domingo, 30 de novembro de 2014

LINGUAGEM CIENTÍFICA – ORIGEM E FORMAÇÃO


Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
O padrão universal para a linguagem científica teve início na primeira metade do século XVIII, com Carolus Linnaeus (Carl von Linné – 1707-1778), aportuguesado para Carlos Lineu. Acontece que, por toda a Idade Média, havia o hábito de os pesquisadores publicarem seus estudos em latim ou em grego clássico. Estudo que não fosse redigido em um desses idiomas não era considerado sério e mesmo científico, uma vez que, latim e grego, na forma clássica, não eram mais falados por povo algum. Isso os estabilizava e evitava a mudança. Os grandes pensadores chegavam mesmo a traduzir seus nomes para o latim. Veja-se, somente para citar alguns, René Descartes era Renatus Cartesius, daí o adjetivo cartesiano; Carl von Linné era Carolus Linnaeus; e, assim, tantos outros.
Nos primeiros tempos da Idade Moderna, manteve-se esse costume. Porém, cada vez mais havia estudiosos que não dominavam suficientemente essas línguas em nível de produzirem textos científicos, utilizando-se delas. Além do mais, surgiam muitos termos novos na linha da ciência.
Outro fato que contribuía para a confusão na linguagem científica era o surgimento das línguas modernas, cujos povos concorriam entre si em matéria de ciência. Havia mesmo diferentes sistemas de medidas que, parcialmente, se mantém até hoje. Surgiram os grandes congressos internacionais de ciência, com muitos cientistas apresentando seus trabalhos em seu idioma nativo. Como não havia uma nomenclatura científica universal, o mesmo objeto de pesquisa recebia um termo em inglês, outro em francês e um terceiro em alemão, apenas para citar alguns idiomas.
Foi então que Carlos Lineu propôs uma universalização linguística. Lineu, que era botânico, zoólogo e médico sueco de prestígio universal, em 1735, publicou, ainda em latim, um livro intitulado "Systema Naturae", no qual apresentava determinadas regras capazes de padronizar a forma de nomear espécies. Criou os nomes científicos dos seres vivos em língua latina e elaborou princípios que, daí em diante deveriam orientar todas as criações na nomenclatura dos seres vivos. Tais sugestões foram amplamente aceitas e são utilizadas até hoje. Esse sistema compreende as seguintes características:
- Todo o ser vivo possui um nome científico;
-Todo nome científico é composto por duas palavras. A primeira se refere ao Gênero da espécie, e o segundo, ao epíteto (ou nome) específico, que é o que caracteriza a espécie em questão;
- O epíteto específico pode se referir a uma característica própria daquele indivíduo, como a sua localização, organização corporal, dentre outros; ou mesmo uma homenagem a algum cientista, personagem, etc.;
- Os nomes científicos, quando escritos, devem estar destacados em itálico. Em casos em que os nomes estejam sendo redigidos à mão; ou em outras situações nas quais utilizar o itálico se apresente inviável, tais nomenclaturas devem estar grifadas;
- A primeira letra do nome científico deve ser apresentada em maiúsculo e a primeira letra do epíteto específico, em minúsculo;
- A partir da segunda vez que se escreve o nome de determinada espécie, o Gênero pode se apresentar abreviado. Ex: Cachorro - Canis familiaris - C. familiaris;
- Em algumas situações, quando o cientista não conseguiu, ainda, identificar a que espécie um determinado indivíduo pertence, ou quando não é de interesse que esta seja explicitada; ele utiliza, após o nome do Gênero, o termo sp., na Zoologia; ou spec., na Botânica. Tanto um como outro não devem ser colocados em itálico, ou mesmo sublinhados; e devem estar acompanhados de um ponto final: Hypsiboas sp. (perereca pertencente ao Gênero Hypsiboas); Hypsiboas goianus (perereca-de-pijama).
Vejam-se alguns exemplos de nomes científicos: Ser humano - Homo sapiens; Leão - Panthera leo; Tigre - Panthera tigres; Barata-americana - Periplaneta americana; Milho - Zea mays; Ipê-amarelo - Tabebuia alba, etc.
O prestígio de Lineu era tanto que dele disse o filósofo suíço Jean-Jacques-Rousseau em uma mensagem: "Diga-lhe que não conheço maior homem no mundo." O grande escritor alemão Johan Wolfgang von Goethe escreveu: "Além de Shakespeare e Spinoza, não conheço ninguém entre os que já não se encontram entre nós que me tenha influenciado mais".  E o autor sueco August Strindberg escreveu: "Lineu era na realidade um poeta que por acaso se tornou um naturalista".
Lineu trabalhou também no estabelecimento da escala que Ander Celsius havia proposto, chamada centígrada, estabelecendo o 0º (zero grau) para o ponto de fusão da água, além de estabelecer os 100º (cem graus centígrados) para o ponto de ebulição.
O estabelecimento de uma nomenclatura científica universal para os seres vivos foi um passo importante para a universalização de muitos outros sistemas linguísticos para a ciência. Uma área fundamental para a ciência é a área médica que também criou uma nomenclatura universal a partir do grego e do latim.
Para isso, estabeleceram-se três princípios fundamentais:
- simplificação da linguagem;
- precisão na significação das palavras;
- intercâmbio científico entre as nações com diferentes idiomas de cultura.
O uso de radicais, prefixos e sufixos gregos e latinos, comuns a vários termos, permite expressar em poucas palavras fatos e conceitos que, de outro modo, demandariam locuções e frases extensas. Cada termo médico, tal como ocorre em outras áreas do conhecimento humano, caracteriza um objeto, indica uma ação ou representa a síntese de uma ideia ou de um fenômeno, a definição de um processo, contendo em si, muitas vezes, verdadeira holofrase, cujo sentido está implícito na própria palavra.
Assim, hepatectomia é um termo que compõe uma holofrase, uma palavra que, por seus elementos formadores, traz o seu sentido. O elemento grego πρ, ήπτος (hêpar, hēpatos), fígado, mais o prefixo grego κ, que significa fora, extração, e, finalmente, o radical grego τομία, que significa corte, incisão, cirurgia. Assim, pelo conhecimento dos elementos formadores do termo, para o entendedor dos elementos formadores, o termo vai funcionar como uma frase, holofrase, ou seja, uma palavra que funciona, em termos informativos, como uma frase. O termo hepatectomia vai ser entendido como cirurgia para extração parcial ou total do fígado.
Linguagem científica

A partir desse processo holofrásico, criou-se um conjunto vocabular que abrange todos os ramos da ciência médica. Partiu-se da formação de termos e seus processos derivativo e compositivo. No processo derivativo, seguiram-se os dois sistemas de derivação, através da anexação ao radical de elementos prefixais e sufixais. Há um processo de formação das palavras conhecido como parassíntese em que são acrescidos um prefixo e um sufixo ao termo a ser formado. Com o acréscimo de prefixo, temos o termo ápode. O termo forma-se do prefixo grego , que significa ausência, sem, e o radical de πούς, ποδός (pus, podós), pé, que é ποδ-, mais o sufixo formador de adjetivos e substantivos -e. Assim, ápode significa sem pés, desprovido de pés.
No processo de formação vocabular em que se usa o processo de justaposição, o sistema linguístico permite que simplesmente se justaponham os radicais um ao outro ou que se faça uma aglutinação, ou seja, a composição de um novo vocábulo em que um ou mais dos elementos formadores sofra alterações.  
Assim, cardiopatia forma-se pela justaposição dos radicais gregos καρδία(cardia), coração, e πατία(patia), sensação, doença, resultando o significado de doença do coração. No termo pediatra, há uma formação do termo técnico por aglutinação. A palavra é formada pelo radical grego πας(pais), παιδός (paidós), criança, que se transforma em português para ped, que se junta ao radial grego ατρεία(iatreia), medicina, significando medicina infantil.
Como os idiomas clássicos, o grego e o latim, são línguas declináveis, ou seja, as palavras modificam-se de acordo com a função sintática que exercem na frase, há termos que se originam de diferentes formas sintáticas da língua original.

Veja-se o caso que marca o sujeito é o nominativo. A palavra leão, em latim, tem a forma do nominativo leo. O nome próprio Leo é formado do nominativo latino. Porém, o genitivo dessa palavra é leonis. O genitivo é o caso mais importante em cada idioma. Seu nome se forma de genitor, que é pai, gerador. Nas línguas declinadas, todas as palavras se formam a partir do genitivo. Assim, o adjetivo português leonino é formado com base no genitivo latino leonis.
Como o idioma grego clássico ocorre o mesmo, o que já não se passa com o grego moderno falado atualmente na Grécia. Tomemos o termo do grego clássico correspondente a fígado que é πρ (hêpar), para o nominativo, e ήπτος (hēpatos) para o genitivo. A grande maioria dos termos médicos são formados do genitivo grego.
Carolus Linnaeus's Floral Clocks

Observem-se exemplos como hepatite, hepatologia, hepático, gastro-hepático, somente para analisar alguns casos. Em hepatite, usa-se o radical do genitivo  ήπτ- (hēpat-) e o sufixo grego –ιτε (ite) que significa inflamação. Num sentido simples, hepatite seria uma inflamação do fígado. Hepatologia acrescentaria o radical λογία (loguía), cujo sentido comum é estudo, tratado.
Genericamente, hepatologia seria um estudo ou tratado do fígado. Em gastro-hepático, há o acréscimo do genitivo do termo grego γαστήρ (gastér, nominativo), γαστρός (gastrós, genitivo), que significa estômago, cujo radical gastro, e mais o sufixo grego –ικο, que significa relativo a. Resulta, então, o sentido relativo ao estômago e ao fígado.
Há um grande número de termos médicos formados do latim, como é o caso de femural, que se forma do termo latino femur (nominativo) femuris, (genitivo), fêmur. O adjetivo femural é então relativo ao fêmur, pelo acréscimo do sifixo português -al, que sigrifica relativo a.
A área da química emprega uma série de prefixos e sufixos específicos para a formação de seus termos científicos, que marcam propriedades dos elementos como composição e valência.
Em todas as áreas das ciências existe um grande número de termos científicos, cuja formação segue os mesmos parâmetros abordados acima. Há também certa formação fundada nos nomes próprios dos pesquisadores que descobriram determinados elementos científicos. Assim, cada área elabora seus glossários específicos e, muitas vezes, um termo tem um sentido em uma área da ciência e outro em outra.
Veja-se o termo morfologia. Em medicina é a parte que se ocupa do estudo das estruturas do corpo humano, ou seja, anatomia, embriologia, histologia, significa que você estudará os órgãos sem se preocupar com seu funcionamento apenas com o que cada órgão tem e como ele é formado e constituído.
Já em termos de linguagem, a morfologia estuda as classes e a forma das palavras, seus componentes, como raiz, radical, vogal temática, prefixos, sufixos, desinências, etc.
Acontece que o termo morfologia forma-se dos radicais gregos μορφή(morfé), nominativo,  μορφής (morfés) genitivo, significa forma e λογία(loguía), nominativo e λογίας(loguías), genitivo, que significa estudo. Por essa formação etimológica, percebe-se que o termo tem um sentido muito amplo de estudo da forma, e sua especificidade vai depender da área a que está sendo aplicado, ou seja, a forma a que o estudo se refere.
O que estes estudos do vocabulário científico mostram é que todos os idiomas empregam os mesmos procedimentos, resultando termos científicos muito semelhantes, mantidas apenas as especificidades de cada idioma. Veja-se o termo antropologia que se forma dos radicais gregos νθρωπος(ânthropos), nominativo, e νθρώπου(anthrópu), genitivo, e λογία(loguía), nominativo e λογίας(loguías).
Carolus Linnaeus

Assim, seguindo a mesma formação, em inglês é anthropology; em alemão, Anthropologie; em francês, anthropologie; em espanhol, antropologia; em italiano, antropologia; em cirílico russo, антропология; e, em esperanto, antropologio. Pode-se constatar a grandíssima semelhança que o processo confere aos termos de modo universal.

Todas as áreas do saber possuem um vocabulário específico e seguem mais ou menos os mesmos critérios na criação dessa terminologia, por isso, este estudo pode estar a serviço da cultura em quaisquer que sejam suas manifestações. 

sábado, 29 de novembro de 2014

SÍSIFO – O MITO DA ROTINA DIÁRIA

            Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
         
Sísifo, de Tiziano, 1549
Geralmente, este mito remete à rotina das atividades diárias, repetitivas e constantes. Os gregos elaboraram também para essa situação um criativo mito, o de Sísifo, cujo nome em grego clássico é Σίσυφος. Ele era filho de Éolo, a divindade grega do vento, e fundador da cidade de Corinto. Segundo uma tradição antiga, liderada por Homero, era o mais sábio e mais prudente dos mortais, mas há outra versão segundo a qual seria um assaltante. Há versões ainda que o ligam ao comércio, segundo as quais, sempre enganava seus parceiros.
Sísifo recebera o trono de Corinto após a morte de Creonte e a partida de Jasão e Medeia da cidade. Sísifo casara-se com Mérope, uma das sete Plêiades.
Teria um irmão de nome Salmoneu a quem detestava. Usando de estratégias, acabou provocando a morte do irmão. Zeus enviou-o a Tânato, divindade da morte. Porém, o astuto Sísifo enganou esse deus, elogiando sua beleza, e convencendo-o de que ficaria mais belo com um colar ao pescoço. Assim, aprisionou-o com uma corrente, de tal forma que, por muito tempo, ninguém mais morria. 
Essa atitude do herói provocou a ira de Ares, deus da guerra, e de Hades, deus dos mortos, que precisavam da Morte para exercer suas funções. Logo que tomou conhecimento da prisão de Tânato, Hades libertou-o e solicitou-lhe que trouxesse o embusteiro para a mansão dos mortos.
Ainda desta vez, ele ludibria as divindades. Antes de partir para o mundo subterrâneo, pedira que sua esposa deixasse seu corpo insepulto. Chegado à mansão da morte, queixou-se a Hades de que a esposa não o havia sepultado. Solicitou à divindade o obséquio de retornar e providenciar as próprias exéquias, o que lhe foi concedido.
Chegado à sua casa, retomou o próprio corpo e fugiu em companhia da esposa. Desse modo, pelo segunda vez, ludibriara a Morte. Assim, escondido dos deuses, viveu até avançada velhice.
O suplício de Sísifo - Franz von Stuck (1863 - 1928)

Zeus ordenou a Hermes que o conduzisse ao tártaro onde teve um castigo exemplar, por sua contumaz rebeldia e desacato às ordens divinas. Sua pena foi conduzir, rolando-a com as próprias mãos, uma enorme pedra de mármore ao cume de um outeiro. Lá chegada, a pedra rolava morro abaixo por um empuxo irresistível. O condenado teria de novamente movê-la ao topo, assim, constantemente e para todo o sempre.
Albert Camus, o grande escritor argelino-francês, escreveu uma versão muito bem elaborada do mito sisifiano. Em sua filosofia do absurdo, o romancista explora o tema de que a vida humana sobre a terra e o esforço que ela exige do ser humano é completamente absurda, levansdo-se em consideração que o escritor é ateu.
Em “O Mito de Sísifo”, Camus afirma que, num mundo sem Deus, nem eternidade, ao homem somente resta a revolta. Procura um sentido para o ateu dentro dessa existência absurda. Somente a paixão numa dimensão estritamente material e humana é uma possível saída. Afirma: "Não há um nobre amor, mas o que reconhece - tanto os efêmeros quanto os duradouros". Dom Juan, o conquistador inveterado, seria exemplo acabado desse amor.
Camus explora também o absurdo criador ou do artista. Desde a explicação é impossível, o absurdo da arte é restrita a uma descrição das inúmeras experiências no mundo. "Se o mundo fosse claro, a arte não existiria." A absurda criação, naturalmente, tem também de abster-se de julgar e de aludir ao mesmo tempo a menor sombra de esperança.
Para o narrador, o mito de Sísifo aponta para um tipo de homem que não se acomoda a um destino proposto pela divindade. Pelo contrário, não crê em prêmio ou castigo, após a morte. A vida humana, nesse aspecto, é absurda: não existe paraíso, não existe inferno. O homem deve aprender a conformar-se com sua finitude e com o nada que se segue à morte. Conclui: "O operário de hoje trabalha todos os dias em sua vida, faz as mesmas tarefas. Esse destino não é menos absurdo, mas é trágico quando apenas em raros momentos ele se torna consciente".
Outras leituras menos pessimistas podem ser feitas a partir do mito de Sísifo. Ele é apontado por uns como o mito da paciência, do sonho no futuro. Mesmo sofrendo revezes, é possível continuar lutando por ideais difíceis de atingir. O impossível não existe. O persistente acaba atingindo sua meta. A paciência diminui a dor.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

PROSERPINA – MITOLOGIA ROMANA

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara

Joseph-Marie-Vien - Proserpine orne de le
 buste de Cérès sa mère
Os romanos, depois do processo de helenização de sua cultura (uma orientação para o modelo cultural grego), remodelaram seus cultos e mitos, com base na clássica mitologia grega. Por esse processo, abandonaram, ou melhor, deram menor importância a divindades nacionais como Saturno, o poderoso eus da agricultura, e Diana, a divindade das florestas.
Instituíram, como divindade suprema, Júpiter, que representaria o papel exercido por Zeus na cultura grega. A esposa de Júpiter era Juno, correspondendo à deusa Hera, entre os gregos.
 Assim, Proserpina seria a divindade equivalente à divindade grega Perséfone. Filha de Júpiter e Ceres, deusa da agricultura e das colheitas, de onde vem o substantivo cereal. Uma das funções de Ceres seria prover o povo de cereais, alimentos agrícolas.
Plutão, divindade romana dos infernos, teria raptado a filha da deusa rural. O termo latino rus, ruris, plural rura, que significa campos, deu origem a uma família etimológica de palavras como rural, ruralismo, etc.
Ao saber do desaparecimento da filha, Ceres teria destruído todas as colheitas e lavouras e imposto uma condição para a reconstituição das plantas e da agricultura: a devolução de sua filha.
O rapto de Proserpina, de Luca Giordano,
 no Palazzo Medici Riccardi , Florença

Como, por estratégia da poderosa divindade do mundo infernal, Proserpina havia ingerido bagos de romã, alimento da morada das trevas, não poderia jamais abandonar definitivamente o submundo.
A jovem permaneceria nos antros infernais em companhia do marido durante o inverno. Nesse período, Ceres, com saudades da filha, descuidava dos campos. As plantas morriam. As folhas tombavam. Com o prenúncio do retorno de Proserpina, porém, a primavera principiava, o ar aquecia, os dias se tornavam ensolarados e começavam a reverdecer os campos e as flores a desabrochar.
CERES –  Jean-Antoine Watteau (1684-1721),
 Washington ..





Na Europa, a primavera começa em maio. Então, o dia 31 de maio era consagrado, wem Roma, a Proserpina. Poeticamente, maio é conhecido como o belo mês das flores. Veja-se a quase identidade entre o mito de Deméter Ceres e o mito grego de Perséfone e Deméter.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

PENSAMENTO




          Afirmar que uma mentira repetida muitas vezes torna-se uma verdade é um sofisma absurdo. A mentira pode ecoar por algum tempo com aparência de verdade, mas, pela sua inconsistência, ela acaba sempre desmascarada, é apenas uma questão de tempo e razão.


Oscar Luiz Brisolara

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

MEDEIA – A MEDIDA DO AMOR - GREEK MYTHOLOGY


 Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Mesdeia - Eugène Delacroix
O mito de Medeia e Jasão é de traços muito fortes, chegando mesmo a chocar o leitor. O poeta grego Eurípides em sua peça de teatro é o primeiro grande escritor a abordar esse mitologema da mulher apaixonada que toma atitudes extremadas. Depois dele, muitíssimos narradores, em todos os tempos, voltaram ao tema. Em Roma, o filósofo Sêneca escreve uma versão maravilhosa desse drama. No Brasil, Chico Buarque Hollanda, escreveu Gota d’Água, que é nossa Medeia brasileira.
Medeia, no mito original, é filha do rei da Cólquida (atual República da Geórgia, que fazia parte da antiga União Soviética), uma região junto ao Mar Negro. Medeia é uma maga de grandes poderes. Jasão, para recuperar seu trono, usurpado por seu tio, recorre aos poderes dela para cumprir as exigências para recuperar o seu reino, herança paterna.
O tio exigia o “velocino de ouro”, um pelego de ouro, de propriedade do pai de Medeia, guardado por um dragão. Medeia trai o pai, indicando a Jasão, que com ela se casara, a forma de subornar o monstro que guardava o tesouro paterno.
Jasão construíra o Argo, um barco veloz em que juntara cinquenta dos mais destacados heróis da Grécia e, juntamente com a amada, partiram para o oriente e raptaram o velocino.
Medeia tomou consigo seu irmão Apsirto, que sacrificou e jogava seus membros ao mar, a fim de atrasar o pai, que os perseguia. Dessa forma, conseguiram evadir-se com a presa. 
Medeia - Os Argonautas - Morte de Apsirto -
James Draper1904)
Dirigiram-se, então, para Corinto, onde passaram a viver, na corte de Creonte, à espera do desfecho do processo. Segundo uma tradição, o casal gerou dois filhos. Segundo outras versões, seriam mesmo três.
Creonte, rei de Corinto, tinha uma filha, Creúsa, muito mais jovem do que Medeia, que, por seu lado, era mais velha do que Jasão. Este apaixonou-se pela jovem princesa. Quando informou a Medeia que iria abandoná-la e casar-se com Creúsa e que o rei dava a ela o prazo de um dia para abandonar a cidade, Medeia solicitou-lhe que lhe deixasse pelo menos os filhos, pois ele teria novos descendentes com a futura rainha.
Ele negou-lhe o pedido, afirmando que seus filhos era o que mais queria sob o céu. Medeia, então, enviou um vestido magnifico de presente a Creúsa.
Jasão levou os meninos ao palácio onde se hospedava a mãe para despedirem-se dela.
Medeia - John William Waterhouse 

Começou, então, a maga sua vingança. Quando a jovem princesa vai experimentar o vestido, este, por efeitos mágicos, incendeia-se, matando a moça e seu pai e destruindo todo o palácio e os que nele estavam. Ao retornar para junto de Medeia a fim de buscar os filhos, essa o aguarda com uma faca e os meninos no alto do mezanino, fora do alcance do ex-marido. Ele solicita que ela poupe as crianças. Ela nega-se a isso e mata-os lentamente para aumentar a tortura do pai.
O mitologema de Medeia é uma metáfora da mulher que ama nas máximas proporções que o coração humano pode permitir. Porém, quando não correspondida ou traída, vinga-se também nessas máximas proporções.
Trair o pai e matar o irmão são metáforas que apelam para o seguinte: ela faz o máximo que está ao seu alcance para auxiliar o seu amado. Matar os filhos é outra metáfora que equivale afirmar que, traída, vinga-se com a maior força vingativa que pode ser concebida.

Segue uma análise feita pelo professor Junito Brandão em seu livro Mitologia Grega, volume 3, páginas de 183 a 203.
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Atingida a Cólquida, os argonautas puderam, finalmente, respirar por alguns dias em paz. A grande tarefa, a conquista do velocino de ouro, cabia ao herói Jasão. Este, de imediato, dirigiu-se à corte de Eetes, irmão de Circe e Pasífae, e pai de Calcíope, Medéia e Apsirto, dando-lhe ciência da missão que o trazia à Ásia. O rei, para livrar-se de um importuno, prontificou-se a devolver-lhe o precioso velocino, desde que o pretendente ao trono de Iolco executasse quatro tarefas, que, diga-se logo, nenhum mortal poderia sequer iniciar, a não ser que a grande faísca de eternidade, o amor, que transmuta impossíveis em possíveis, apareces se! As provas impossíveis para qualquer ser humano eram as seguintes: pôr o jugo em dois touros bravios, presentes de Hefesto a Eetes, touros de pés e cornos de bronze, que lançavam chamas pelas narinas e atrelá-los a uma charrua de diamante; lavrar com eles uma vasta área e nela semear os dentes do dragão morto por Cadmo na Beócia, presentes de Atená ao rei; matar os gigantes que nasceriam desses dentes; eliminar o dragão que montava guarda ao Velocino, no bosque sagrado do deus Ares.
Girolamo Macchietti - Medeia e Jasão

Perplexo face às tarefas impostas, que teriam que ser realizadas num só dia, de sol a sol, o herói estava pronto para retornar a Iolco, quando surgiu Medéia, mágica consumada, que, apaixonada por ele, talvez por artimanhas da deusa Hera, comprometeu-se a ajudá-lo a vencer todas as provas. Sob juramento solene de casamento e de levá-la para a Grécia, Repetindo-se, desse modo, o episódio de Ariadne e Teseu, Jasão recebeu de Medéia todos os recursos necessários para uma vitória completa. Deu-lhe a filha de Eetes um bálsamo maravilhoso com que o herói untou o corpo e as armas, tornando-os invulneráveis ao ferro e ao fogo.
Recomendou-lhe ainda que, tão logo nascessem os gigantes dos dentes do dragão, atirasse, de longe, uma pedra no meio deles. Os monstros começariam a se acusar mutuamente do lançamento da pedra, o que os levaria a lutar uns contra os outros, até se exterminarem por completo.
Tudo aconteceu conforme desejava a paixão de Medéia. Restava apenas vencer o dragão no bosque de Ares. A mágica fê-lo adormecer com seus sortilégios e Jasão o atravessou com sua lança, apossando-se do velocino de ouro. Face à recusa de Eetes, que se negou a cumprir a promessa feita, e ainda ameaçou incendiar a nau Argo, Jasão fugiu com Medéia, que levara seu jovem irmão Apsirto como refém.
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Quando o rei descobriu a fuga de Jasão e Medéia com o velocino, pôs-se imediatamente ao encalço da nau Argo. Medéia, que previra essa perseguição, esquartejou Apsirto, espalhando-lhe os membros em direções várias. Eetes perdeu muito tempo em recolhê-los e, quando terminou a dolorosa tarefa, era tarde demais para perseguir a "ligeira" nau Argo. Assim, com os membros ensanguentados do filho, Eetes velejou até o porto mais próximo, o de Tomos, na foz do rio Íster, e ali os enterrou. Antes de regressar à Cólquida , porém, enviou vários navios em perseguição dos argonautas, advertindo seus tripulantes de que, se regressassem sem Medéia, pagariam com a vida em lugar dela. Segundo uma outra versão, Eetes enviara Apsirto com um exército em perseguição dos fugitivos, mas tendo-se este adiantado muito, deixando o exército para trás, Jasão o teria assassinado, traiçoeiramente, com auxílio de Medéia, no templo de Ártemis, na embocadura do Íster, isto é, do Danúbio inferior.
Seja como for, os argonautas navegaram em direção ao Danúbio e, subindo o majestoso rio, chegaram ao Adriático, pois, à época da elaboração dessa variante do mito, o Íster era considerado como uma artéria fluvial, que ligava o Ponto-Euxino ao Adriático. Zeus, irritado com a morte de Apsirto, enviou uma grande tempestade, que desviou a Argo de sua rota. Foi então que a nau começou a falar e revelou a cólera do deus, acrescentando que esta perseguiria os argonautas, até que fossem purificados por Circe. Foi assim que a nau subiu o rio Erídano (Pó) e o Ródano, através da região dos lígures e dos celtas. De lá, retomou o Mediterrâneo e, costeando a Sardenha, chegou à ilha de Eeia, reino de Circe. A mágica e tia de Medéia purificou os argonautas e manteve uma longa entrevista com a sobrinha, mas se recusou peremptoriamente a hospedar Jasão em seu palácio. Da ilha de Circe, Argo retomou seu curso errante, mas a partir de então, guiada por Tétis, a pedido de Hera, atravessou sem incidentes maiores o Mar das Sereias. É que Orfeu entoou ao som de sua lira uma canção tão bela, que os argonautas não lhes deram a menor atenção ao canto mavioso e mortal. Apenas Butes se deixou "encantar" e a nado chegou aos rochedos dessas mágicas antropófagas. Afrodite, todavia, o salvou e transportou para Lilibeu, na costa ocidental da Sicília. Passando por Cila e Caribdes, chegaram à ilha de Corcira, hodiernamente Corfu, reino dos Feaces, governado por Alcínoo e sua esposa Arete. Lá, algo de sério e grave aguardava os argonautas. Uma nau, enviada por Eetes, em perseguição aos fugitivos, chegara antes de Argo à ilha de

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Medea - William Wetmore 

Alcínoo. Os súditos de Eetes, sobretudo porque estavam com a vida em jogo, pressionaram violentamente o rei, para que lhes entregasse Medéia. O soberano, após consultar Arete (ao que parece, como se pode observar "mais tarde" na Odisseia, o regime vigente em Corcira era bem matriarcal), respondeu-lhes que entregaria a filha de Eetes, desde que ela, uma vez examinada, ainda fosse virgem. Mas, se a mesma já fosse mulher de Jasão, deveria permanecer com ele. Arete, secretamente, fez saber a Medeia a decisão do casal real e Jasão se apressou em fazer da noiva sua mulher. Desse modo, Medéia permaneceu com o esposo. Os nautas da Cólquida, não ousando retornar à pátria, radicaram-se em Corcira e os argonautas retomaram os caminhos do mar. Tão logo deixaram a ilha dos Feaces, violenta borrasca os lançou contra os Sirtes, dois perigosos recifes na costa norte da África. Tiveram, com isso, que transportar sobre os ombros a nau Argo até o lago Tritônis. Graças ao deus do Lago, Tritão, os destemidos marinheiros encontraram uma saída pelo mar e navegaram em direção a Creta. Na ilha de Minos, os nautas de Argo foram, a princípio, impedidos de desembarcar pelo monstruoso gigante Talos, de que se falou no Vol. I, p. 175, só o conseguindo graças aos sortilégios de Medéia, que, tendo descoberto o ponto vulnerável do corpo do monstro, provocou-lhe a morte. Para agradecer a vitória sobre Talos, ergueram um santuário a Atená Minoica e, ainda pela manhã, voltaram ao bojo macio do mar. Repentinamente, porém, foram envolvidos por uma noite escura e misteriosa e ninguém mais tinha noção de onde estava. Jasão implorou Febo Apolo, para que lhes mostrasse a rota em meio à total escuridão. O deus ouviu-lhe a súplica e lançou uma fresta de luz que, como um farol, guiou a nau Argo até uma das ilhas Espórades, onde lançaram âncora. A essa ilha deram o nome de νάφη (Anáphe), nome interpretado em etimologia popular como ilha da "Revelação". A derradeira escala de Argo foi na ilha de Egina. Daí, contornando a ilha de Eubéia, chegaram finalmente a Iolco, completando um périplo de quatro meses. De imediato, Jasão levou a nau Argo para Corinto e a consagrou a Posídon, como ex-voto.O mitologema de Jasão e dos argonautas, cuja redação é anterior à da Odisseia, como se depreende das palavras de Circe a Ulisses, ao descrever-lhe o perigo que representavam as Πλαγκταί (Planktái), as Planctas Odiss. XII, 59-61),

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(os ameaçadores recifes errantes, que só a altaneira nau Argo, que todos celebram, conseguiu atravessar, em seu regresso do reino de Eetes (Odiss. XII, 69-70), acabou por tornar-se muito popular, formando um vasto ciclo. Como os poemas homéricos, as gestas dos bravos argonautas serviram de matéria-prima a poemas épicos como as Argonáuticas, em quatro cantos, do poeta da época alexandrina Apolônio de Rodes (295-215 a.C.) e  Argonáutica, igualmente poema épico, em oito cantos, do vate latino da época imperial, século I, p. C, Caio Valério Flaco Setino Balbo150 , a poemas de cunho lírico, como as cartas 6 e 12 das Heroides de Ovídio e as tragédias, como a portentosa Medéia de Eurípides (séc. V a.C.).
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Jason entrega a  Pélia o Tosão de Ouro  -
Apulie, v. 340 av. J.-C. Musée du Louvre.

Consagrada, em Corinto, a nau Argo a Posídon, Jasão retornou a Iolco e entregou o velocino de ouro a Pélias. A partir desse momento são muitas as tradições e variantes. Afirmam alguns mitógrafos que Jasão assumiu o poder em Iolco, em lugar do tio, e viveu tranquilamente em seu reino, tendo com Medeia apenas um filho, Medeio, conforme a Teogonia, 1001, o qual foi entregue aos cuidados de Quirão. Outros atribuem-lhe uma filha, Eriópis, a de "olhos grandes".
A tradição trágica nomeia dois, Feres e Mérmero. Diodoro aumenta o número para três: Téssalo, Alcímenes e Tisandro.
A versão mais seguida, no entanto, é a que aponta Medéia como a grande "vingadora de Iolco". A mola mestra da ação criminosa da mágica da Cólquida seria seu amor por Jasão. Pélias lhe ofendera gravemente o marido: usurpara o trono, que de direito lhe pertencia; induzira-lhe o pai Esão ao suicídio, obrigara-o a buscar o velocino de ouro e, conforme algumas versões, recebido este, recusara-se a devolver-lhe o trono, como havia prometido.
Para vingar os crimes e ultrajes de Pélias, a terrível mágica resolveu eliminá-lo. Convenceu as filhas do usurpador, menos a 150. O poeta latino da época dos Flávios, CaioValério Flaco (45-88 p. C, datas prováveis), deixou incompleto seu poema épico Argonáutica, que possivelmente abrangeria dez ou doze cantos. Chegaram até nós oito cantos (5.593 versos hexâmetros), mas o oitavo se interrompe bruscamente no meio, exatamente no verso 467, no momento da fuga de Jasão e Medéia. A respeito do poeta escreveu Quintiliano (Inst. Or. 10,1): Multum in Valerio Flaco nuper amisimus, "recentemente perdemos muito com a morte de Valério Flaco", testemunho que, de um lado, mostra que o poeta deve ter falecido durante o reinado de Vespasiano e, de outro, que a obra de Valério não era considerada, como por vezes se apregoa uma fria imitação de Apolônio de Rodes.
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Alceste, ainda muito menina, de que poderiam facilmente rejuvenescer o pai, já muito avançado em anos, se o fizessem em pedaços e o deitassem a ferver num caldeirão de bronze em meio a uma composição mágica, cujo segredo somente ela conhecia. Para provar sua arte, Medéia tomou um velho cordeiro (outros afirmam que foi Esão) e, usando o processo acima descrito, transformou-o num cordeirinho ou o velho pai de Jasão num Esão jovem e robusto. As pelíades, sem hesitar, despedaçaram o pai e cozinharam-lhe os pedaços, conforme a receita de Medéia.
Como Pélias não ressuscitasse, transidas de horror, fugiram para a Arcádia.Com a morte do rei, Jasão e Medéia, com os filhos do casal, Feres e Mérmero, foram banidos de Iolco por Acasto. Há uma variante, segundo a qual, Medéia, disfarçada numa sacerdotisa de Ártemis, deixou sozinha a nau Argo e dirigiu-se a Iolco. Tendo convencido as filhas de Pélias a cozinhar-lhe os membros, fez vir Jasão, que entregou o trono a Acasto, uma vez que este o acompanhara, contra a vontade do pai, na perigosa expedição dos argonautas. A seguir tal versão, o exílio em Corinto foi voluntário. Eetes, filho de Hélio e da oceânida Perseida, recebera do pai o reino de Corinto, mas deixou o trono vacante para reinar na Cólquida, cuja capital era Fásis, às margens do rio do mesmo nome. Eetes se casara com Eurilite ou com a nereida Neera, com a oceânida Idíia ou ainda, segundo algumas versões, com sua própria sobrinha, a terrível Hécate. Seja como for, filha de Hécate ou sobrinha de Circe, Medeia conhecia profundamente os segredos da bruxaria e dos sortilégios."
À época" em que se passa o "drama de Medéia", Corinto é governada por Creonte, filho de Liceto, que é preciso não confundir com o segundo Creonte, o tebano, filho de Meneceu, e irmão da infortunada Jocasta. Jasão e Medéia, expulsos de Iolco, viviam em paz em Corinto, quando o rei Creonte concebeu a idéia de casar sua filha Glauce ou Creúsa com o herói dos argonautas. Jasão, sem tergiversar, aceitou o enlace real e repudiou Medéia, que foi banida de Corinto pelo próprio soberano. Implorando-lhe o prazo de um só dia, sob o pretexto de se despedir dos filhos, a feiticeira da Cólquida teve tempo suficiente para preparar a mortal represália. Enlouquecida pelo ódio, pela dor e pela ingratidão do esposo, resolveu vingar-se
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Tragicamente, enviando à noiva de Jasão, por intermédio de seus filhos Feres e Mérmero, um sinistro presente de núpcias. Tratava-se de um manto ou de um véu e de uma coroa de ouro, impregnados de poções mágicas e fatais. A própria Medéia, na tragédia homônima de Eurípides151, deixa bem claro o poder terrível de semelhantes adornos: Se ela aceitar estes atavios e com eles se engalanar, perecerá horrivelmente e, com ela, quem a tocar: tal o poder dos venenos com que ungirei meus presentes (Med. 787-789)
Vaidosa, Glauce, sem hesitar, não apenas aceitou, mas igualmente se ataviou com o lindíssimo véu e a coroa de ouro, prenúncio da coroa real, que, em breve, luziria sobre sua fronte jovem e bela...
A princesa, todavia, teve apenas tempo de se ornamentar. De imediato, um fogo misterioso começou a devorar-lhe as carnes e os ossos. O rei, que correra em socorro da filha, foi envolvido também por esse incêndio inextinguível, que os transformou rapidamente num monte de cinzas.
Não parou aí a vindita louca da filha de Eetes. Também os filhos morrerão pelas mãos da própria mãe, para que Jasão sofra uma solidão mais aterradora do que aquela que lhe desejara: Mas aqui mudo minha maneira de falar e gemo sobre o que terei de fazer a seguir: matarei meus filhos queridíssimos e ninguém pode salvá-los.
E, quando tiver aniquilado toda a família de Jasão, sairei desta terra, expulsa pelo assassinato de meus filhos queridos, e pelo crime horrendo que tiver ousado cometer. (Med. 790-796).
Mortos Creonte e Creúsa e incendiado o palácio real, Medéia assassinou os próprios filhos no templo de Hera e, num carro alado, presente de seu avô Hélio, o Sol, puxado por dois dragões ou duas serpentes monstruosas, fugiu para Atenas.
Este exílio na pólis de Palas Atená, prodigalizado por Egeu, conforme se mostrou no capítulo anterior, acabou igualmente de maneira dolorosa para o rei de Atenas e para a própria princesa da Cólquida. É que Medéia, em tudo que fazia, sempre colocou a paixão como fio condutor de suas ações. Ela própria o afirma na tragédia euripidiana: 151. Veja-se a análise que fizemos desta tragédia de Eurípides em Teatro Grego: Tragédia e Comédia. Petrópolis, Edit. Vozes, 3ª ed. 1985, p. 63sqq.
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θυμς δ κρείσσων τν μν βουλευμάτω  (thymòs dè kreísson tôn emôn buleumáton)  — a paixão é mais forte em mim do que a razão (Med. 1.079)ν͵  Existe uma versão segundo a qual a morte dos filhos pela própria mãe teria sido uma "criação" de Eurípides. Na realidade, a tradição mais seguida no mito é a de que Feres e Mérmero teriam sido lapidados pelos habitantes de Corinto pelo fato de terem levado a Glauce os presentes fatídicos de Medeia.
O drama de Medeia - Anselm Feuerbach

Uma variante, certamente tardia, atesta que Medeia, após matar, na Cólquida, a seu tio Perses e repor Eetes no trono, segundo se viu igualmente no capítulo anterior, não teria morrido; mas transportada para os Campos Elísios ou para a Ilha dos Bem-Aventurados, se teria consorciado com o divino Aquiles. É bem verdade que, após gravitar na Odisseia entre os ἕλοιμι (eídola) abúlicos do Hades, o grande herói da Ilíada fora também promovido à Ilha dos Bem-Aventurados. Aí o encontramos casado ora com Ifigênia ora com Helena (e mais uma vez o pacífico Menelau ficou solitarius) ou ainda com a filha de Hécuba, Políxena, imolada sobre o túmulo do herói, mas sua união com Medéia é estranha. Seria um par sumamente antitético!
Quanto a Jasão, desejoso de regressar a Iolco, se aliou a Peleu, inimigo figadal de Acasto, por culpa da esposa deste, Astidamia, a que se fez referência na Introdução, 5, e com auxílio dos Dioscuros, destruiu a cidade, assumindo o poder, que, logo depois, passou para seu filho Téssalo. O frágil e indeciso Jasão, todavia, não foi esquecido. Ovídio, nas Heroides, fez que duas apaixonadas suspirassem de saudades e de ódio pelo conquistador do velocino de ouro.
A carta 6, Hypsipyle Iasoni, de "Hipsípila a Jasão", é o desabafo da rainha das lemníades, a quem o herói seduzira e deixara grávida de gêmeos na passagem pela ilha de Lemnos em direção à Cólquida.152
Hipsípila exprobra a Medeia, "feia e estrangeira, estrangeira cruel", que lhe roubara o amante. Apesar de tudo, ainda acredita na força do amor, já que "o amor crê em tudo": credula res amor est (Her. 6,21).152. O roteiro e quase todos os trechos traduzidos que estampamos nesta carta são extraídos da edição das Heroides do Prof. Walter Vergna, por nós prefaciada e mais de uma vez citada.
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Embora tenha feito promessa solene de voltar a Lemnos, a rainha sabe que "ele é volúvel e mais indeciso que as auras primaveris" e que não cumprirá o compromisso assumido.
Em todo caso, serve-lhe de lenitivo o saber que "Medeia lhe ganhou o namorado com ervas feiticeiras, quando o amor deve ser conquistado com beleza e dignidade":
... Male quaeritur herbis,
Moribus et forma conciliandus, amor (Her. 6,93-94).
Ameaça vingar-se, "prometendo ser para Medeia mais cruel do que a própria Medeia": Medeae Medea forem... (Her. 6,151).

Mas a promessa de vingança fica apenas na promessa. Na citada edição das Heroides o Prof. Walter Vergna acentua que "Mais uma vez a vingança, através de ameaças, é ofuscada pela força do amor"; e transcreve a seguir dois versos que em algumas edições antecedem o texto original. Trata-se de um dístico muito significativo, que põe a descoberto o grande amor da neta de Dioniso pelo ingrato e volúvel herói dos argonautas:
Lemnias Hypsipyle, Bacchi genus, Aesone nato
Dicit, et in uerbis pars quota mentis erat.

— Hipsípila de Lemnos, descendente de Baco, dirige-se ao filho de Esão e em cada palavra põe um pedaço de sua alma.
A carta 12, Medea Iasoni, de "Medeia a Jasão", é uma missiva bem ao estilo da tragédia euripidiana: a princesa da Cólquida, abandonada pelo marido, que se enamorou de Creúsa ou do trono de Corinto, explode primeiro em saudades e paixão... Depois contrapõe seu amor total à ingratidão do marido e passa dos gemidos às mais terríveis ameaças: enquanto houver ferro, fogo e ervas venenosas sua ira e vingança não se extinguirão. Em suas palavras, os vocábulos "fogo e chamas" mudam de acepção, quando soprados pelo amor ou pelo ódio:
Est aliqua ingrato meritum exprobrare uoluptas;
Hac fruar: haec de te gaudia sola feram (Her. 12,21-22).

—É como que um prazer censurar o ingrato pelo prazer recebido; deixa-me gozar este prazer, o único que ainda obterei de ti.
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Apesar de tudo, apesar de todo ressentimento, o amor e as chamas não se apagam, porque não se podem ocultar:
Perfide, sensisti, quis enim bene celat amorem?
Eminet indicio prodita flamma suo (Her. 12,37-38).
—Tu, infame, percebeste minha paixão. Quem é capaz de ocultar o amor? É uma chama que irrompe, traída por seus próprios indícios.
Tudo fizera por ele: traiu o pai, abandonou mãe e irmã, matou o próprio irmão. E mais: entregou-se a ele.
O marido, que ela salvara, agora está sendo acariciado por outra mulher. É contra Glauce primeiramente que se ergue a ira de Medeia, mas, enquanto existirem chamas e ervas venenosas, ninguém escapará a seu ódio e vingança:
Rideat et Tyrio iacet sublimis in ostro:
Flebit et ardores uincet adusta meos!
Dum ferrum flammaeque aderunt sucusque ueneni,
Hostis Medeae nullus inultus erit (Her. 12,179-182).
— Que ela se ria e permaneça sobranceira na púrpura de Tiro. Um dia chorará, consumida por um fogo mais abrasador do que este que me devora!
Enquanto houver ferro, chamas e ervas venenosas, nenhum inimigo de Medéia escapará à sua vingança!E jura, por fim, que irá até onde o ódio puder conduzi-la:
Quo feret ira sequar...
Viderit ista deus, qui nunc mea pectora uersat. (Her. 12,209.211).
— Irei até onde me arrastar o ódio, seja disto testemunha o deus que agora revolve os tormentos no meu peito!


Medea7 - John William Waterhouse

Consoante alguns mitógrafos, Jasão pereceu tragicamente em Corinto.
Um dia de muito calor, descansava sob a nau Argo, que havia sido retirada do mar para conserto e uma viga da nau, caindo sobre ele, o matou. Duas ilhas, certamente, o choraram: Lemnos e Avalon...
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Comentando o mito dos argonautas, Yves Bonnefoy faz duas observações importantes: a primeira sobre o espaço geográfico percorrido pela nau Argo e a segunda acerca de Medéia. Vamos sintetizá-las, antes de se passar com Paul Diel a uma visão simbólica do conjunto, sobretudo a um enfoque de Jasão e Medeia.
Para o poeta e mitólogo francês, "a história dos argonautas oscila entre a Demanda do Graal e as Instruções Náuticas, mas ambas acabam por confundir-se no emaranhado das narrativas de caráter erudito, através das quais seguimos as gestas de Jasão na leitura das epopeias de Apolônio de Rodes ou de Valério Flaco. A análise estatigráfica discute a quantidade de recifes, desde as vias comerciais pré-helênicas, assinaladas pelos arqueólogos, do Ponto Euxino ao Báltico, até as crônicas da derradeira colonização que empreenderam as cidades gregas em direção ao horizonte de Tânais, isto é, do rio Don, o maior mercado dos bárbaros além de Panticapéion, como afirma Estrabão, 7,4,5. As viagens de Ulisses recordam a altaneira nau Argo, conhecida de todos e, quando a mágica Circe traça para o herói da Odisseia e seus companheiros o longo caminho do retorno, o terror das Planctas já havia feito congelar o sangue nas veias dos argonautas e foi com o auxílio de Hera que Jasão conseguiu ultrapassar a passagem tortuosa, a via intransponível, onde se confundem água e fogo, céu e terra. A geografia, no entanto, não possui no mito dos argonautas um plano de significação, que seria, aliás, hipertrofiado: a busca do velocino de ouro se inscreve num périplo, num percurso de espaço em que a viagem de retorno estrutura o itinerário de ida e estimula o trabalho da memória, que assinala para cada gesta o seu local exato e sua posição no espaço organizado".153
Jasão e Medeia - JohnWilliamWaterhouse

Quanto a Medéia, Bonnefoy tem a respeito da mesma um enfoque muito original. "A proteção de Hera ao herói se exerce através de Medéia, sem a qual Jasão não teria executado as tarefas impostas pelo rei da Cólquida. Filha de Eetes confundem-se nela o poder de Hélio, o Sol, e as forças da noite. A princesa da Cólquida pertence a um elenco de mulheres versadas em magia e em poderes ocultos. Como Agamede, Hecamede ou Perimede, é imaginosa, dotada de uma inteligência solerte e astuciosa, graças à qual todas forças, por maiores que sejam, são vencidas.
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Uma inteligência que age não por dissimulação ou embustes, visando à eficácia imediata, mas pelos meandros da magia, pelo emprego de ervas e de filtros, pela mobilização dos poderes da noite. Medeia é uma mulher com a força da mêtis, mas sua aliança com Jasão não é o casamento de Zeus com Mêtis, sua primeira esposa, que lhe outorgou o poder. As magias de Medéia abrem a Jasão o caminho para a conquista do velocino de ouro, talismã cuja perda significa para Eetes a destruição do poder real (Diodoro, 4,47), mas que não confere de imediato ao herói o acesso ao poder, usurpado por Pélias. Sem Medéia, porém, Jasão jamais reporia o trono de Iolco nas mãos dos filhos de Éolo. A aliada, todavia, pode tornar-se uma inimiga tanto mais perigosa quanto para ela o casamento é algo contra a natureza.
Em algumas tradições (Diodoro, 4,45sq.) Medeia tem por mãe Hécate, filha de Perses, nascida nas montanhas do Tauro e que sempre viveu longe da cultura e da civilização, nas extensões desérticas, perseguindo o homem e recolhendo mil ervas venenosas, geradas pela terra. Como sua mãe, que é igualmente a de Circe, Medéia só pode reinar nos desertos, nas montanhas, nas florestas selvagens. As terras incultas são o domínio que lhe fornece os instrumentos de seu poder: venenos e remédios. Trata-se de uma feiticeira, dotada de uma violência inquieta, de paixões que queimam, de mudanças súbitas de humor, de uma constante melancolia e de uma duplicidade criminosa, que se volta contra aqueles aos quais ela mais ama.
Uma das características mais salientes desta mágica é a de dedicar-se a perigosas operações culinárias. Seu instrumento de trabalho, sua arma, no entanto, não é o espeto, mas o caldeirão, a panela, onde se colocam para ferver os pedaços de carne que se separam da vítima do sacrifício. A contradição, porém, é dupla: primeiramente, porque na Grécia a preparação da carne não era ofício de mulher; segundo, porque só os homens podiam ser cozinheiros e sacrificadores; a panela pertence, portanto, àquele que possui o espeto e a faca.
Medeia, desse modo, arroga-se um privilégio masculino. Sua cozinha tem uma aparência de altar de sacrifício, mas se apresenta sob a forma inversa do local em que se abate um animal. É a vida que deve sair de seu caldeirão, como de um ventre feminino, uma vida renovada, como aquela que ela própria prometeu às filhas de Pélias, mostrando-lhes um cordeirinho saído do caldeirão de bronze, onde fora colocado em pedaços. O caldeirão, todavia, foi o meio usado para matar a Pélias e escondê-lo no ventre da terra.
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Assim como a feiticeira é uma cozinheira perigosa, da mesma maneira ela parece incapaz de gerar. Em Corinto, a filha de Hécate se apresenta como a Errante, a que se deixa levantar nos ares, como se o ter vindo de um mundo selvagem lhe interditasse qualquer fixação, qualquer afinidade com a terra cultivada e o espaço consagrado à família. Seus filhos são feridos de maldição: a mãe os escondeu no santuário de Hera, ou antes, eles já nasceram mortos, ou por outra, cada vez que Medéia dava à luz um filho, ela se apressava em enterrá-lo. O degolamento dos meninos na versão de Corinto renova o sacrifício monstruoso de seu irmão Apsirto".154
Jason and Medea - by Carle van Loo

Como fez com relação a Teseu, segundo se mostrou no Capítulo anterior, Paul Diel analisa as façanhas e o comportamento de Jasão como uma progressiva banalização (veja-se, no que respeita à significação deste termo, a nota 132 supra). Em outras palavras: buscando o velocino de ouro, símbolo do poder espiritual, o herói acabou por destruir-se, porque, usando egoística e cinicamente do poder mágico de Medéia, voltou-se para a intriga e para a perversão. Apegou-se aos valores da terra em vez de buscar os méritos do espírito. Reprimiu-se ao invés de purificar-se, substituindo a anagnórisis pela hýbris.
Vejamos, com alguns enxertos nossos, o que mais tem Paul Diel a dizer sobre a interpretação do mito de Jasão.155
Observa o autor citado que na busca do velocino de ouro está congregada a maioria dos heróis ameaçados de banalização. Entre eles se destacam Orfeu, Héracles, Teseu e Jasão. Embora nenhum deles apresente a vaidade excessiva dos heróis sentimentais, a ameaça que pesa sobre os mesmos é o impulso da dominação perversa e a intemperança, isto é, a incapacidade de escolha justa e de ligação durável. E exatamente esse perigo que, sobressaltando a cada um em particular, os uniu numa empresa comum de liberação. A importância do cometimento encontra-se expressa no significado do próprio nome argonautas, "marinheiros de Argo" e, sendo Argo a nave branca, este símbolo branco, a pureza, deveria conduzi-los à catarse, à purificação. Reunindo, pois, o ouro do velocino e o branco de Argo tem-se que o objetivo da empresa é a conquista da força do espírito, a verdade, e da pureza da alma. Some-se ao dourado e ao branco o carneiro, que é o mesmo que o cordeiro, configuração da ternura, da bondade, do amor e também da pureza em seu mais alto grau.
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O velo de ouro está suspenso numa árvore, imagem da vida, mas é guardado por um dragão: é preciso matar a perversão, para que se tenha a posse do tesouro sublime. O dragão é um monstro que possui a força brutal do leão ou do touro. Aos indícios de vaidade e de perversão, que lhe são inerentes, acrescente-se a perversão sexual: com frequência o monstro aparece como guardião de uma virgem ou está prestes a devorá-la.
Carle van Loo - Medea und Jason

Para conquistar a força da alma que determina uma escolha justa, indício de uma ligação duradoura, o herói terá que superar o seu "dragão interno", o perigo existente nele mesmo, a exaltação imaginária dos desejos dispersos, ameaça configurada externamente pelo dragão, que impede o acesso à virgem.
Constantemente no mito o dragão é também o guarda de um tesouro. No símbolo "tesouro" se reencontra a significação sublime do dourado, o que faz que, no mito dos argonautas, o ouro-tesouro seja substituído pelo velo de ouro. A cor dourada é um símbolo solar, mas o ouro-moeda é um sinal de perversão, da exaltação impura dos desejos. Matando o dragão, o herói poderá encontrar o tesouro sublime, mas pode igualmente arrebatá-lo sob sua significação perversa. Em síntese, é assim que se apresenta o tema secreto em torno do qual se encontram centrados todos os índices simbólicos do mito. Enfrentando o dragão fabuloso, em busca do velo de ouro, os argonautas devem superar suas próprias ameaças, retratadas pelo monstro ou, apesar de uma vitória aparente, correrão o risco de cair na tentação que deveriam combater.
Substituindo o velo de ouro, imagem da pureza, pelo símbolo mais geral do tesouro em sua significação equívoca, surge claramente a ameaça: os argonautas expor-se-ão ao fracasso quanto ao plano essencial de sentido oculto e, ao invés de conquistarem o tesouro sob sua configuração sublime, encontrá-lo-ão em seu significado pervertido.

O chefe dos heróis da Argo é Jasão. Seu objetivo inicial não é a busca do velo de ouro. Essa demanda é somente uma condição a ser cumprida, a fim de recuperar o trono de seu pai. Mas, se o velo é de ouro, surge, de imediato, um problema: conquistado o "tesouro", com que espírito o herói exercerá o poder? Se encontrar o velocino de ouro sob seu sentido sublime, purificando-se de sua aspiração dominadora, seu reinado será justo; se, ao revés, descobri-lo sob seu signo pervertido, isto é, se ceder a tentação perversa, seu reino será marcado pela injustiça.
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Do êxito ou do fracasso essencial do herói dependerá a sorte de seu país e este é, sob o plano simbólico, a configuração do mundo inteiro. Jasão, pretendente ao trono, torna-se, desse modo, uma figura representativa, um símbolo, cuja significação é de importância fundamental: a sorte do mundo entregue ao governo dos homens, cujas atitudes podem ser justificáveis ou injustificáveis, uma vez avaliadas de acordo com as exigências essenciais da vida.
O reino injusto e injustificável se apresenta diante do espírito, do ponto de vista simbólico, como uma usurpação e a tarefa heroica de Jasão pode ser assim formulada: combater de modo sublime o usurpador, buscando o velo de ouro, a fim de não tornar-se ele próprio um tirano.
Esão, o rei legítimo, foi destronado por Pélias. Ainda menino, salvo do tio intruso, foi entregue ao centauro Quirão, símbolo da banalização. Adulto, o herói retornou a Iolco, com o fito de recuperar o trono, ocupado por um rei usurpador. A situação do jovem príncipe é análoga à de Édipo: quer governar o mundo, apesar de sua tendência à banalização, devida em parte à sua educação.
O oráculo havia predito ao rei que desconfiasse do homem que usasse apenas uma sandália. Com um pé descalço, Jasão apresentou-se ao tio.
A sandália que falta é a tradução do espírito desprotegido, de uma incompletude. O pé descalço do herói é uma nova imagem do homem "coxo", deformado pela educação. Assim caracterizado, não poderá ele ascender ao poder legítimo, a não ser que supere essa carência. Pélias declara-se disposto a abdicar, desde que o sobrinho lhe traga o velo de ouro, símbolo da banalidade vencida.
Tal exigência do rei significa que o herói deverá provar que é digno do poder a que aspira. Deverá superar a "desordem física", o pé descalço, e adquirir a insígnia da vitória espiritual e sublime. É verdade que a exigência de Pélias, que é um usurpador, estabelece tal condição por deslealdade, pois espera que o sobrinho morra na empresa, mas a conquista do troféu possui um aspecto simbolicamente sublime. Na realidade, a incumbência imposta corresponde a uma dupla significação do rei: se Pélias nada exigisse além de uma tarefa qualquer, supostamente perigosa e irrealizável, estaria se declarando apenas um tirano usurpador, o homem intrigante. O trabalho exigido, todavia, é o combate heroico, que em todos os mitos é impingido pelo rei simbólico, o espírito. O rei Pélias, que por traição estabelece tal prova, apresenta-se, no plano mítico, substituído pela exigência sublime, suscetível de caracterizar a situação essencial.

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Não se sentindo suficientemente forte para realizar sozinho o feito excepcional, Jasão mandou convocar outros heróis e, sobre a nau Argo, navegaram rumo à Cólquida. Mas o caminho do mar é a rota da vida e os perigos estão à vista. A nau Argo deverá encontrar exatamente o centro, ao atravessar as terríveis Simplégades, ou dois recifes móveis, que se chocam contra tudo que ouse passar entre eles. As Sindrômades são o Cila e o Caribdes da existência. A terra esmagadora, estampada no rochedo, sendo o símbolo da banalização, os dois recifes espelham a dupla ameaça que paira sobre qualquer empresa: a intemperança e a tirania. A nau Argo escapa por pouco da emboscada, mas, presságio funesto, uma parcela da popa é arrancada.
Medea  - Henri Klagmann

Eetes, soberano da Cólquida, novo representante do rei mítico, recebe Jasão cordialmente, mas condiciona a entrega do velo de ouro à vitória sobre o dragão. A autorização para enfrentar o monstro, todavia, está subordinada a tarefas preliminares, que esclarecem ainda mais a situação do herói e a natureza do empreendimento. O rei entrega ao herói os dentes de um dragão, o primeiro a ser eliminado por Cadmo, um herói vencedor. Jasão deverá atrelar a uma charrua dois touros de pés de bronze, que vomitam chamas pelas narinas e com eles arar um campo, onde serão semeados os dentes do dragão de Cadmo.
A colheita dessa semeadura só podendo ser funesta, o herói deverá mostrar-se capaz de dominar o perigo.
O conjunto destas tarefas preliminares representa uma imagem bem específica da luta contra a tendência à dominação perversa, de que o aspirante ao trono terá primeiro que purificar-se. O herói deverá mostrar não apenas que tem méritos para se apossar do velo de ouro e assumir o poder, mas ainda, em razão da força que o anima, de permanecer como um digno detentor do troféu conquistado. Desse modo, o comportamento do pretendente ao trono na realização dessas provas simbólicas hão de caracterizar-lhe não somente a atitude atual, mas também suas intenções secretas que, sublimes ou perversas, nortearão sua vida inteira e seu reino futuro.

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"Arar a terra" significa "torná-la fecunda", quer dizer, governar de maneira fecunda a terra, o país. "Arar a terra com a ajuda de touros domados" significa fazer prova de força sublime, de sabedoria, que por si só assegura o reino fecundo, uma vez que a sabedoria "doma" o perigo e a tentação do abuso brutal, inerentes ao poder. Representações da força brutal, os touros traduzem a dominação perversa. Seu sopro é a chama devastadora. O atributo "bronze acrescentado ao símbolo pé" é uma imagem constante no mito grego, que serve para espelhar um estado anímico. Atribuídos aos touros, os pés de bronze retratam o traço marcante da tendência dominadora, a ferocidade e o endurecimento do espírito.
Com auxílio de Medeia, que por ele se apaixonara, como Ariadne por Teseu, e que lhe deu um bálsamo maravilhoso, que o tornou invulnerável, o que configura o próprio amor da princesa, Jasão consegue domar os touros, arar a terra e semear os dentes do dragão. O amor converteu o impossível em possível, mas é necessário examinar as "intenções" de Jasão para com Medéia. Prometeu-lhe casamento, mas até onde se confundiriam no herói o amor e o "servir-se" do amor? As tarefas ainda a ser executadas responderão a essa inquietante interrogação. De outro lado, a filha de Eetes e de Hécate é uma bruxa, uma feiticeira, ligada à noite e aos poderes malignos da terra, às ervas venenosas. Com essa união, com esse tipo de sizígia, o egoísmo e a intriga perversa conjugados aos poderes ctônios, o reino de Jasão é o prenuncio de um grande fracasso da justiça e do espírito e seu casamento com a princesa da Cólquida pressagia a tragédia.
Medeia - Ansem Feuerbach

Dotado de forças heroicas, mas com o respaldo das "forças ctônias", Jasão domina os touros, mas a prova só está cumprida pela metade e, a fim de traduzir com exatidão as intenções e as atitudes do herói, o mito repete a exigência sublime expressa em sua totalidade por nova imagem. O reino futuro do filho de Esão só será fecundo na medida em que ele procure assegurar-lhe a paz e a justiça. A força sublime do herói, ainda não manifestada, deverá vencer não apenas a força brutal dos touros, mas igualmente a dos gigantes, dos "homens de ferro" que nascerem dos dentes semeados do Dragão.
Todo reino, uma vez estabelecido e governado com justiça, torna-se inevitavelmente objeto de ciúme, "semeia" a inveja, os dentes do dragão. Desta semente nasce a colheita monstruosa, os "homens de ferro", que se erguem contra o pacificador, ansiosos por estabelecer a dominação perversa à custa do governante. Semelhante tendência se revelará tanto mais ameaçadora quanto mais marcado pela sabedoria for o reino: a justa medida e a moderação dele emanadas são interpretadas como fraqueza, suscetível de encorajar os adversários.

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Semeando os dentes do dragão, outrora heroicamente vencido, e liquidando os "homens de ferro", Jasão deverá provar que está igualmente capacitado para tornar-se um rei vencedor e que tem fibra para usar de energia e justiça contra qualquer germe de desordem e sedição. Mas, prognóstico sinistro, o herói se mostra combalido nesta terceira parte das provas. Seu triunfo sobre a evidência ameaçadora não se concretiza graças à sua força sublime. Em lugar da justiça, ele usa, aconselhado pelo poder ctônio de Medéia, a intriga. Faz o que em todos os tempos realizaram os tiranos com o fito de vencer os adversários: dividir e desunir para reinar.
O mito expressa bem o fato, narrando que Jasão lançou uma pedra no meio dos gigantes, que não tardaram a se massacrar, alegando cada um estar sendo atacado pelo outro. O símbolo traduz a mais diáfana das realidades: a pedra, a terra petrificada, o rochedo são igualmente símbolos da banalização, consequência da exaltação intrigante das aspirações terrenas. Os adversários são surpreendidos pelo obstáculo imprevisto, indício das falsas promessas que, "lançadas" com astúcia, exasperam a inveja. Nesse fogo de massacre, cada um se sente ameaçado pela inveja exaltada do outro, esperando cada qual tirar proveito da querela nascente. Não é raro que adversários temíveis, mordidos de raiva e de emulação, se lancem uns contra os outros e se destruam. Semelhante vitória de "intrigante", de Jasão, que arremessa as pedras ou que, consoante a significação oculta, se propõe a assegurar o reino futuro pela intriga, uma tal vitória possui apenas um valor efêmero e banal. A maquinação não pode vencer a violência em caráter definitivo. Trata-se de um emaranhado perverso que reina sobre o mundo e que, incessantemente, conduz às explosões de violência.
A ideia que se tem das três tarefas iniciais é a de que Jasão percorreu muito rapidamente o caminho que, da intenção sublime, ameaça arrastá-lo para uma futura realização banal. A advertência que desde o início pesa sobre suas façanhas tornou-se clara, sobretudo na vitória duvidosa do herói sobre os "homens de ferro". O perigo que o ronda, no entanto, não se tornou insuperável, uma vez que as três provas preliminares têm unicamente o sentido de um presságio em relação ao comportamento futuro e não o determinam em definitivo.

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A derrota essencial do filho de Esão, que encerrou as tarefas iniciais, se apresenta sob o aspecto de um êxito exterior, o que lhe assegura o direito de tentar apoderar-se do velocino de ouro. As portas para a vitória decisiva e essencial continuam abertas. Tudo depende da maneira como ele há de enfrentar o último prélio.
Vencendo em combate heroico o monstro, guardião que impede qualquer aproximação com a sublimidade, bem como sua fraqueza secreta, a tentação dominadora do dragão não mais poderá se realizar. É que, sendo ele o símbolo supremo de sua própria perversidade, se morto heroicamente, há de transformar-se no símbolo da libertação total.
Jasão, todavia, se limitará uma vez mais a lutar contra o monstro com o expediente da astúcia. O mito não faz referência alguma a armas que lhe tenham sido emprestadas pelas divindades, imagens da força da alma, para sua justa com o dragão. Nada indica também que o herói tenha solicitado o concurso de seus companheiros. Confiando muito pouco em suas próprias forças, recorre mais uma vez ao auxílio da mágica Medeia. Semelhante consórcio nem é uma escolha justa nem tampouco uma ligação da alma. A impureza se escamoteia nesse episódio sob a forma de cálculo. Unindo-se à feiticeira, o argonauta deixa-se subjugar pelas forças ctônias. É exatamente esse tipo de dominação que ele deveria evitar a qualquer preço. Sucumbindo aos sortilégios da mágica e à tentação de lutar com sua ajuda, o herói prepara-se para assegurar o reino e a autoridade, com o respaldo das forças "demoníacas" de seu inconsciente e não pelo combate da purificação. A partir dessa resolução, o resultado do empreendimento está fadado à ruína. Enfraquecido, o pretendente ao trono não mata o monstro em luta heroica, imagem de sua própria perversão, que ele deveria vencer. Medéia, com seus filtros, o adormece e ingloriamente Jasão o liquida e se apossa do velo de ouro. O poder mágico detido e utilizado por Medéia é a imagem da insolência face ao espírito e às suas exigências, bem como a pretensão de realizar as intenções mais exaltadas, a perversão dominadora, graças ao desencadeamento inescrupuloso dos desejos. Diametralmente oposto à vitória heroica, este êxito perverso implica, falando de maneira simbólica, um "pacto" com os demônios, aos quais é preciso vender a alma.

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O sentido da expedição converteu-se num gracejo. O troféu que confere o direito ao trono é subtraído, em vez de ser conquistado com denodo. Aparentemente, em sentido verbal, Jasão cumpriu as tarefas impostas, mas, em sentido simbólico, ele se esquivou do trabalho interior e heroico: a catarse. O fecho do mito só pode traduzir esse estado interior culpável do herói decaído. As imagens finais materializam o castigo.
Eetes, exigindo as tarefas-provas, configurou o rei mítico e, como tal, nega a Jasão o direito de levar o troféu da sublimidade.
Rebelando-se contra o interdito real, foge com Medeia, conduzindo o velo de ouro.
O rei acossa os ladrões do tesouro espiritual, mas sendo ele um símbolo do espírito vingador, a perseguição simbólica, consoante sua verdade profunda, não se passa no plano exterior: realiza-se espiritualmente no foro íntimo de Jasão, como um sentimento de culpabilidade. Seguindo esta linha de raciocínio, a fuga diante de Eetes significa a repressão da culpa, pois o recalque nada mais é do que a escusa face ao espírito acusador. Tal significação se ajusta igualmente ao rapto do velo de ouro. "Recalcar sua falta" é "sinônimo de se vangloriar com a sublimidade imerecida, extorquida. Todos os pormenores da imagem simbólica da fuga devem contribuir para ratificar este significado oculto: a culpa e sua repressão.
Para ajudar o falso herói a escapar, Medéia usa de uma astúcia monstruosa: assassina seu próprio irmão Apsirto e lança-lhe os pedaços no mar. Eetes, ocupado em recolhê-los, se atrasa na perseguição aos fugitivos. Na medida em que o rei da Cólquida configura o espírito acusador, Apsirto traduz simbolicamente o "filho do espírito", que é a verdade. Na imagem da fuga, a verdade em pauta concerne ao estado da alma de Jasão e esse estado é a culpa e a tentativa de reprimi-la.
O homicídio de Apsirto é uma variante do símbolo típico do "filho sacrificado". O sacrifício expiatório do "filho do espírito" é uma imagem de extrema complexidade, que encontra sua expressão mais alta no relato histórico cristão, quando o mundo inteiro, configurado no povo eleito e culpado, sacrificou criminosamente o "filho do espírito", o homem inocente, espelho da verdade, cuja vida era sentida como uma censura insuportável. É claro que o mito em questão nada possui em comum com a verdade cristã, infinitamente mais vasta e profunda, a não ser o fato de espelhar igualmente a iniquidade que reina no mundo. Não se trata de estabelecer um paralelismo, que só poderia ser artificial, mas unicamente de ressaltar que o episódio da fuga do casal assassino contém uma alusão ao sacrifício monstruoso.

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Este não é mais executado pelo mundo culpado, que vive sob o reino do demônio, mas pela feiticeira, inspiradora das tentações "demoníacas" do inconsciente e que se mostra ansiosa por assegurar o reino do herói humilhado, como, aliás, diga-se de caminho, agiu com o rei de Atenas, Egeu. Medeia arrasta o amante a sacrificar o inocente, o filho do espírito acusador, a verdade. Culpado, o herói humilhado não se curva ao espírito da verdade, não toma conhecimento de sua falta, não sacrifica ao espírito sublime. Lança e projeta sua culpa sobre o inocente que deve resgatá-la como bode expiatório. Espera, desse modo, poder escapar, por força dessa evasiva imaginária, às consequências de seus atos.
Medéia corta o "filho" assassinado, a verdade sacrificada, em pequenos pedaços: fragmenta a verdade sobre a culpa de Jasão e oferece ao espírito acusador um punhado de pequenas escusas mentirosas, imagens da repressão, acreditando, destarte, retardar a "perseguição" e silenciar o delito do amante, através de seus conselhos e encorajamentos. A mágica incita-o a usar, excessiva e monstruosamente, de processos perversos de evasão, isto é, a projeção de culpa e a repressão. Assim agindo, consegue destruir-lhe o espírito sob a forma de remorso, o único que poderia salvá-lo, condenando-o, em definitivo, à perdição.
Assim como o simbolismo dos trabalhos escamoteados retratam a futura atitude perversa de Jasão, que há de caracterizar-lhe o reino, igualmente a fuga traduz, em sua verdade profunda, os efeitos da derrota essencial da expedição catártica, consequências que hão de marcar toda a vida futura do herói humilhado.
Jasão entrega o velo de ouro a Pélias e assume o poder. Suas falhas e deficiências no cumprimento das condições impostas fazem prever a natureza perversa e dominadora de seu reino, o que não impede a possível realização externa de uma hábil administração, ao menos por algum tempo.
Medea - Anselm Feuerbach

A história testemunha, através de inúmeros exemplos, aliás sempre repetidos, o sentido secreto do mito, cujo herói mais representativo é Jasão. Sua perversidade converte-se, no plano essencial, em flagelo que devasta o país, o mundo: as astúcias, de que tanto se aproveitou, voltaram-se contra ele próprio. Vítima de intrigas foi afinal expulso de Iolco.  

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Todo o seu governo, no entanto, foi caracterizado pela influência nefasta e crescente da feiticeira, símbolo da perversão banal. Os delitos se acumularam. É bastante relembrar aquele bem conhecido, que tanto concorreu para acelerar o fim desastroso do herói derrotado. Para fugir à bruxaria funesta, Jasão tentou abandonar Medéia. A mágica, transmutada em Erínia, matou seus próprios filhos. Já que todas as personagens do mito possuem, em última análise, valor simbólico, pode-se ver nesse crime hediondo, consoante o simbolismo "criança, fruto da atividade sublime ou perversa", a imagem da desolação e do aniquilamento, que são os únicos a subsistir, uma vez passada a dominação pervertida. Configurando as forças destruidoras do inconsciente, a mágica, de que Jasão se quis servir para alcançar a vida sublime, é o instrumento fatal de sua punição e de seu sofrimento.
Jasão morreu quando descansava sob a nau Argo, atingido por uma viga, caída do próprio barco, que deveria tê-lo conduzido a uma vida heroica.
A nau é o símbolo das promessas juvenis de sua vida, das gestas de aparência heroica, que lhe conquistaram a glória. O herói vencido desejou repousar à sombra de sua glória, por acreditar que ela seria suficiente para justificar-lhe a vida inteira. Caindo em ruínas, a Argo, símbolo da esperança heroica da juventude de Jasão, converte-se em símbolo da ruína final de sua vida. A viga é uma transformação da clava. É o esmagamento sob o peso morto, o castigo da banalização.

Ao passar em revista o pensamento de Diel sobre o mito de Jasão, convém insistir em que o mito é um feixe de símbolos e uma interpretação é apenas uma das interpretações. Outras que surjam só podem concorrer para o enriquecimento do mitologema, neste caso tão vasto e tão doloroso.

Bibliografia

BRANDÃO, JUNITO DE SOUZA. Mitologia Grega, vol 3. Petrópolis: Vozes, 1990.