O “descobrimento” do Brasil
O escrivão Pero Vaz de Caminha relata que, ao atracar em Santa Cruz, no dia 22 de ABRIL de 1500, a esquadra de Cabral foi visitada por dois habitantes da terra, mancebos e de bons corpos, que se metiam em almadias, embarcações rústicas feitas de troncos de madeira atados entre si. A cena é o encontro entre duas civilizações separadas por um enorme abismo de evolução científica e tecnológica. …
Edição e imagens: Thoth3126@protonmail.ch
Descobrimento do Brasil. Conhecimentos científicos aplicados à realidade de bordo guiaram a aventura dos {re}descobrimentos.
Fonte: http://veja.abril.com.br
… Enquanto as almadias estão entre as mais primitivas formas de navegação usadas pelo ser humano, as naus e as caravelas portuguesas são o que de mais avançado a arte de navegar produziu até hoje. Nossos navios levam a bordo instrumentos, cartas de navegação e conhecimentos desenvolvidos pelos mais importantes sábios da cristandade – matemáticos, astrônomos, cartógrafos, geógrafos, especialistas na construção de navios e uso de artilharia, vindos de diversos países.
Portugal está na liderança dos descobrimentos porque é o primeiro, entre os países contemporâneos, a transformar a pesquisa tecnológica e científica em política de Estado. É uma aventura que começou dois séculos atrás, com as primeiras e tímidas incursões ao mundo desconhecido, e se completou com a política de portas abertas a especialistas espanhóis, catalães, italianos e alemães, com o propósito de avançar os conhecimentos náuticos de nossos oficiais e marujos.
As caravelas são um prodígio da nossa tecnologia e a vanguarda das expedições. São navios velozes e relativamente pequenos. Uma típica caravela portuguesa tem de 20 a 30 metros metros de comprimento, de 6 a 8 de largura, 50 toneladas de capacidade e é tripulada por quarenta ou cinquenta homens. Com vento a favor, chega a percorrer 250 quilômetros por dia. Utiliza as chamadas velas latinas, triangulares, erguidas em dois ou três mastros.
Elas permitem mudar de curso rapidamente e, em ziguezague, velejar até mesmo com vento contrário. A grande vantagem das caravelas sobre os pesados navios mercantes utilizados no Mediterrâneo por genoveses e catalães é a versatilidade. Ideais para navegação costeira, podem entrar em rios e estuários, manobrar em águas baixas, contornar arrecifes e bancos de areia. E também zarpar rapidamente, no caso de um ataque imprevisto de nativos hostis.
As naus são barcos maiores e mais lentos. A capitânia de Pedro Álvares Cabral é um navio de 250 toneladas e, ao partir, levava 190 homens. Elas são a ferramenta essencial no comércio já estabelecido com a África e no nascente intercâmbio com as Índias. Na longa viagem de ida, transportam produtos para a troca, provisões, guarnições militares, armas e canhões. Na volta, trazem as mercadorias cobiçadas pela Europa. Suas velas redondas são menos versáteis que as das caravelas, mas permitem uma impulsão muito maior com vento favorável. As caravelas, ao contrário das naus, levam pouca carga. Nem é necessário. Nessa época de grandes descobertas, a carga mais preciosa que elas podem transportar é a informação sobre as rotas marítimas e as terras recém-contatadas – um produto que não pesa nada, mas é vital para as conquistas no além-mar.
O grande mérito de Portugal não está na descoberta de novidades científicas, mas na assimilação de conhecimentos, recentes ou antigos, e sua aplicação com propósitos bem definidos, que é abrir rotas de comércio e agregar terras produtivas, onde não haja governo cristão, às propriedades da coroa. As técnicas que hoje permitem aos nossos navios cruzar o Mar Oceano, dobrar o Cabo da Boa Esperança e chegar às Índias são herança dos fenícios, dos egípcios, dos gregos e de várias outras civilizações antigas, guardadas e aprimoradas pelos mouros nos últimos séculos.
A vela latina, que equipa nossas caravelas, foi trazida pelos árabes do Oceano Índico, depois de conquistarem o Egito. O uso do compasso para anotar a direção e a trajetória do navio chegou ao Ocidente no começo do século XIII. A confecção de cartas náuticas os italianos também aprenderam dos árabes, um século atrás. O astrolábio, um revolucionário instrumento de localização utilizado pela esquadra de Cabral na Terra de Santa Cruz, existe desde a Antiguidade e foi recuperado pelos astrólogos medievais para observar, em terra, o movimento e a posição dos astros no firmamento. Mesmo a bússola, fundamental nos descobrimentos, já é usada no Mediterrâneo há muito tempo por genoveses, venezianos e catalães.
São muitos os desafios científicos que os descobrimentos impuseram a Portugal. O maior deles, evidentemente, é sair ao mar alto e voltar para casa com segurança. Até pouco tempo atrás, a navegação se restringia aos portos europeus e da área em volta do Mediterrâneo, todos mapeados e bem conhecidos do mundo civilizado desde a época dos romanos. Navegava-se mais por experiência – que em Portugal chamamos de “conhecenças” – do que por instrumentos. O único tipo de carta náutica disponível até anos atrás eram os mapas do Mediterrâneo desenhados pelos italianos no século XII. Conhecidos como carta-portulano, forneciam direções e distâncias aproximadas entre os principais portos europeus e africanos.
As medições eram feitas a olho nu. Depois foram aperfeiçoadas com o uso de um instrumento chamado quadrante. É um arco graduado, de 45 graus – equivalente a um quarto da esfera terrestre –, equipado com uma agulha e uma linha esticada por um peso de chumbo na ponta. Apontado para a Tramontana, o quadrante fornece a latitude exata em que se encontra o navio.
Quando os nossos marinheiros passaram a se aventurar mais longe da costa, tudo ficou mais difícil. Para fugir das calmarias do Mar Oceano, às vezes é preciso passar semanas sem avistar terra ou qualquer outro ponto seguro de referência. Além disso, ao se aproximar da linha do Equador, a Tramontana (a estrela Polar não é visível do hemisfério sul) fica encoberta no horizonte. Sem ela, é impossível calcular a latitude com ajuda do quadrante. Foi para superar esse tipo de obstáculo que os reis portugueses se empenharam em buscar sábios em outros países.
Os sábios estrangeiros têm vindo a Portugal por duas razões. A primeira é a disposição da corte de oferecer-lhes postos de trabalho e status social que eles não tinham em outros reinos. De cientista em seu país de origem, esses astrônomos, matemáticos e cartógrafos passaram a trabalhar diretamente como conselheiros dos monarcas portugueses e com eles compartilhar a vida na corte. O segundo motivo é a comparativa tolerância religiosa dos portugueses. Mais inflexíveis, os monarcas espanhóis, precursores da ideia de expulsar judeus e mouros (muçulmanos) que não aceitassem abraçar o cristianismo, beneficiaram Portugal indiretamente. Os conselheiros que dom João II reuniu para desenvolver os conhecimentos náuticos são, em sua maioria, sábios judeus expulsos da Espanha em 1492.
A bússola e o quadrante são muito úteis às navegações, mas a grande novidade a bordo dos nossos navios neste começo de século é o astrolábio. É um disco, metálico ou de madeira, de 360 graus no qual estão representados todos os astros do zodíaco. Desde a Antiguidade era usado em terra firme, para calcular a posição e o movimento dos astros no céu. O que os portugueses fizeram com a ajuda dos sábios estrangeiros foi simplificá-lo e adaptá-lo para uso em alto-mar. O astrolábio permite calcular a latitude pela passagem meridiana do Sol, ou seja, ao meio-dia, quando o astro se encontra no seu ponto mais elevado no céu. Para isso, é necessário enquadrar o raio solar em dois orifícios existentes no aparelho e, em seguida, fazer alguns cálculos matemáticos.
A vantagem tecnológica alcançada pelos portugueses nasceu não propriamente do uso do astrolábio, mas da simplificação desses cálculos. Até pouco tempo atrás, exigia-se para isso certo conhecimento de matemática e astronomia, um grande obstáculo para nossos marujos, dos quais a maioria é rude e iletrada. Outro problema é que os manuais de astronomia e navegação estavam escritos em hebraico (língua dos antigos navegantes fenícios), árabe ou latim. A principal tarefa dos conselheiros de dom João II foi reunir todo esse conhecimento, adaptá-lo para a navegação e traduzi-lo para o português, em linguagem acessível aos marujos.
O resultado é um manual chamado “Regulamento do astrolábio e do quadrante para determinar cada dia a declinação, o deslocamento do Sol e a posição da estrela Polar”. Dividido em cinco partes, ele contém instruções minuciosas sobre como determinar a latitude, com dezessete exemplos práticos em diferentes posições da esfera terrestre. Também ensina a registrar na carta náutica o caminho percorrido pelo navio. A última parte é um calendário de doze meses, sem indicação do ano. Esse calendário informa, para cada dia do ano, a posição do Sol na abóbada celeste.
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Ele diz ter chegado a essa conclusão baseando-se nas “regras do astrolábio”, referência ao manual de instruções. Na carta, Mestre João reclama da dificuldade de usar o instrumento em alto-mar, devido ao balanço do navio, mas encerra com um conselho: “Para o mar, melhor é dirigir-se pela altura do Sol, que não por nenhuma estrela; e melhor com o astrolábio, que não com quadrante nem outro nenhum instrumento“. É assim que, na prática, vão se somando os conhecimentos tecnológicos que guiam a aventura dos descobrimentos.
“De tanto ver triunfar nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” – Ruy Barbosa
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