentavam o véu luminoso, pleno de archotes, na morada dos deuses do bem. Do Olimpo abençoado, as divindades curavam dos humanos, disputando donzelas e rapazes. Os homens, cansados de procurar os traços do próprio destino, percorriam, cada qual, seu vale de lágrimas e dores, aguardando a sorte que lhes tocava, procurando-a nos caminhos das estrelas.

O santo monge, com o olhar perdido e a alma na contemplação divina, seguia os traços dos vaga-lumes, que apontavam para o infinito. Lembravam-no, em seus rápidos e passageiros traçados luminosos, a brevidade do estágio humano na terra.
Por seu lado, as montanhas apontavam para os astros brilhantes, no céu silente e magno. Eram o apelo do Ser Infinito que lhe assegurava a eternidade da existência humana, após esta jornada probatória e breve.
Nos jardins do Louvre

Um pensador solitário, percorria os caminhos escuros e perdidos dos campos, encantado com a luminosidade, contrastando entre as trevas, sem a fé revelada do monge, nem a ingenuidade romanesca do agricultor. Seu espírito perquiridor buscava, ora, o caminho transitório e frágil do voador luminoso, ora o traçado inflexível dos astros em galáxias sem conta, semeadas de há bilhões de anos, no vazio insondável do universo. Céu... terra...  espaço... seres... infinito... finitude... princípio... fim... inferências sem perspectivas de uma certeza segura... Se fosse um simples agricultor... seria apenas mais um ingênuo peregrinante...  se fosse monge, seria mais um crente... Cismava o sábio em seu peregrinar noturno... incerteza... é bem?... é mal?...


segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O MONGE E O PINTASSILGO


Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara 
O monge era extremamente idoso. Beirava um século. E era, principalmente, muito amado entre o povo da região. Ninguém sabia com segurança de onde viera.
Um dia, ninguém sabe exatamente quando, ele apareceu nas ruínas de uma velha fazenda abandonada, naquela região muito pobre, de agricultores de origem europeia...
Segundo, pretensamente, teria revelado a um professor que o procurara, havia nascido em lugarejo distante, entrara para a Ordo Cartusiensis, cujos membros são conhecidos também como monges Cartuxos, que o haviam enviado à Europa onde se preparara para a vida monástica. Ninguém sabia se continuava ou não ligado a essa entidade.
Para aquele povo simples, nada disso tinha importância alguma. Com o passar dos anos, como o monge se mantivesse em silêncio absoluto, como é característica de sua ordem religiosa, ninguém mais o procurava. Apenas se dirigiam em alguns domingos para o pátio da casa em que ele habitava e oravam, pois não havia sacerdote na região. Depois, iam-se silenciosos.
Ele nada dizia, porém, sua fama de milagroso e santo crescia como os arbustos das canhadas crescem, sem que ninguém tome cona deles.
Numa manhã chuvosa, sentado sobre o banco tosco que há muito construíra em sua saleta rústica, investigava sua própria caminhada existencial.
Seu pai fora um pequeno proprietário rural, cujo sonho era ser dono de uma fazenda de mil bois. Tudo o que adquirira, depois de anos e anos de trabalho duro e dezesseis filhos pobres e semianalfabetos, fora um pequeno sítio para vinte bois, que suas economias jamais conseguiram lotar.
Emagrecido, alquebrado, com a desilusão na pele e na alma, aguardara a morte que o haveria de colher com pouco mais de sessenta anos, mirrados e sofridos.
A pobre mãe, antes sonhara com um dos moços que vira na cidade. Depois, conformara-se com aquele pobre coitado. E, de degrau em degrau, fora diminuindo a altura do patamar de seus sonhos. E acabara ali, naquela choupana miserável, as mãos grossas e calejadas, cercada por aqueles pobres filhos do desalento, quase sem sonho, esperando o fim inexorável dos desgraçados todos, ou melhor, de todos nós.
De há muito, Domingos se havia dado conta da irreversibilidade daquela história. Quando completara doze anos e havia concluído a escola local, mal sabia ler. Ao visitar a cidade mais próspera dos arredores, em companhia do pai, viu uma igreja grande e maravilhosa. Jamais havia contemplado uma construção que se lhe assemelhasse.
Numa distração do pai, que bebia um aperitivo amargo num bar, o menino correu e embrenhou-se no templo. Atravessou a nave central pelo comprimento, subiu as escadas ao redor do altar e penetrou na sacristia, em que os monges se preparavam para o ofício, em canto gregoriano.
Ninguém lhe respondia... até o momento em que um velho monge apiedou-se dele e o chamou de lado. Explicou-lhe, de modo que sua inocência pudesse compreender, o que fazia e o que era um monge. Ele simplesmente afirmou que desejava ser monge.
Naqueles tempos, sem controle nem organização social suficiente, foi recebido na comunidade, que necessitava de sangue jovem. Nos primeiros anos, foi aprimorado no estudo e nas línguas e, depois, enviado à França, onde fez iniciação monástica, numa Cartuxa das montanhas alpinas.
O pai nunca mais soube do menino. Chorou sua perda e foi amaldiçoado pela esposa pelo resto de seus anos, por ter perdido, para sempre, seu filho mais velho.
O menino julgou sua nova situação maravilhosa. O que seria considerado penoso por um jovem urbano de seu tempo, para ele, comparando-se a situação contemporânea à de sua miserável vida rural, era paradisíaco. Dedicou-se com todas as suas energias à vida religiosa e aos estudos. Quem o visse, então, nem mesmo que fosse sua mãe, jamais o reconheceria em seu burel monástico, branco, de uma alvura celestial.
Monge Cartuxo em oração

Em poucos anos, tornou-se um especialista em latim, grego e também em alguns idiomas modernos. Pela sua dedicação e pela integridade de seus atos, havia, mesmo da parte de seus superiores, uma grande expectativa em relação a seu futuro, quando revelou a seu abade o desejo de retornar ao próprio país.
Porém, desejava viver isolado, como os antigos anacoretas do deserto. Depois de muito insistir, esse desejo lhe foi satisfeito. Pois, nessa ocasião, fixou-se na tapera onde vivera até então, orando e trabalhando, para prover as próprias necessidades.
Pois, nessa manhã chuvosa, rememorava a vida pregressa e seus ideais de vida. Também tivera sonhos a começar pela perspectiva paterna, cuja desilusão foi rápida e irreversível.
Entre os monges, fora gradativamente mudando suas expectativas, e o espírito se lhe fora transformando no homem simples e santo, que era no momento, embora, em sua contemplação simples da vida e do mundo, não se considerasse mais do que um homem perfeitamente comum.
Nas proximidades da residência rústica que ocupava, havia um mato que, pela aclividade do terreno, tornara-se praticamente impetrável. Domingos andava não mais do que duzentos metros mata adentro e, cercava-o, quase uma completa escuridão.
Ali permanecia, por horas, sentado sobre um penedo agreste, recoberto de musgo verde-escuro, orando ao Senhor e agradecendo a bênção de ser tão feliz, sem necessidade de nada nem de ninguém para viver.
Numa tarde quente de verão, reinava um ar deleitoso na selva, refrescante e silencioso. Habituara-se, o monge, a perceber mesmo as mais débeis manifestações dos elementos naturais. Eram os quase imperceptíveis estalidos dos minúsculos pecíolos secos que se rompiam. O débil esvoaçar de um minúsculo inseto entre as ramagens. O deslizar de um réptil sobre o folhedo seco do solo macio.
De repente, quase lhe causando espanto, num ramo muito próximo de sua cabeça, começa o trinado festivo de um minúsculo pintassilgo. Tamanho era o silêncio geral, que o redobrar do canto pássaro tornava-se quase agressivo à sensibilidade da aguda adição do monge, já tão habituada ao silêncio e à solidão.
Tão perfeitamente harmonizado estava àquele meio, que entendeu completamente a manifestação do pássaro e sua profunda felicidade, que compartilhou com ele a própria existência.
Esse trinado era a manifestação da energia universal, movendo a ação sonora do pássaro, que vibrava nos ares e nas folhagens dos arredores. De um momento, as manifestações todas do universo invadiram sua alma. Percebia as correntes aquáticas que se movimentavam no interior das rochas a seus pés.
O crescer de todas aquelas plantas, com a seiva fluindo em energia e cor, ecoava em seus ouvidos. O perpassar das ondas de todas as naturezas, que ligam os astros entre si e perpassam o âmago de todas as coisas, vibrava nas entranhas do monge. A luz que o rodeava, apesar de seus olhos cerrados, penetrava-lhe a cútis, percebendo-se rodeado de raios brilhantes.
As correntes de energia solar alimentavam seu corpo todo e moviam seu espírito, num estado de profundo êxtase. Passou-se o tempo longamente, sem que o monge Domingos o percebesse.
Quando, muito tempo depois, o povo sentiu a ausência dele, passou a procurá-lo. Abriram os aposentos que o abrigavam. Nada. Passaram a vasculhar os arredores, encontrando-o, então, petrificado e imóvel, sob o tosco assento do rochedo. Os primeiros que o viram, afirmavam que de seu corpo expandiam-se vibrações luminosas. Seu túmulo, no topo da colina, é visitado por muitos romeiros, que leem sua saga e invocam seu auxílio.





sábado, 13 de dezembro de 2014

MITOLOGIA E HISTÓRIA - A GRÉCIA ANTIGA

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Em Veneza, numa gôndola no
Valentine's Day, em 2010.
A história grega e sua mitologia nascem juntas com a migração dos quatro povos que constituem a comunidade grega. Os historiadores costumam de denominar pela expressão Grécia Antiga ao período da história que inicia no Período Pré-Homérico, com a Civilização Minoica e a Civilização Micênica, chegando, então, ao glorioso Período Homérico, a que se seguem o Período Arcaico e o Período Clássico e entra em decadência, para não mais se recuperar no Período Helenístico, em que cai sob o jugo Romano para nunca mais se recuperar.
O Período Pré-Homérico, que abrange o período de 2000 a 100 a. C., distingue-se pela chegada dos indo-europeus à Grécia: primeiramente os aqueus (2000 a 1200), depois os eólios e os jônios (1700), com a Civilização Minoica e a Civilização Micênica, e, por fim, chegam também os dórios (1200 a. C.).
O Período Homérico desenvolve-se entre 1100 e 800 a. C., tem como elementos fundamentais a formação dos genos, ou seja, clãs familiares, onde o trabalho era coletivo; mas o importante desse período foi o surgimento das obras homéricas, Ilíada e Odisseia.
Segue-se o Período Arcaico, de 800 a 500 a. C., em que se aperfeiçoa o idioma grego e cresce o  comércio e a indústria dos povos gregos.

ACRÓPOLE DE MICENAS 

Vem, então, o Período Clássico, conhecido também como Século de Péricles ou Período Áurea da cultura grega, de 500 a 338 a. C., que é auge da cultura grega e, ao mesmo tempo, a origem do seu fim. Ocorre o grande conflito externo, com as guerras Médicas, e o grande conflito interno, com a guerra do Peloponeso.
Por fim, então, o Período Helenístico, com o domínio da Grécia pelos reis Macedônios Filipe II e Alexandre Magno e a breve expansão pelo mundo do Mediterrâneo, sob as mãos de Alexandre e, finalmente, a ruína sob o domínio do poderio Romano.
Pois, no Período Pré-Homérico é que acontece a Guerra de Troia, que vai levar o aedo Homero a escrever suas grandes obras, as quais serão o fundamento da paideia fundamental na Grécia daí por diante. Neste período, gestam-se os mitos e a religião grega. Surge, então, na poderosa cidade de Micenas, a família dos Átridas, os filhos de Atreu, Agamenon e Menelau. Este último, marido de Helena, e o primeiro, será o chefe das tropas gregas na guerra de Troia. Sua dinastia tem princípio em Tântalo, que gera Pélops, que gera Tieste e Atreu, sendo que Atreu gera os Átridas: Agamenon e Menelau. Teria Atreu deposto seu irmão Tieste, e assumido o trono de Micenas, sendo sucedido por seu filho primogênito Agamenon. O segundo filho, Menelau, teria casado com Helena, filha de Tíndaro, rei Esparta, e assumido esse trono em substituição ao sogro. Essa mesma Helena seria, depois, o motivo da Guerra de Troia.
ÁTRIDAS – MITOLOGIA
Segue-se o texto de Junito Brandão que se encontra na obra Mitologia Grega I, em que esse autor faz uma minuciosa análise desse período fundamental da história grega, cujos fundamentos levarão a todo o processo da formação da Hélade. 

Os Aqueus e a Civilização Micênica: a maldição dos Átridas
1
Por volta de 1600-1580 a. C, a Hélade recebe nova onda de invasores indo-europeus: trata-se dos Aqueus, nome genérico que Homero, logo nos dois primeiros versos da Ilíada, estendeu a todos os Gregos que lutaram em Troia. Embora pouco numerosos, esses novos invasores eram aguerridos e rapidamente conquistaram o Peloponeso, empurrando os Jônios para a costa asiática, onde se instalaram à margem do Golfo de Esmirna. Na Grécia continental, os Jônios permaneceram, ao que parece, apenas na Ática, na ilha de Eubéia, em Epidauro e Pilos, de onde, mais tarde, sairiam os Nelidas (nome proveniente de Neleús, pai de Nestor) para colonizarem a Jônia. Falavam um dialeto grego muito semelhante ao jônico, o que pressupõe um habitat comum para Jônios e Aqueus, ao longo de sua lenta peregrinação em direção à Grécia.
MICENAS - ACRÓPOLE - RECONSTRUÇÃO

Teria sido por essa mesma época que também chegaram à pátria de Sófocles os chamados Eólios? Ou seriam estes últimos tão-somente um "ramo" dos Aqueus, que ocuparam a Beócia e a Tessália?
Seja como for, o mapa étnico da Hélade, à época aqueia, ~ 1580-1100 a., está "provisoriamente" montado: o Peloponeso, ocupado pelos Aqueus; os Jônios, encurralados na Ática e na Eubéia; os Eólios dominando a Tessália e a Beócia.
2
Como se viu no capítulo anterior, os Aqueus, desde ~1450 a. C, são os senhores absolutos de Creta, sobretudo após a destruição, em ~ 1550 a. C, dos palácios de Festo, Háguia Tríada e Tilisso. É bem verdade que também o palácio de Cnossos sucumbiu, devorado por um incêndio, por volta de 1400 a.C, mas ainda se ignoram as causas de tamanho desastre. O palácio foi incendiado e destruído em consequência de uma revolta popular contra o domínio aqueu ou por um terremoto? Até o momento nada se pode afirmar com certeza. O fato em si não importa muito: os Aqueus, de ~1450 a ~ 1100 a. C, serão os senhores de Creta. Dessa fusão nascerá a civilização micênica, assim denominada porque teve por centro principal o gigantesco Palácio de Micenas, na Argólida, e durante os dois séculos seguintes a civilização minoica, ou melhor dizendo, já agora a civilização creto-micênica, brilhará intensamente na Grécia continental.
Após as escavações realizadas sobretudo em Tirinto e Micenas por Heinrich Schliemann (1822-1890), continuadas mais tarde, entre outros, pelos arqueólogos gregos Stamatákis, Tsúntas, Keramápullos, Papadimitríu e pelo britânico Wace, abriram-se novas perspectivas para uma melhor compreensão do mundo grego arcaico e de sua civilização.
As fontes básicas para um estudo da civilização micênica são a arqueologia e os poemas homéricos, Ilíada e Odisseia. No tocante a estes últimos, como "fonte histórica", é preciso levar em consideração que Homero é antes de tudo um poeta genial e que a obra de arte possui suas exigências internas, não se coadunando muitas vezes com relatos históricos. Além do mais, os poemas homéricos foram "compostos" ou ao menos reunidos, após existirem como tradição oral, sujeitos, portanto, a inúmeras alterações, vários séculos após os acontecimentos neles relatados. Fatores, aliás, que levaram o competente e sério Denys Page a ressaltar, talvez com certo exagero, que os documentos escritos no alfabeto linear B demonstram que "os poemas homéricos preservaram muito pouco do verdadeiro quadro do passado micênico".52-[1]
Acrópole de Atenas, hoje
Tomado em bloco, Homero tem em seus poemas bastante de micênico! Com as necessárias precauções, isto sim, é possível estabelecer, partindo-se do II canto da Ilíada, na parte relativa ao Catálogo das Naus, em que o maior dos poetas épicos rememora os tempos heroicos da Guerra de Tróia, a dimensão do mundo aqueu, que se estende, ao norte, desde a Tessália até o extremo sul do Peloponeso, abrangendo, além de Creta, várias outras ilhas, como Ítaca, Egina, Salamina, Eubéia, Rodes e Chipre. Não se trata, evidentemente, de um império, mas de vários reinos, alguns territorialmente diminutos, mas independentes entre si, preludiando já no século XVI a. C. o que seria a Grécia clássica, uma Grécia fragmentada em Cidades-Estados, não raro antagônicas e que dificilmente se congregam até mesmo contra o inimigo comum, como aconteceu nas guerras Greco-Pérsicas. Pois bem, esses reinos, pequenos e grandes, cuja hegemonia parece ter sido de Micenas, estão todos centralizados em grandes palácios, como Pilos, Micenas, Esparta, Tebas... São, na realidade, independentes, mas ligados por interesses comuns. Em sua ânsia pelo poder, o que exige sua coalizão, aceitam, se bem que não muito de bom grado, a autoridade do rei mais importante e poderoso entre eles, como se pode ver na Ilíada. Agamêmnon, rei de Micenas, logo no início do poema, I,7, é chamado ánax andrôn, o rei dos heróis, o que deixa claro ser ele o chefe supremo dos reis aqueus confederados contra Troia, embora isto não impeça que o comandante-em-chefe tenha por vezes que fazer valer sua autoridade contra os recalcitrantes heróis aqueus. Aliás, os deuses homéricos, como se verá, agirão exatamente assim com Zeus, o deus supremo do Olimpo! Os deuses homéricos se constituem, não raro, de uma simples projeção social do mundo heroico dos micênicos.
ACRÓPOLE DE ATENAS - RECONSTITUIÇÃO

Dentre os grandes palácios que fizeram da Grécia do século XV ao XII a. C. uma soberba fortaleza, destaca-se o monumental palácio de Micenas, "um verdadeiro ninho de águias" numa acrópole, que culmina a 278 metros de altura. Trata-se, no conjunto, de um recinto de novecentos metros de perímetro, com poderosas fortificações de muros ciclópicos, aberto a oeste pela Porta dos Leões, encaixada em sólido baluarte, e, ao norte, por uma saída secreta. No interior desse formidável bastião ficava o palácio, cuja arquitetura, como a de suas réplicas em Tirinto e Pilos, é radicalmente diversa da de Cnossos. Ao labirinto minoico, Micenas opõe um conjunto rigorosamente ordenado em três partes: uma vasta sala do trono, um santuário e, como elemento básico, um mégaron (grande salão). Também este é constituído de três compartimentos: um vestíbulo exterior, um pródomos ou vestíbulo interior e o mégaron propriamente dito, com uma lareira no centro.
O palácio servia apenas de residência para o rei e, segundo se crê, para alguns dignitários. A verdadeira aglomeração humana ficava numa cidade baixa, a sudoeste da fortaleza.
3
Com base na Linear B, nos poemas homéricos e na arqueologia, é possível delinear um panteão micênico, embora se tenha de proceder com grande prudência. Nas tabuinhas de argila da Linear B são pouquíssimas as informações acerca dos deuses: estes se reduzem a poucos nomes, a meras informações onomásticas. A Ilíada e a Odisseia, elaboradas a partir do século IX a. C, têm que ser manuseadas com muita cautela, porque, se de um lado estampam uma "mitologia remoçada de quatro a cinco séculos", em relação à civilização creto-micênica, de outro, sofreram indubitavelmente adições posteriores. Quanto aos monumentos artísticos, estes são sempre objeto de interpretações divergentes.
Para um estudo da religião desse período há que se partir de uma evidência: houve, sobretudo após o domínio de Creta pelos Aqueus, um sincretismo religioso creto-micênico.
De seu mundo indo-europeu os Gregos trouxeram para a Hélade um tipo de religião essencialmente celeste, urânica, olímpica, com nítido predomínio do masculino, que irá se encontrar com as divindades anatólias de Creta, de caráter ctônio e agrícola, e, portanto, de feição tipicamente feminina. Temos, pois, de um lado, um panteão masculino (patriarcado), de outro, um panteão, onde as deusas superam de longe (matriarcado) aos deuses e em que uma divindade matronal, a Terra-Mãe, a Grande Mãe ocupa o primeiríssimo posto, dispensando a vida em todas as suas modalidades: fertilidade, fecundidade, eternidade. Desses dois tipos de religiosidade, desse sincretismo, nasceu a religião micênica. Diga-se, de passagem, que esse encontro do masculino helênico com o feminino minoico há de fazer da religião posterior grega um equilíbrio, um meio-termo, muito a gosto da "paideia" grega posterior, entre o patriarcado e o matriarcado.
Outras influências, particularmente egípcias, muito importantes para os hábitos funerários, enriqueceram ainda mais o patrimônio religioso creto-micênico.
Vejamos mais de perto esse sincretismo. As tabuinhas de Pilos e Creta estampam alguns nomes de deuses e deusas53-[2], por onde se pode observar que "a fusão", por vezes, se realizou entre elementos muito heterogêneos.
Zeus se apresenta com uma equivalência feminina Dia (Py. 28), que não se pode identificar com a cretense Hera, a qual já aparece associada a Zeus, como deusa da fertilidade, em algumas tabuinhas de Cnossos (Kn. 02) e de Pilos (Py. 172). Ventris e Chadwick54-[3] pensaram ser Dia uma hipóstase da Magna Mater, a Grande Mãe cretense, isto é, Reia, que Píndaro55-[4] saudou com o título de Ἕν ἀνδρῶν ἓν θενῶν γένος, «mãe dos deuses e dos homens", passagem aliás "mal compreendida e mal traduzida"56-[5] na excelente edição "Les Belles Lettres".
Gaia - A deusa mãe - motherland bouguereau

De outro lado, o mesmo Zeus, sob denominação desconhecida, se apresenta em Creta, muito antes do sincretismo de que estamos falando, sob a forma de um jovem belo e sadio, cuja origem creto-oriental, independente do Zeus grego, é defendida por Charles Picard.57-[6] Trata-se do Zeus cretágeno, isto é, originário de Creta e que vai surgir em Roma com o nome de Veiouis, Véjove, o Júpiter adolescente de cabelos anelados. Além do mais, a ligação de Zeus com a Ilha de Creta, após o sincretismo, sempre foi muito estreita. Para evitar que o pai Crono lhe devorasse também o caçula, Reia, grávida de Zeus, fugiu para a Ilha de Minos e lá, no monte Dicta ou Ida, deu à luz secretamente o filho, que foi amamentado pela cabra cretense Amalteia.
Apoio aparece apenas com um de seus epítetos clássicos, Peã (Kn. 52), o deus protetor dos guerreiros. Na mesma tabuinha encontram-se também Atená, Posídon, Hermes, Ártemis e Eniálio, o belicoso, cujas funções serão mais tarde inteiramente assimiladas por Ares, cujo nome não está claramente determinado na Linear B. A cretense Ilítia, que posteriormente se tornará hipóstase de Hera, como deusa dos partos, e Deméter, "a terra cultivada", a Grande Mac, lá estão inteiras (Py. 114). Dioniso (Py. 10) é outra presença importante e garantida e cujo culto já era muito difundido em Creta, bem antes do aparecimento do deus na Ilíada de Homero.
Causa realmente estranheza a ausência de nomes de deuses autenticamente cretenses, como Reia, Britomártis ou Dictina, Velcano, o deus-galo, e Perséfone.
Como se vê, com a inestimável cooperação cretense, o futuro panteão grego da época clássica, se bem que terrivelmente miscigenado, já estava pronto no século XIV a.C. Falou-se em cooperação cretense porque, dentre os deuses citados, são considerados como minoicos (posto que ainda se discuta a respeito de um ou outro) os seguintes: Ártemis, Atená, Hera, Ilítia, Perséfone, Reia; os secundários Eniálio, Velcano, Britomártis ou Dictina e talvez Hermes. Se Dioniso e Afrodite são seguramente divindades asiáticas, sobra muito pouco de autenticamente indo-europeu entre os futuros doze grandes do Olimpo, pois que, acerca da origem de Apoio e Hefesto não se chegou ainda a uma conclusão convincente, nem mesmo do ponto de vista etimológico.
Zeus e sua esposa Hera - Carraci

É de notar-se, todavia, como já se disse, que o sincretismo creto-micênico fez que as divindades helênicas tivessem um caráter essencialmente composto, miscigenado e heterogêneo, o que explica a multiplicidade de funções e um entrelaçamento de mitos em relação a uma mesma divindade.
O Zeus indo-europeu, deus da luz, segundo a própria etimologia da palavra, deus da abóbada luminosa do céu, do raio e dos trovões, irá fundir-se com o jovem "Zeus" cretense, apresentando-se, por isso mesmo, também como um adolescente imberbe, deus dos mistérios do monte Ida, deus da fertilidade e deus ctônio, o Zeus Khthónios de que fala Hesíodo. Ora, o Zeus barbudo e majestoso do Olimpo, no esplendor da idade, é inteiramente diverso do jovem deus dos mistérios cretenses e, no entanto, se fundiram numa única personalidade.
Hermes, deus dos pastores, protetor dos rebanhos, é a divindade por excelência da sociedade campônia aquéia. Pois bem, enriquecido pelo mito cretense, Hermes tornou-se mais que nunca o "companheiro do homem". Deus da pedra sepulcral, do umbral, do hérmaion e das "hermas", guardião dos caminhos, protetor dos viajantes, cada transeunte lançava uma pedra, formando um hérmaion, literalmente, lucro inesperado, descoberta feliz, proporcionados por Hermes e, assim, para se obterem "bons lucros" ou agradecer o recebido, se formavam verdadeiros montes de pedra à beira dos caminhos. Possuidor de um bastão mágico, o caduceu, com que tangia as almas para a outra vida, tornou-se o deus psicopompo, quer dizer, condutor de almas, sem o que estas não poderiam alcançar a eternidade e felicidade que a religião cretense prometia aos iniciados. Deus indo-europeu dos pastores, cuja lenda estava ligada ao carneiro de velocino de ouro, "verdadeiro talismã das riquezas aqueias e garantia de fecundidade", Hermes transformou-se no mensageiro dos imortais do Olimpo, em deus psicopompo e em deus das ciências ocultas.
Quanto às divindades femininas aqueias, todas elas são herdeiras de deusas cretenses. Hera, a Senhora, uma pótnia therôn, a "senhora das feras", uma deusa da fertilidade; na civilização micênica converter-se-á na protetora de uma instituição aquéia fundamental, o casamento.
Atená, genuinamente cretense, está, em princípio, associada à árvore e à serpente, como deusa da vegetação. Na civilização aquéia é uma virgem guerreira, como aparece, em Micenas, numa medalha de estuque pintado, em que a deusa está com um enorme escudo, que lhe cobre todo o corpo, e rodeada de deuses que lhe prestam homenagem. Atená aquéia é, por excelência, a protetora das acrópoles em que se erguem os palácios micênicos, como mais tarde será a senhora da Akrópolis de Atenas. Seu nome duplo, Palas Atená, Atená defensora, mostra bem o resultado do sincretismo.
A dupla formada por Deméter e Core é uma junção muito frequente em Creta, de uma deusa mãe e de uma jovem (Core significa jovem) filha. O rapto de Core por Plutão, rei do Hades, e a busca da filha pela mãe relembram as cenas de rapto muito frequentes no culto cretense da vegetação. A junção, todavia, de Core, a semente de trigo lançada no seio da Mãe-Terra, Deméter, com a lúgubre Perséfone, rainha do Hades, é deveras estranha, mas ambas, mercê do sincretismo, constituem a mesma pessoa divina.
Seria inútil multiplicar os exemplos. Os deuses aqueus, por força da herança egeia, tornaram-se semigregos e semicretenses.
Deméter - francesco hayez rinaldo e armida

Pierre Lévêque mostra de modo preciso o resultado dessa fusão: "Com um mesmo nome grego (Zeus, Deméter), ou com um nome minoico (Hera, Atená) e, inclusive, com nome duplo (Core e Perséfone, Palas e Atená), os deuses aqueus têm uma personalidade complexa, híbrida, em que se fundiram elementos heterogêneos e, às vezes, contraditórios. Não houve uma justaposição de duas séries de deuses em um panteão único, mas sínteses estranhas propiciaram a criação de divindades que não eram nem indo-europeias, nem minoicas, mas sim aquéias".58[7] Destarte, para um estudo em profundidade dos deuses aqueus, é mister separar o que é indo-europeu do que é cretense e oriental. Seja como for, desde o século XIV a. C, a futura religião grega já estava delineada e inteiramente distinta de suas coirmãs védica, latina e germânica, que puderam conservar melhor o patrimônio comum indo-europeu, sobretudo a organização tripartite e trifuncional da hierarquia divina, uma vez que, por motivos de ordem política e cultural, não se deixaram contaminar tanto por elementos estranhos ao mundo indo-europeu.
4
Se a influência cretense na elaboração do panteão helênico foi grande e séria, mais destacada ainda foi a sua influência no que se refere ao culto dos deuses e dos mortos.
Como acentua o supracitado Pierre Lévêque, os sacerdotes da ilha de Minos são constantemente citados na Linear B e sua missão mais importante era a de consagrar as oferendas, fossem elas as primícias das colheitas ou os sacrifícios sangrentos. Num texto de Pilos faz-se menção de trigo, vinho, um touro, queijos, mel, quatro cabras, azeite, farinha e duas peles de cordeiro que deveriam ser sacrificados aos deuses. As peles fazem certamente parte da vestimenta litúrgica de sacerdotes de categoria inferior, denominados diphtheráporoi, quer dizer, "portadores de uma indumentária de pele", como se pode ver no sarcófago de Háguia Tríada.
Os locais de culto, como em Creta, estão inteiramente ligados à vida familiar. No santuário palatino de Micenas encontrou-se uma pequena escultura em marfim, representando as "duas deusas", Deméter e Core, com o "menino divino", Triptólemo, a seus pés. No de Ásina, na Argólida, descobriram-se várias estatuetas em terracota. Nas casas particulares havia sempre um local destinado ao culto: era a lareira, centro do culto doméstico e que nos grandes palácios, como Micenas e Tirinto, ocupava o centro do Mégaron. O altar, propriamente dito, em geral oco, modelo portanto do bóthros grego (fenda, buraco onde se derramava o sangue das vítimas), era erguido normalmente no pátio do palácio, como se pode observar em Tirinto. Nas escavações realizadas em Micenas descobriu-se grande quantidade de estatuetas, a maioria em terracota. Trata-se, em sua quase totalidade, de ídolos femininos vestidos à maneira cretense; os poucos masculinos encontrados representam um jovem deus despido. Pois bem, essas estatuetas, muito semelhantes às cretenses, representam, na realidade, certas divindades ligadas à Terra-Mãe, mas têm, segundo se acredita, que ser interpretadas como oferenda aos deuses e não como objeto de culto, o que só aparecerá no século seguinte.
Também os hábitos funerários e o culto dos mortos são relativamente bem conhecidos na época micênica, graças a numerosos túmulos descobertos pelos arqueólogos.
As sepulturas cretenses e, posteriormente, as micênicas, embora tenham sofrido algumas modificações e transformações no decurso do segundo milênio, não só quanto ao local em que eram enterrados os mortos, mas sobretudo quanto à forma das mesmas, possuem uma característica que permaneceu inalterável: os corpos eram inumados e não incinerados. Durante o Heládico Médio, ~ 1950-1580 a. C, os cemitérios eram construídos dentro do perímetro urbano, junto às habitações e as tumbas tinham a forma de um cesto e normalmente não se depositavam oferendas para os mortos. No Heládico Recente, ~ 1580-1100 a. C, surgem as necrópoles separadas das aglomerações humanas e construídas a oeste das mesmas, certamente por influência do Egito, que considerava o ocidente como o mundo dos mortos. As covas funerárias, a princípio, simples fossas, à imitação das sepulturas em forma de cesto, evoluíram para um formato de habitação, um túmulo, que acabou por dar origem aos thóloi (rotundas, pequena construção de forma abobadada). Os corpos eram colocados em ataúdes, junto aos quais se depositava um rico mobiliário: máscaras, armas luxuosas, vasos, joias. . . Em Micenas encontraram-se oficialmente, nove thóloi, aos quais se deram nomes convencionais, como o Túmulo de Clitemnestra, o Túmulo de Egisto..., destacando-se entre todos o Túmulo de Agamêmnon, o chamado Tesouro do Atreu, que representa, sem dúvida, a mais bem construída e a mais bela sala abobadada da antiguidade. Curioso para a época é um túmulo encontrado em Mideia, na Argólida, sem vestígio de sepultamento. Trata-se, ao que tudo indica, de um cenotáfio, "túmulo vazio", construído, para "atrair" a alma de pessoas, cm tese, falecidas fora da pátria e plausivelmente não sepultadas ou que não houvessem recebido as devidas honras fúnebres, uma vez que a psiqué só poderia ter paz e penetrar no Hades quando 0 corpo descesse ritualmente ao seio da Mãe-Terra. O cenotáfio linha, pois, por escopo, desde a mais alta antiguidade, substituir simbolicamente a real sepultura, condição suficiente para descanso da alma, o que demonstrava também a crença dos Aqueus na sobrevivência da mesma. Se é verdade que todos os mortos tinham direito a um culto, existem aqueles que, por circunstâncias especiais, fazem jus a honras peculiares e a um culto singular. Trata-se dos heróis, assunto que será desenvolvido na última parte deste livro. Para o momento, basta acentuar que o herói, normalmente "senhor" de um palácio, como na época micênica, goza na outra vida de um destino particular. Em se tratando de um culto a antepassados, outorgado pela família reinante, a ele deve associar-se toda a comunidade, porque o herói acaba por tornar-se um intermediário entre os homens e os deuses. Na época micênica, esse culto foi muito difundido e praticado, ultrapassando mesmo a civilização que, na Grécia, viu seu nascimento.
Zeus e o rapto de Europa
Dentre todos os heróis micênicos vamos destacar, por ora, apenas Agamêmnon, o grande rei de Micenas e que, como o rei de Creta, Minos, parece ter sido um nome dinasta. O que dá relevo ao "rei dos reis" não é apenas o fato de Agamêmnon ter sido o chefe dos exércitos gregos congregados contra Tróia, mas sobretudo a hamartía que pesava sobre o génos dos Atridas.
Antes de entrarmos no mito que transformou o gigantesco palácio de Micenas num "alcáçar de crimes e horrores", uma palavra sobre hamartía e génos.
Sem desejar entrar em longas discussões de ordem etimológica, linguística e literária acerca do vasto campo semântico de hamartía, que, na realidade, tem várias "conotações" no curso do pensamento grego, porque não é aqui o local apropriado, é melhor começar pelo verbo grego hamartánein que já aparece em diversas passagens da Ilíada, V, 287; VIII, 311; XI, 233; XIII, 518 e 605; XXII, 279... onde significa mais comumente errar o alvo. Dos trágicos a Aristóteles, apesar da ampliação do campo semântico do verbo, também este sentido de errar o alvo é encontrado, alargado com o de errar, errar o caminho, perder-se, cometer uma falta. . . Donde se pode concluir que o vocábulo hamartía, que é um deverbal de hamartánein, nunca poderá ser traduzido até os Septuaginta59[8] por "pecado". Diga-se, aliás, de passagem, que também o latim peccatum, fonte de "pecado", jamais possuiu, até o Cristianismo, tal significado: peccatum em latim é "erro, falta, tropeço60-[9], abstração feita de culpa moral. Assim hamartía deve-se traduzir por "erro, falta, inadvertência, irreflexão", existindo, claro está, uma "graduação" nessas faltas ou erros, podendo ser os mesmos mais leves ou mais graves, como já observara Marco Túlio Cícero (106-43 a .C.).61
Acrescente-se, por último, que, na Grécia antiga, as faltas eram julgadas de fora para dentro: não se julgavam intenções, mas reparações, indenizações à vítima, se fosse o caso.
Quanto a génos pode o vocábulo ser traduzido, em termos de religião grega, por "descendência, família, grupo familiar" e definido como personae sanguine coniunctae, quer dizer, pessoas ligadas por laços de sangue. Assim, qualquer falta, qualquer hamartía cometida por um génos contra o outro tem que ser religiosa e obrigatoriamente vingada. Se a hamartía é dentro do próprio génos, o parente mais próximo está igualmente obrigado a vingar o seu sanguine coniunctus. Afinal, no sangue derramado está uma parcela do sangue e, por conseguinte, da alma do génos inteiro. Foi assim que, historicamente falando, até a reforma jurídica de Drácon ou Sólon, famílias inteiras se exterminavam na Grécia. É mister, no entanto, distinguir dois tipos de vingança, quando a hamartía é cometida dentro de um mesmo génos: a ordinária, que se efetua entre os membros, cujo parentesco é apenas em profano, mas ligados entre si por vínculo de obediência ao gennétes, quer dizer, ao chefe gentílico, e a extraordinária, quando a falta cometida implica em parentesco sagrado, erínico, de fé — é a hamartía cometida entre pais, filhos, netos, por linha troncal e, entre irmãos, por linha colateral. Esposos, cunhados, sobrinhos e tios não são parentes em sagrado, mas em profano ou ante os homens. No primeiro caso, a vingança é executada pelo parente mais próximo da vítima e, no segundo, pelas Erínias.
A essa ideia do direito do génos está indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a saber: qualquer hamartía cometida por um membro do génos recai sobre o génos inteiro, isto é, sobre iodos os parentes e seus descendentes "em sagrado" ou "em profano".
Esta crença na transmissão da falta, na solidariedade familiar e na hereditariedade do castigo é uma das mais enraizadas no espírito dos homens, pois a encontramos desde o Rig Veda até o Nordeste brasileiro, sob aspectos e nomes diversos. No citado Rig Veda, o mais antigo monumento da literatura hindu, composto entre 2000 e 1500 a. C, encontramos esta súplica: "Afasta de nós a falta paterna e apaga também aquela que nós próprios cometemos".
A mesma ideia era plenamente aceita pelos judeus, como demonstram várias passagens do Antigo Testamento, como está em Êxodo 20,5: "Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso, que vingo a iniquidade dos pais nos filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me odeiam".
Talvez não fosse inoportuno lembrar que há uma grande diferença entre o homem de lá e o homem de cá: o viver coletivo e o viver individual.
Fechado o parêntese, voltemos à machina fatalis, a máquina obrigatoriamente fatal que, por causa da hamartía de Tântalo e da consequente maldição familiar, há de esmagar todo o génos maldito dos Atridas, cuja ninhada fatídica pode ser sintetizada no seguinte quadro:

Tântalo____________________________Dione (ou Eurianassa)
Pélops, Dáscilo, Níobe
Pélops________________________________________Hipodamia
Atreu, Tieste, Plístene, Crisipo
Tieste____________________________________uma Concubina
Plístene II, Tântalo II, Pelopia
Tieste ____________________________sua própria filha Pelopia
Egisto
Atreu______________________________________________Aérope
Agamêmnon, Menelau
Menelau__________________________________________Helena
Hermíona, Nicóstrato
Agamêmnon_________________________________Clitemnestra
Ifigênia (Ifianassa), Electra (Laódice), Crisótemis, Orestes

Tudo começou com a hamartía de Tântalo, filho de Zeus e Plutó, o qual reinava na Frígia ou Lídia, sobre o monte Sípilo. Extremamente rico e querido dos deuses, era admitido em seus festins. Por duas vezes Tântalo já havia traído a amizade e a confiança dos imortais: numa delas revelou aos homens os segredos divinos e, em outra oportunidade, roubou néctar e ambrosia dos deuses, para oferecê-los a seus amigos mortais. A terceira hamartía, terrível e medonha, lhe valeu a condenação eterna. Tântalo, desejando saber se os Olímpicos eram mesmo oniscientes, sacrificou o próprio filho Pélops e ofereceu-o como iguaria àqueles. Os deuses reconheceram, todavia, o que lhes era servido, exceto Deméter, que, fora de si pelo rapto da filha Perséfone, comeu uma espádua de Pélops. Os deuses, porém, reconstituíram-no e fizeram-no voltar à vida.
O suplício de Tântalo - Abraham Bloemaert Niobe
Tântalo foi lançado no Tártaro, condenado para sempre ao suplício da sede e da fome. Mergulhado até o pescoço em água fresca e límpida, quando ele se abaixa para beber, o líquido se lhe escoa por entre os dedos. Árvores repletas de frutos saborosos pendem sobre sua cabeça; ele, faminto, estende as mãos crispadas, para apanhá-los, mas os ramos bruscamente se erguem. Há uma variante de grande valor simbólico: o rei da Frígia estaria condenado a ficar para sempre sobre um imenso rochedo prestes a cair e onde ele teria que permanecer em eterno equilíbrio. O tema mítico de Tântalo, na luta interior contra a vã exaltação, simboliza a elevação e a queda. Seu suplício corre paralelo com sua hamartía: o objeto de seu desejo, a água, os frutos, a liberdade, tudo está diante de seus olhos e infinitamente distante da posse. No fundo, Tântalo é o símbolo do desejo incessante e incontido, sempre insaciável, porque está na natureza do ser humano o viver sempre insatisfeito. Quanto mais se avança em direção ao objeto que se deseja, mais este se esquiva e a busca recomeça. ..
O grande poeta paulista Vicente Augusto de Carvalho (1866-1924) nos oferece a topografia utópica dessa busca:

Velho Tema

Só a leve esperança, em toda a vida, Disfarça a
pena de viver, mais nada; Nem é mais a existência, resumida, Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
 Sonho que a traz ansiosa e embevecida
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos

 Existe, sim: mas nós não a alcançamos,
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Níobe foi a primeira vítima da hamartía paterna. Casada com Anfíon, teve, consoante a maioria dos mitógrafos, catorze filhos: sete meninos e sete meninas. Na tradição homérica são apenas doze 62[10], mas na hesiódica são vinte. Orgulhosa de sua prole, Níobe dizia-se superior a Leto, que só tivera dois: Apoio e Ártemis. Irritada e humilhada, Leto pediu aos filhos que a vingassem. Com suas flechadas certeiras, Apoio matou os meninos e Ártemis, as meninas. Uma variante mais recente da lenda narra que dos catorze se salvaram dois, um menino e uma menina. Esta, todavia, aterrorizada com o massacre dos irmãos, se tornou tão pálida, que foi chamada Clóris, a verde. Mais tarde, Clóris foi desposada por Neleu.
A infeliz Níobe, desesperada de dor e em prantos, refugiou-se no monte Sípilo, reino de seu pai, onde os deuses a transformaram num rochedo, que, no entanto, continua a derramar lágrimas. Do rochedo de Níobe, por isso mesmo, corre uma fonte.
A metamorfose em rochedo, como a de Eco, Níobe… pode ser interpretada como o símbolo da regressão e da passividade, que podem ser um estado apenas passageiro, precursor de uma transformação. Na realidade, Níobe é uma antiga deusa lunar asiática, mas é a lua negra, a outra face de Leto, a lua cheia. Seus filhos são mortos por Apoio (o sol) e por Ártemis (a lua cheia).
Pélops é apenas mais uma engrenagem da machina fatalis. . . Após sua "recomposição e ressurreição", Pélops foi amado por Posídon, que o levou para o Olimpo e fê-lo seu escanção. Apesar de haver retornado ao nível telúrico, porque Tântalo dele se servia para furtar néctar e ambrosia aos deuses e oferecê-los aos homens, o deus do mar continuou a protegê-lo, dando-lhe de presente cavalos alados e ajudando-o na terrível disputa contra Enômao pela posse de Hipodamia.
Após a guerra movida por Ilo, o lendário fundador de Ílion ou Tróia, contra Tântalo, a quem acusava de ser responsável pelo rapto de seu filho Ganimedes, Pélops deixou a Ásia Menor, onde nascera, e refugiou-se na Hélade.
Sabedor de que Enômao, rei de Pisa, na Élida, só daria a filha Hipodamia em casamento a quem o vencesse numa corrida de carros, Pélops, herói que era, aceitou, como tantos outros já o haviam feito, o desafio do rei.
Esse Enômao, que reinava na Élida, era filho de Ares e de uma filha do deus-rio Asopo, Harpina. Como não quisesse que sua filha Hipodamia se casasse, ou por estar apaixonado por ela ou por lhe ter dito um oráculo que seria morto pelo genro, punha como condição que o pretendente o ultrapassasse numa corrida de carros. Enquanto sacrificava um carneiro a Zeus, deixava que o competidor tomasse a dianteira. Como os cavalos de Enômao fossem de sangue divino, facilmente o rei levava de vencida o "pretendente" e o matava, antes que atingisse a meta final, que era o altar de Posídon, em Corinto. O rei de Pisa já havia matado doze pretendentes, quando Pélops se apresentou. Apaixonada por ele, Hipodamia ajudou-o a corromper o cocheiro real, Mírtilo, que concordou em serrar o eixo do carro de Enômao. Aos primeiros arrancos dos animais, a peça partiu-se e o rei foi arremessado ao solo e pereceu despedaçado.
Pélops se casou com Hipodamia e, para silenciar Mírtilo, o vencedor de Enômao lançou-lhe o cadáver no mar. O cocheiro real, antes de morrer, amaldiçoou a Pélops. . .
Pelops and Hippodamia
O nome de Pélops está intimamente ligado à fundação mítica dos Jogos Olímpicos, que, a princípio, segundo parece, limitavam-se a corridas de carros. Pélops os teria instituído, mas, como houvessem caído no esquecimento, Héracles os ressuscitou em honra e em memória do fundador. As competições olímpicas eram ainda não raro consideradas como Jogos Fúnebres em memória de Enômao.
À hamartía de Tântalo somam-se agora as do próprio Pélops e a maldição de Mírtilo. A machina fatalis tem combustível para funcionar por várias gerações! Antes, porém, que suas engrenagens voltem a girar, uma palavra sobre a morte do rei e sua substituição por Pélops no trono de Élida.
Marie Delcourt, em sua obra famosa sobre Édipo63-[11], comentando e discordando de uma passagem do pai da psicanálise64-[12], opina que não se deve insistir sobre "a concupiscência dissimulada" do menino pela mãe e, em relação ao pai, sobre o sentimento ambivalente do mesmo, marcado de um lado pela admiração e afeição e, de outro, pelo ódio e ciúme. Assim, consoante a autora, em lugar de se acentuar o ciúme sexual do menino, melhor seria chamar a atenção para a impaciência com que o filho adulto suporta a tutela de um pai envelhecido. A hostilidade entre ambos seria provocada menos por uma libido reprimida do que pelo desejo do poder. Se isto é verdadeiro, pode-se perfeitamente fazer uma aproximação entre o mito de Édipo, que mata a seu pai Laio, e outros mitologemas, como o de Pélops, em que um pai luta contra o pretendente da filha; como os de Telégono e Ulisses, Teseu e Egeu, em que os filhos matam direta ou indiretamente a seus pais; como o de Perseu e Acrísio, em que a vítima é o avô, no caso em pauta, Acrísio; como o de Anfitrião que assassina a seu sogro Eléctrion e, para não alongar a lista, o de Admeto e Feres, em que o pai Feres, envelhecido, "abre mão" do trono, em favor de seu filho Admeto, tendo havido, no entanto, entre ambos, violentíssima altercação, como atesta a tragédia Alceste.65[13]Jean-Auguste-Dominique-Ingres-Achilles-Receiving-the-Envoys-of-Agamemnon. 
Jean Auguste Dominique Ingres-
Achilles Receiving the Envoys of Agamemnon
Seguindo essa linha de raciocínio, o tema essencial não é bem o duelo entre pai e filho, porque este pode ser entre sogro e genro (Enômao e Pélops, Eléctrion e Anfitrião) ou entre avô e neto (Acrísio e Perseu) . . ., mas um conflito de gerações.
O antagonismo, todavia, quer seja entre pai e filho, avô e neto, ou entre pai e pretendente, é sempre um combate pelo poder, cujo desfecho é a vitória do mais jovem. Ao que parece, essa luta, de início, entre pai e filho, fazia parte de um rito, o combate de morte que, nas sociedades primitivas, permitia ao Jovem Rei suceder ao Velho Rei. Todo o contexto familiar, com os problemas morais que o mesmo comporta, foi acrescentado mais tarde, quando a sucessão patrilinear se tornou a norma vigente. Assim, na luta de morte, que se travava pela sucessão, todas as atenuantes possíveis foram introduzidas para mitigar o impacto das "justas" primitivas. Jamais um poeta trágico pôs em cena um parricídio consciente. Se Édipo mata a Laio, Telégono a Ulisses, Perseu a Acrísio e Pélops a Enômao, a ação é simplesmente o resultado do cumprimento de um oráculo, e mais: os dois primeiros ignoravam tratar-se de seus próprios pais e Perseu não sabia que Acrísio era seu avô. Julgando que a atenuante, oráculo, era insuficiente, os trágicos transformaram a morte de Laio num acidente de caminho. . . Quanto a Teseu, é bom não esquecer que foi por um erro, por um engano fatal que o herói de Atenas se tornou o responsável pela morte de seu pai Egeu!
Agamenon
Desse modo, o parricídio ou é substituído por um simples destronamento, ou é realizado, mas como resultante de um erro, embora se tenha o respaldo de um oráculo. Em ambos os casos, os poetas evitam colocar em cena o mais horrendo dos crimes aos olhos da sociedade grega. A despeito, porém, de seu horror pelo parricídio, tiveram muitas vezes que tratar em público de uma hostilidade de fato entre homens de gerações diferentes, o que patenteia a importância que tinha a sucessão por morte na pré-história grega. Os testemunhos mais curiosos desse rito arcaico se encontram, como se verá, nas teogonias.
Para encerrar, uma pergunta: por que o Velho Rei deve ser substituído?
Na Odisseia, XI, 494sqq., Aquiles, quando da visita de Ulisses ao país dos mortos, mostra-se preocupado com a sorte de seu pai Peleu e pergunta-lhe se Peleu não é desprezado pelos Mirmidões, uma vez que a velhice lhe entorpece os membros. Na realidade, um rei envelhecido não é apenas um soberano demissionário, mas sobretudo um ser maltratado e menosprezado. É que a função do rei, já que o mesmo é de origem divina, é fecundar e manter viva e atuante sua força mágica. Perdido o vigor físico, tornando-se impotente ou não mais funcionando a força mágica, o rei terá que ceder seu posto a um Jovem, que tenha méritos e requisitos necessários para manter acesa a chama da fecundação e a fertilidade dos campos, uma vez que, magicamente, esta está ligada àquela.
Na expressão de Westrup, "o mérito pessoal é uma condição necessária para se subir ao trono dos antigos e a persistência da energia ativa é indispensável para conservar o poder real".66-[14] Donde se conclui que a sucessão por morte fundamenta-se no princípio da incapacidade, por velhice, de exercer a função real. A razão é de ordem mágica: quem perdeu a força física não pode transmiti-la à natureza por via de irradiação, como deveria e teria que fazer um rei.
Menelaus-supporting-the-body-of-Patroclus-
Terminada esta longa digressão, necessária para que se possam compreender tantas sucessões violentas dentro do mito, voltemos à violência, à hýbris das hamartíai dos Atridas.
De Pélops e Hipodamia, conforme esquema já exposto, nasceram, entre outros, Atreu, Tieste e Crisipo.
Consoante o mito, os Persidas (filhos ou descendentes de Perseu) foram os primeiros a reinar sobre a Argólida em geral e sobre Micenas em particular. Esta, fundada por Perseu, foi governada depois por seu filho Estênelo e seu neto, Euristeu. Em seguida, o poder passou para os Pelópidas, também denominados Atridas. É que a maldição paterna empurrara Atreu e Tieste para Micenas, onde se refugiaram. Essa maldição se deve ao fato de Atreu e Tieste terem assassinado o irmão Crisipo. Mais uma maldição que se vai somar a tantas outras...
Aliás, Crisipo, como engrenagem da machina, já havia contribuído para aumentar-lhe a potência fatídica. Quando Laio, ainda muito jovem, se viu obrigado a fugir de Tebas, porque Zeto e Anfião se lhe haviam apoderado violentamente do trono, refugiou-se na corte de Pélops, na Élida.
Esquecendo-se dos laços sagrados da hospitalidade, Laio deixou-se dominar por uma paixão louca por Crisipo e, com o consentimento deste, o raptou, inaugurando, destarte, na Grécia, ao menos miticamente, a pederastia. Pélops amaldiçoou a Laio, e Hera, a protetora dos amores legítimos, anatematizou a ambos. O resultado dessa dupla maldição há de se traduzir também na Maldição dos Labdácidas, com Laio, Jocasta, Édipo, Etéocles, Polinice e Antígona...
Voltemos a Atreu e Tieste. Morto Euristeu, sem deixar descendentes, os micênios, dando crédito a um oráculo, entregaram-lhes o trono. Foi pela disputa do reino de Micenas entre os dois irmãos que surgiu o ódio mais terrível, alimentado por traições, adultério, incesto, canibalismo, violência e morte. Atreu, que havia encontrado um carneiro de velocino de ouro, prometera sacrificá-lo a Ártemis, mas guardou-o para si e escondeu o tosão de ouro num cofre. Aérope, que era mulher de Atreu, mas amante de Tieste, entregara a este secretamente o velocino. No debate entre ambos diante dos micênios, Tieste propôs que ocuparia o trono o que mostrasse à assembleia um tosão de ouro. Atreu aceitou, de imediato, a proposta, pois desconhecia a traição da esposa e a perfídia do irmão. Tieste seria fatalmente o vencedor, não fora a intervenção de Zeus, que, por meio de Hermes, aconselhou a Atreu fazer uma nova proposta: o rei seria designado por um prodígio. Se o sol seguisse seu curso normal, Tieste seria o rei, se regressasse para leste, Atreu ocuparia o trono. Aceito o desafio, todos passaram a observar o céu. O sol voltou para o nascente e Atreu, por proteção divina, passou a reinar em Micenas, expulsando Tieste de seu reino.
Helen of Troy -  1898,
 Evelyn de Morgan
Sabedor um pouco mais tarde da traição de Aérope, fingiu uma reconciliação com o irmão, convidou-o a participar de um banquete e serviu-lhe como repasto as carnes de três filhos que Tieste tivera com uma Náiade: Áglao, Calíleon e Orcômeno. Após o banquete, Atreu mostrou-lhe as cabeças de seus três filhos e, mais uma vez, o baniu. Tieste refugiou-se em Sicione, onde, a conselho de um oráculo, se uniu à própria filha Pelopia e dela teve um filho, Egisto. Pelopia seguiu para Micenas e lá se casou com o próprio tio Atreu. Egisto foi, pois, criado na corte de Atreu e como ignorasse que Tieste era seu pai, recebeu do padrasto a ordem de matá-lo. Egisto, todavia, descobriu a tempo quem era seu verdadeiro pai. Retornou a Micenas, assassinou Atreu e entregou o trono a Tieste.
Agamêmnon e Menelau, filhos de Atreu e de Aérope! Que se poderia esperar destes condenados e marcados por tantas misérias e crimes? Agamêmnon surge no mito como o rei por excelência, encarregado na Ilíada do comando supremo dos exércitos gregos que sitiavam Tróia. Consoante a designação de seus ancestrais, é chamado Atrida, Pelópida ou Tantálida. Reinava sobre Argos, Micenas e até mesmo sobre toda a Lacedemônia. Era casado com Clitemnestra, irmã de Helena, ambas filhas de Tíndaro e Leda. Para obter Clitemnestra, que era casada, Agamêmnon iniciou logo sua carreira por um crime duplo: matou-lhe o marido, Tântalo, filho de Tieste, e a um filho recém-nascido do casal. Perseguido pelos Dioscuros, Castor e Pólux, irmãos, por parte de mãe, de Clitemnestra e Helena, refugiou-se na corte de Tíndaro.
Desse casamento com Clitemnestra, que se ligara a Agamêmnon contra a vontade, nasceram três filhas: Crisótemis, Laódice e Ifianassa e um filho, Orestes. Tal é o primeiro estágio da lenda. Surge depois Ifigênia ao lado de Ifianassa e Laódice é substituída pelos poetas trágicos por Electra, totalmente desconhecida de Homero. Desta ninhada fatídica os trágicos conheciam principalmente Ifigênia, Electra e Orestes.
Quando uma verdadeira multidão de pretendentes à mão de Helena assediava a princesa, Tíndaro, a conselho do solerte Ulisses, ligou-os por dois juramentos: respeitar a decisão de Helena na escolha do noivo, sem contestar a posse da jovem esposa e se o escolhido fosse, de qualquer forma, atacado, os demais deviam socorrê-lo. Quando o príncipe troiano Páris ou Alexandre raptou Helena, Menelau, a quem ela escolhera por marido, pediu auxílio a seu irmão Agamêmnon, o poderoso rei de Micenas, que também estava ligado a Menelau por juramento. Agamêmnon foi escolhido comandante supremo da armada aquéia, seja por seu valor pessoal, seja porque era uma espécie de rei suserano, dada a importância de Micenas no conjunto do mundo aqueu, quer por efeito de hábil campanha política. Convocados os demais reis ligados por juramento a Menelau, formou-se o núcleo da grande armada destinada a vingar o rapto de Helena e atacar Tróia, para onde Páris levara a princesa.
Cavalo de Troia - Henri-Paul Motte
Os chefes aqueus reuniram-se em Áulis, cidade e porto da Beócia, em frente à ilha de Eubéia. De início, os presságios foram favoráveis. Feito um sacrifício a Apoio, uma serpente surgiu do altar e, laçando-se sobre um ninho numa árvore vizinha, devorou oito filhotes de pássaros e a mãe, ao todo nove, e em seguida, transformou-se em pedra. Calcas, o adivinho da vida militar, como Tirésias o era da religiosa, disse que Zeus queria significar que Tróia seria tomada após dez anos de luta. De acordo com os Cantos Cí-prios, poemas que narram fatos anteriores à Ilíada, os Aqueus, ignorando as vias de acesso para Tróia, abordaram em Mísia, na Ásia Menor e, depois de diversos combates esparsos, foram dispersados por uma tempestade, regressando cada um a seu reino. Oito anos mais tarde, reuniram-se novamente em Áulis. O mar, todavia, permaneceu inacessível aos navegantes por causa de uma grande calmaria. Consultado mais uma vez, Calcas explicou que o fato se devia à cólera de Ártemis, porque Agamêmnon, matando uma corça, afirmara que nem a deusa o faria melhor que ele. A cólera de Ártemis poderia se dever também a Atreu, que, como se viu, não lhe sacrificara o carneiro de velo de ouro ou ainda porque o rei de Micenas prometera sacrificar-lhe o produto mais belo do ano, que, por fatalidade, havia sido sua filha Ifigênia. Agamêmnon, após alguma relutância, terminou por consentir no sacrifício de Ifigênia, ou por ambição pessoal, ou por visar ao bem comum. De qualquer forma, esse sacrifício agravou profundamente as queixas já existentes e o desamor de Clitemnestra pelo esposo. Sacrificada a jovem Ifigênia, partiu finalmente a frota grega em direção a Tróia, fazendo escala na ilha de Tênedos. Na ilha de Lemnos, Agamêmnon, a conselho de Ulisses, ordenou que se deixasse Filoctetes (sem cujas flechas, herdadas de Héracles, Tróia não poderia ser tomada), de cuja ferida, provocada pela mordida de uma serpente de Tênedos, exalava um odor insuportável.
Nove anos de lutas diante da cidadela de Príamo, de acordo com os presságios, já se haviam passado, quando surgiu grave dissensão entre Agamêmnon e o principal herói aqueu, Aquiles. É que ambos, tendo participado de diversas expedições de pilhagem contra cidades vizinhas, lograram se apossar de duas belíssimas jovens: Briseida, que se tornou escrava de Aquiles, e Criseida, filha do sacerdote de Apoio, Crises, foi feita cativa de Agamêmnon.
Crises, humildemente, dirigiu-se à tenda do rei de Micenas e tentou resgatar a filha. O rei o expulsou com ameaças. Apoio, movido pelas súplicas de seu sacerdote, enviou uma peste terrível contra os exércitos gregos.
É neste ponto que começa a narrativa da Ilíada. Talvez não fosse fora de propósito dizer, e o faremos, de caminho, que a Ilíada não narra a Guerra de Tróia, mas apenas um episódio do nono ano da luta, exatamente a ira de Aquiles e suas consequências funestas. Quando o poema termina, com os funerais de Heitor, Tróia continua de pé.
Vendo o exército assolado pela peste, Aquiles convocou uma assembleia. O adivinho Calcas, consultado, respondeu ser necessário devolver Criseida. Após violenta altercação com Aquiles, Agamêmnon resolveu devolver a filha de Crises, mas, em compensação, mandou buscar a cativa de Aquiles, Briseida. Aquiles irritado e como fora de si, porque gravemente ofendido em sua timé, em sua honra pessoal, coisa que um herói grego prezava acima de tudo, retirou-se do combate. Zeus, a pedido de Tétis, mãe do herói, consentiu em que os troianos saíssem vitoriosos, até que se fizesse condigna reparação a Aquiles. Para isso, Zeus enviou ao rei um sonho enganador para o empenhar na luta, fazendo-o acreditar que poderia tomar Tróia sem o concurso do filho de Tétis. Além do mais, um antigo oráculo havia predito a Agamêmnon que a cidadela de Príamo cairia, quando houvesse uma discórdia no acampamento dos Aqueus.
Peter Paul Rubens - 1791 A Morte de Aquiles
Sem Aquiles, o rei de Micenas interveio pessoalmente no combate e muitos foram seus feitos gloriosos, mas os Aqueus, após duas grandes batalhas, foram sempre repelidos. Diante de uma derrota iminente, Agamêmnon, a conselho do prudente e sábio Nestor, dispôs-se a devolver Briseida e comprometeu-se ainda a enviar presentes a Aquiles. Ájax e Ulisses foram procurá-lo, mas o herói não aceitou a reconciliação. Face à audácia dos Troianos, comandados por Heitor, que ousaram até mesmo chegar junto aos navios gregos e incendiá-los, Aquiles permitiu que seu fraternal amigo Pátroclo se revestisse de suas armas, mas somente para repelir os Troianos. Pátroclo foi além dos limites, além do métron: quis escalar as muralhas de Tróia e foi morto por Heitor. Somente a dor imensa pela morte do amigo e o desejo alucinado de vingança fizeram o herói, após receber todos os desagravos por parte do comandante dos Aqueus, voltar à cruenta refrega e não descansou enquanto não matou Heitor. Assim, a partir do canto XVIII da Ilíada, a figura de Agamêmnon se ofuscou diante dos lampejos do escudo e dos coriscos da espada de Aquiles.
As epopeias posteriores ao século IX a. C. enumeram outras gestas do rei de Micenas, após a morte de Heitor e Aquiles, e suas intervenções na grave querela entre Ájax e Ulisses pela posse das armas do maior dos heróis aqueus.
Na Odisseia se narra que, após a queda de Tróia, Agamêmnon tomou como uma de suas cativas e amantes a filha de Príamo, a profetisa Cassandra, que lhe deu dois gêmeos, Teledamo e Pélops. O retorno de Tróada do chefe supremo dos Aqueus ensejou também outras narrativas épicas. Os Nóstoi, ou poemas dos Retornos, contam que, no momento da partida, o eídolon, a "imagem" de Aquiles apareceu ao esposo de Clitemnestra e procurou retê-lo em Tróada, anunciando-lhe todas as desgraças futuras e exigindo-lhe, ao mesmo tempo, o sacrifício de Políxena, uma das filhas de Príamo, rei de Tróia, cuja esposa Hécuba fazia também parte, juntamente com Políxena, do quinhão de Agamêmnon, como está na tragédia Hécuba de Eurípides.
Quando este chegou aos arredores de Micenas, Egisto, que se tornara amante de Clitemnestra, fingindo uma reconciliação, ofereceu ao primo um grande banquete e, com o auxílio de vinte homens, dissimulados na sala do festim, matou a Agamêmnon e a todos os acompanhantes do rei. Outras versões atestam que Clitemnestra participou do massacre e pessoalmente eliminou a sua rival Cassandra.
Píndaro acrescenta que no ódio contra a raça do esposo, a amante de Egisto quis também matar seu filho Orestes. Nos Trágicos, as circunstâncias variam: ora Agamêmnon, como está em Homero, foi morto durante o banquete, ora o foi durante o banho, no momento em que, embaraçado na indumentária que lhe dera a esposa, e cujas mangas ela havia cosido, o rei não pôde se defender.
Consoante Higino (século I a. C.), e suas informações devem basear-se em fontes antigas, o instigador do crime foi Éax, irmão de Palamedes, cuja lapidação havia sido ordenada por Agamêmnon. Éax teria contado a Clitemnestra que o esposo pretendia substituí-la por Cassandra. Esta, com afiada machadinha, assassinou não só o marido, quando o mesmo fazia um sacrifício, mas igualmente a Cassandra.
Egisto, outro amaldiçoado, é, como já se assinalou, filho de Tieste e da própria filha deste, Pelopia. Tieste, banido pelo irmão Atreu, vivia longe de Micenas, em Sicione, e buscava com todas as suas forças um meio de vingar-se de seu irmão, que lhe havia massacrado os filhos. Um oráculo lhe anunciou que o vingador almejado só poderia ser um filho que ele tivesse de sua própria filha. Certa noite, em que Pelopia celebrava um sacrifício, Tieste a estuprou, 'mas a jovem conseguiu arrancar-lhe a espada e a guardou. Sem o saber, Atreu se casou com a sobrinha e mandou procurar por Sicione inteira a criança, que, ao nascer, Pelopia havia exposto.67-[15] O menino foi encontrado entre pastores que o haviam recolhido e alimentado com leite de cabra, daí o nome de Egisto, em grego Aígistos, uma vez que aíks, aigós é cabra. Aproveitemos o momento para um corte: normalmente a criança exposta é salva e direta ou indiretamente alimentada por um pássaro ou animal. Semíramis, a rainha da Babilônia, o foi por pombas; Gilgamex, por uma águia; Ciro, por uma cadela; Télefo, por uma corça; Páris, por uma ursa; Rômulo e Remo, por uma loba. .. Provas iniciáticas desse tipo parecem ter por origem longínqua as denominadas crenças zoolátricas: prova-se que "o exposto" pertence ao clã, se o animal do clã pode se aproximar dele, sem fazer-lhe mal. Trata-se, em todo caso, de um duplo ordálio (juízo de um deus): a criança sobrevive em condições em que normalmente deveria perecer; é reconhecida por um animal do clã e por meio dele ou diretamente pelo mesmo é alimentada. Ao sair dessa prova dupla, o exposto está destinado a
"grandes feitos". Observe-se, portanto, nesses ordálios menos um rito familiar que um rito político, capaz de habilitar "o desconhecido" a ser recebido num grupo social que normalmente o repeliria. As práticas acobertadas pelo mito da criança exposta deviam se aplicar a pessoas que, de um modo ou de outro, eram intrusas, ou ainda a homens que tinham que lutar para conquistar uma posição a que primitivamente ou "aparentemente" não tinham direito algum.
Voltemos a Egisto. Criado como filho por Atreu, este um pouco mais tarde mandou-o procurar Tieste, prendê-lo e trazê-lo à sua presença.
Egisto cumpriu a missão e Atreu lhe ordenou que matasse Tieste. Quando este viu a espada com que deveria ser assassinado, a reconheceu de imediato. Perguntou a Egisto onde ele a obtivera. Respondeu-lhe o jovem que tinha sido uma dádiva de sua mãe Pelopia. Tieste mandou chamar a filha e lhe revelou o segredo do nascimento de Egisto. Tomando a espada, Pelopia se traspassou com ela. Vendo a lâmina toda ensanguentada, Atreu se rejubilou com "a morte do irmão". Egisto, então, de um só golpe, o prostrou. Em seguida, Tieste e Egisto reinaram em Micenas. Tendo seduzido Clitemnestra, com ela passou a viver. Após a morte de Agamêmnon, Egisto ainda reinou em Micenas por sete anos, até que chegou o vingador...
Orestes, com todo o fardo das hamartíai de dois génes, paterno e materno, já é conhecido desde as epopeias homéricas como "o vingador de Agamêmnon", embora não se fale do assassinato de Clitemnestra, praticado pelo filho. É só a partir de Esquilo e sua Oréstia que Orestes se tornou uma figura de primeiro plano. O primeiro episódio de sua vida situa-se na lenda troiana, quando, na primeira expedição grega, a armada foi dar em Mísia, no reino de Télefo. Tendo sido este ferido por Aquiles, não podia ser curado, segundo o oráculo, senão pela lança do filho de Tétis. Algum tempo depois, quando da segunda tentativa aquéia de navegar para a Tróada, Télefo foi ter a Áulis, em busca de cura, pois ali estava acampado o exército grego. Preso como espião, Télefo agarrou o pequeno Orestes e ameaçou matá-lo, se o maltratassem. Conseguiu, assim, ser ouvido e obteve a cura.
Quando do regresso de Agamêmnon a Micenas e de seu assassinato por Egisto e Clitemnestra, Orestes escapou do massacre graças à sua irmã Electra, que o enviou clandestinamente para a Fócida, onde foi criado como filho na corte de Estrófio, casado com Anaxíbia, irmã de Agamêmnon e pai de Pílades. Explica-se, desse modo, a lendária amizade que uniu para sempre os primos Orestes e Pílades. O mérito, todavia, da salvação de Orestes das mãos sangrentas de Clitemnestra tem outras versões no mito: o menino teria escapado, graças à presteza de sua ama, de seu preceptor ou sobretudo de um velho servidor da família. Atingida a idade adulta, Orestes recebeu de Apoio, deus essencialmente patriarcal, a ordem de vingar o pai, matando Egisto e sua amante. Acompanhado de Pílades, Orestes chega a Argos e dirige-se ao túmulo de Agamêmnon, onde consagra uma madeixa. Electra, que vem fazer libações sobre o túmulo do pai, reconhece o sinal deixado pelo irmão e combina com o mesmo a morte de Egisto e Clitemnestra. Claro está que variam bastante de um poeta trágico para outro os sinais de reconhecimento entre os irmãos e os estratagemas que se planejaram para o morticínio dos então reis de Micenas. Mas tragédia é obra de arte!
Iniciando seu plano de vingança, Orestes se apresenta como um viajante vindo da Fócida e encarregado por Estrófio de anunciar a morte de Orestes e de saber se as cinzas do morto deveriam permanecer em Cirra, sede do reino de Estrófio, ou ser transportadas para Argos. Clitemnestra, livre do medo de ver seus crimes punidos, deu um grito de júbilo e mandou, de imediato, avisar Egisto, que estava no campo. O rei regressou pressuroso e foi o primeiro a tombar sob os golpes de Orestes. Clitemnestra, com suas súplicas, conseguiu abalar o filho, mas Pílades lembrou-lhe a ordem de Apoio e o caráter sagrado da vingança. Assassinando a própria mãe, Orestes é, imediatamente, envolvido pelas Erínias, as vingadoras do sangue parental derramado, segundo se mostrou páginas atrás, tema aliás amplamente desenvolvido na análise que fizemos da tragédia grega. 68[16]
Orestes buscou asilo no omphalós ("umbigo", pedra que marcava o centro do mundo), do Oráculo de Delfos, onde foi purificado por Apoio. Essa purificação, no entanto, não o libertou das Erínias, tornando-se necessário um julgamento regular, que se realizou numa pequena colina de Atenas, mais tarde denominada Areópago, tribunal onde se julgavam os crimes de sangue. Como o julgamento terminasse empatado, Atená, que presidia o tribunal, deu seu voto, "Voto de Minerva", em favor do matricida.
Libertado "exteriormente" da perseguição das Erínias, Orestes pediu a Apoio uma indicação do que deveria fazer a seguir. A Pítia respondeu-lhe que, para se livrar em definitivo da mania, da loucura, da "opressão interna" provocada pelo matricídio, deveria dirigir-se a Táurida, na Ásia Menor, descobrir e apossar-se da estátua de Ártemis. Acompanhado de Pílades, Orestes chegou a seu destino, mas foram ambos aprisionados pelo rei Toas, que costumava sacrificar os estrangeiros à sua deusa. Foram levados a Ifigênia, de quem se falará mais abaixo, a qual era a sacerdotisa do templo e encarregada de sacrificar os adventícios. Interrogados por Ifigênia a respeito de onde vinham e a que país pertenciam, a filha de Agamêmnon descobriu logo de quem se tratava, pois Orestes era seu irmão. Contou-lhe este por que motivo procurara a Táurida e qual a ordem que recebera de Apoio. Disposta a facilitar o roubo da estátua de Ártemis, de que era guardiã, Ifigênia planejou fugir com Orestes. Para tanto persuadiu o rei Toas de que não se poderia sacrificar o estrangeiro, que fugira da pátria por ter assassinado a própria mãe, sem primeiro purificá-lo, bem como a estátua da deusa, nas águas do mar. O rei deu crédito à sacerdotisa, que se dirigiu para a praia com Orestes, Pílades e a estátua de Ártemis. Sob o pretexto de que os ritos eram secretos, distanciou-se dos guardas e fugiu com os dois e a estátua no barco do irmão.
Desde menino, Orestes era noivo de Hermíona, filha de Menelau e Helena, mas, em Tróia, Menelau prometera a filha a Neptólemo, filho de Aquiles. No regresso de Táurida, Orestes foi para junto de Hermíona, enquanto Neptólemo se encontrava em Delfos. Raptou a filha de Menelau e depois matou-lhe o marido. Com ela teve um filho chamado Tisâmeno. Reinou em Argos e depois também em Esparta, como sucessor de Menelau. Pouco tempo antes de sua morte, uma grande peste devastou-lhe o reino.
Ifigênia, a filha mais velha de Agamêmnon e Clitemnestra, como se viu, foi reclamada por Ártemis como vítima para que cessasse a calmaria e a frota aquéia pudesse chegar a Tróada. No momento exato em que ia ser sacrificada, Ártemis a substituiu por uma corça e, arrebatada, Ifigênia foi transportada para Táurida, onde se tornou sacerdotisa de Ártemis.
O sacrifício do primogênito é um tema comum no mito. Em todas as tradições encontra-se o símbolo do filho ou da filha imolados, cujo exemplo mais conhecido é o "sacrifício" de Isaac por Abraão. O sentido do sacrifício, todavia, pode ser desvirtuado: é o caso de Agamêmnon, sacrificando Ifigênia, em que a obediência ao oráculo, por intermédio de Calcas, dissimula, certamente, outras intenções, como a vaidade pessoal e o desejo de vingança, camuflados sob o disfarce de "bem comum".
O sacrifício de Abraão é inteiramente diferente. Embora, de certa forma, Isaac fosse mais um filho de Deus que de Abraão, pois que Sara o concebera já em idade avançada, por bondade de Deus, quando, normalmente, não tinha mais possibilidade de fazê-lo, a exigência de Javé se coloca em outra dimensão. Isaac foi concebido em função da fé: ele se tornou o filho da promessa e da fé. Se bem que o sacrifício de Abraão se assemelhe a todos os sacrifícios de recém-nascidos do mundo antigo, a diferença entre ambos é total. Se nas culturas primitivas um tal sacrifício, não obstante seu caráter religioso, era exclusivamente um hábito, um rito, cuja significação se tornava perfeitamente inteligível, no caso de Abraão é um ato de fé. O Patriarca não compreende por que um tal sacrifício lhe é imposto, mas ele se dispõe a fazê-lo, porque o Senhor o exigiu. Por este ato, aparentemente absurdo, Abraão inaugura uma nova experiência religiosa: a substituição de gestos arquetípicos por uma religião implantada na fé.
Talvez valesse a pena repetir, a esse respeito, a fórmula comovente de São Paulo: contra spem in spem credidit, contra toda a esperança, ele acreditou na esperança.. .
Voltando ao assunto. No mundo paleo-oriental, o primeiro filho era, não raro, considerado como filho de deus. É que no Oriente antigo as jovens tinham por norma passar uma noite no templo e "conceber" do deus, representado, evidentemente, pelo sacerdote ou por um seu enviado, o estrangeiro. Pelo sacrifício desse primeiro filho, do primogênito, restituía-se à divindade aquilo que, de fato, lhe pertencia. O sangue jovem restabelecia a energia esgotada do deus, porque as divindades da vegetação e da fertilidade exauriam-se em seu esforço espermático para assegurar a opulência do kósmos e manter-lhe o equilíbrio. Tinham elas, pois, necessidade de se regenerarem periodicamente. Movendo-se numa economia do sagrado, que será ultrapassada por Abraão e seus sucessores, os sacrifícios no unindo antigo, para utilizar da expressão de Kierkegaard, pertenciam ao geral, quer dizer, eram fundamentados em teofanias arcaicas, cuja tônica era, tão-somente, a circulação da energia sagrada no kósmos: da divindade para a natureza; da natureza para o homem e do homem, através do sacrifício, novamente para a divindade, num ciclo ininterrupto.
Na época histórica esses sacrifícios reais foram substituídos por uma "provação" como o de Isaac ou por um ato de submissão, como o de Ifigênia, mas cuja execução não mais se consumava: Isaac foi substituído por um carneiro e Ifigênia, por uma corça.
Trata-se, ao que tudo faz crer, de uma repressão patriarcal: obtida a submissão, o ato se dá por cumprido e o opressor por satisfeito.
Electra, a destemida irmã de Orestes, não é mencionada nas epopeias homéricas. Nos poetas posteriores, sobretudo a partir de Ésquilo, Electra substituiu de tal maneira a Laódice, que esta "filha canônica" de Agamêmnon acabou por desaparecer do mito. Após o assassinato do pai por Egisto e Clitemnestra, Electra, não fora a intervenção da mãe, teria sido também eliminada pelo padrasto. Na realidade, por seu apego incondicional ao pai Agamêmnon (o Complexo de Electra está aí para perpetuá-lo), "a jovem indomável" odiava Egisto e não perdoava a Clitemnestra a co-autoria no massacre de seu amado pai. Segundo algumas versões, salvou de morte certa ao pequeno Orestes, confiando-o, em segredo, como já se viu, a um velho preceptor, que o levou para longe de Micenas. Por tudo isto, era tratada no palácio como escrava. Temendo que a enteada tivesse um filho, que, um dia, pudesse vingar a morte de Agamêmnon, Egisto fê-la casar com um pobre camponês, residente longe da cidade. O marido, todavia, respeitou-lhe a virgindade. Por ocasião do retorno de Orestes, a jovem princesa trabalhou incansavelmente na preparação da grande vingança e tomou parte ativa no duplo assassinato. Quando, após a morte de Egisto e Clitemnestra, Orestes foi envolvido e "enlouquecido" pelas Erínias, ela colocou-se a seu lado e cuidou do irmão até o julgamento final no Areópago de Atenas. Na tragédia de Sófocles, intitulada Aletes (que era filho de Egisto), hoje infelizmente perdida, Electra figurava como personagem principal. Como Orestes e Pílades houvessem partido para Táurida em busca da estátua de Ártemis, anunciou-se em Micenas que ambos haviam perecido às mãos de Ifigênia. De imediato Aletes apossou-se do trono de Micenas. Como louca, Electra partiu para Delfos e lá, encontrando Ifigênia, que retornara com Orestes e Pílades, arrancou do altar de Apoio um tição ardente e quase cegou a irmã, não fora a pronta intervenção de Orestes. Voltando a Micenas com Orestes, cooperou mais uma vez com o irmão no assassinato de Aletes.
Após as núpcias de Orestes com Hermíona, Electra casou com Pílades. E a maldição dos Átridas continuou. . .
O ciclo da maldição dos Átridas serviu de banquete trágico a nove grandes tragédias que chegaram até nós: de Ésquilo (525-~456 a.C.): Oréstia (Agamêmnon, Coéforas, Eumênides); de Sófocles (496 - ~ 405 a.C.): Electra; de Eurípides (~ 480-406): Electra, Helena, Ifigênia em Áulis, Ifigênia em Táurida, Orestes.
É tempo de se voltar a Micenas. No capítulo seguinte há de se abordar histórica e miticamente a última grande façanha de Micenas, A Guerra de Troia, com o rapto da esposa de Menelau, Helena. Depois, as trevas dóricas descerão sobre as ruínas da Hélade...





52 LLOYD-JONES, Hugh et alii. O Mundo Grego. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977, cap. I, p. 18.
53. Todol esses deuses e deusas terão seus mitos relatados e comentados nos capítulos subsequentes.
54. VENTRIS, Michael & CHADWICK, John. Documents in Mycenaean Creek. London, Cambridge University Press, 1956, p. 125-126.
55. Nemeias, VI, 1, sqq.
56. PICARD, Charles. Monum. Piot., t. 49, p. 41sqq.
57. PICARD, Charles et alii. Éléments Orientaux dans la Religion Ancienne. Paris, PUF, 1960, p. 163sqq.
58. LÉVÊQUE, Pierre. Op. cit., p. 69sqq.
59. Septuaginta, Os Setenta, é nome que deve sua origem à lenda, segundo a qual setenta e dois sábios judeus teriam traduzido, em setenta e dois dias, o Antigo Testamento para o grego. Na realidade, tal versão foi feita por sábios judeus da diáspora, em Alexandria, provavelmente de 250 a 150 a. C.
60. O grande poeta latino Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.) nos dá, Epist. 1, 1, 9, o sentido exato, "físico", de peccare: Solue senescentem mature sanus equum, ne peccet ad extremum ridendus et ilia ducat: "Tem o bom-senso de desatrelar a tempo teu cavalo, que envelhece, a fim de que ele, em meio ao riso, não venha a tropeçar e perder o fôlego". 61. Parad. 3, 1: Alius magis alio uel peccat uel recte facit: "Há uma graduação nas nossas faltas como em nossos méritos"

62. Doze é um número redondo homérico, inseparável de sua perspectiva cósmica. No    gigantesco túmulo de Pátroclo, construído sobre uma base quadrada, Aquiles sacrificou doze jovens troianos. Trata-se do número da "totalidade".
63. DELCOURT, Marie. Oedipe ou la Légende du Conquérant. Paris, "Les Belles Lettres", 1981, p. 66sqq.
64. FREUD, Sigmund. Totem et Tabou. Paris, Payot, 1924. A passagem de que fala Marie Delcourt está na p. 197: "O sentimento de culpabilidade do filho gerou os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por este motivo, devem se confundir com os dois desejos reprimidos do complexo de Édipo".
65. Eurípides. Alceste. Tradução de Junito de Souza Brandão. Rio de Janeiro, Bruno Buccini Editor, 1968, vs. 615-740.
66. WESTRUP, C.W. Le roi dans 1'Odissée, in: Mélanges Fournier. Paris, 1929, p. 772.
67. A respeito do tema Criança exposta (L'Enfant Exposé), cf. Marie Delcourt, Op. cit., p. 3-65.
68. BRANDÃO, Junito. Teatro Grego: Tragédia e Comédia. Petrópolis, VOZES, 1985, 3ª ed„ p. 22-35. 

BIBLIOGRAFIA
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, I. Petrópolis, Vozes, 2002.