sexta-feira, 12 de junho de 2020

BRASIL PROFUNDO, PARQUE NACIONAL DO XINGU

Posted by Thoth3126 on 12/06/2020
Brasil profundo, Parque Nacional do Xingu completou 59 anos

Aos 59 anos, completados em abril deste ano, o Parque Indígena do Xingu é resultado complexo da epopeia do indigenismo brasileiro. O que o Brasil tem a aprender com esse parque indígena do tamanho da Bélgica, criado em 1961 por pressão dos irmãos Villas Bôas: combater epidemias, preservar a natureza, praticar medicina humanizada e respeitar diferenças são lições que os índios do Xingu têm a nos passar.
Edição e imagens: Thoth3126@protonmail.ch
Aos 59 anos, completados em abril deste ano, o Parque Indígena do Xingu é resultado complexo da epopeia do indigenismo brasileiro
Texto: Camilo Gomide – Renata Valério de Mesquita

Em 14 de abril de 1961, o Brasil dava um importante passo para sua preservação socioambiental. Nessa data foi criado o Parque Nacional do Xingu, um “polígono irregular com área aproximada de 22 mil quilômetros quadrados”, reza o documento. A demarcação dessas terras freou o avanço da exploração irresponsável na Amazônia brasileira e garantiu a sobrevivência e a autonomia de povos indígenas circunscritos naquele espaço e em suas vizinhanças.
Do Brasil colônia até meados do século 20, difundia-se a ideia de que o país era uma terra sem dono a ser explorada e conquistada. Seguindo esse mote, as incursões bandeirantes e da Igreja católica ao interior tratavam os índios como seres não civilizados, que deveriam ser dominados, convertidos ou escravizados.

Uma das aldeias do parque nacional do Xingu
Ao mesmo tempo, havia em muitas dessas expedições interesses científicos. Datam dessa época as primeiras catalogações da fauna e da flora brasileiras e a descoberta de diversos grupos indígenas. Nas primeiras décadas do século 20, o projeto desenvolvimentista mudava lentamente a forma como o Brasil Central era explorado. A intenção do Estado nesse momento era ocupar todo o país para, depois, integrá-lo.
Apesar do avanço irresponsável e da ameaça constante aos territórios e povos indígenas, surgia uma nova mentalidade. “Morrer se preciso for, matar nunca”, lema do marechal Cândido Rondon, anunciava uma visão humanitária da ação militar que culminaria nas políticas indigenistas em um futuro próximo.
Em 1943, Getúlio Vargas criou a Fundação Brasil Central (FBC), cujo objetivo era concluir o projeto de integração nacional, criando bases, abrindo estradas e pistas de pouso que ligassem o Rio de Janeiro – então capital nacional – ao centro do país e a Manaus. Era a Marcha para o Oeste, cuja principal frente de ação era a Expedição Roncador-Xingu. Entre os principais líderes dessa empreitada estavam os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas, figuras fundamentais no contato com os índios e no desenvolvimento de programas de proteção aos povos xinguanos.
Filhos de um advogado de Santa Cruz do Rio Pardo (SP), os Villas Bôas inicialmente foram recusados na expedição por ter “alto nível de conhecimento” (a preferência era por sertanejos sem cultura, considerados mais trabalhadores). Eles só foram aceitos ao apresentarem-se mal vestidos, com barba por fazer e fingindo ser analfabetos. A trapaça funcionou e, em 1945, os irmãos já estavam no comando da Roncador-Xingu.

Em 1961, o brigadeiro Raimundo Vasconcelos dá certidões a um índio, observado por Jânio Quadros (com as mãos na cintura) e Orlando Villas Bôas (de barba)
Para reverter os impactos que a exploração da região trazia aos índios, os Villas Bôas se aproximaram de universidades do Rio de Janeiro e de São Paulo e de líderes progressistas. Essa coalizão defendia a demarcação de uma área exclusiva aos povos nativos, o que esbarrou nos interesses de vários setores econômicos – inclusive os do Estado, dono das terras. Em 1953, começou a tramitar o projeto de lei que criava o Parque do Xingu: uma área de reserva de 20,575 milhões de hectares. Enquanto o projeto empacava, o governo de Mato Grosso loteava seu território, boa parte dele prevista como área indígena.
Essa situação se arrastou até 14 de abril de 1961, quando, no governo de Jânio Quadros, aprovou-se a criação do Parque Nacional do Xingu, com área dez vezes menor do que a prevista de início. Orlando Villas Bôas foi seu primeiro administrador.
Ao longo dos anos, uma série de mudanças redesenhou a reserva. Apenas em 1968, com o decreto federal nº 63.082, os limites do parque foram oficialmente fixados. Três anos depois, outro decreto excluiu a parte norte, território caiapó, cortado pela rodovia BR-80. Em 1984, os caiapós retomaram legalmente a posse dessa terra, denominada agora de Capoto-Jarina.
Em 1967, o parque passou a ser administrado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Em 1978, recebeu oficialmente o nome de Parque Indígena do Xingu. Somente em 1991 ele teve sua demarcação como terra indígena homologada por decreto federal – o primeiro caso do gênero no país.
Em todos estes anos, os índios que ali habitam sofreram com o avanço do Estado e do capital. Mas criaram um espaço de resistência. “Há cerca de 400 anos, um complexo cultural de tribos de falas diferentes se uniu ali e conseguiu criar um clima de paz. Criaram rituais comuns, adaptaram seu mito de origem, criaram casamentos intertribais (gerando poliglotismo), em vez de ficar se matando”, diz o antropólogo Mercio Gomes, ex-presidente da Funai. Para ele, o Parque Indígena do Xingu é “uma epopeia maravilhosa do indigenismo brasileiro”.

Parque Nacional do Xingu – 55 anos

Em meio a catástrofes ambientais causadas pela ação do homem, do aumento escandaloso de doen­ças físicas e mentais nos centros urbanos e da intolerância às diferenças sociais, religiosas e culturais, sobressai das entranhas do Brasil um modelo saudável de harmonia entre homens e natureza: o Parque Indígena do Xingu (PIX), criado há 55 anos pela atuação visionária dos irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas.
Essa experiência nacional, que oferece lições de respeito e resiliência para os problemas enfrentados pelo dito mundo civilizado, é uma prova de que a ideia do índio como ser primitivo está superada. “Todo o contrário, eles têm culturas riquíssimas e conhecimentos interessantíssimos de tecnologia leve – de clima, solo, espécies, plantas, de subsistência”, destaca Douglas Rodrigues, médico integrante há 15 anos da equipe do Projeto Xingu, uma iniciativa da Escola Paulista de Medicina (hoje Unifesp) instalada no parque desde 1965. “Só para começar, eles transformaram a mandioca, cheia de cianeto, em um produto comestível.”
Conheça aqui exemplos emblemáticos do que os povos autóctones, em parceria com o “homem branco”, têm a nos ensinar.


Cerimônia de homenagem aos mortos (quarup) realizada na aldeia Waurá, no Alto Xingu, em 2014, em fotografia de Noel Villas Bôas
1 – Controle de epidemias
Apesar de ser uma doença endêmica da Amazônia, a malária se tornou a principal ameaça aos xinguanos durante epidemias causadas por mineradores que cruzavam o parque, nos anos 1980. Mas, nesse caso, o problema só foi de fato controlado quando os brancos se apoiaram nos índios. “É praticamente impossível acabar com os mosquitos em áreas urbanas, e menos ainda em uma floresta”, afirma Rodrigues. “Por isso, focamos o combate nas pessoas infectadas, que são os grandes reservatórios da doença. O mosquito-prego ou anofeles não tem malária, são as pessoas que têm, e os mosquitos se alimentam delas. Quanto mais tempo um doente ficar circulando, mais doença vai espalhar.”
Na segunda metade dos anos 1980, o Projeto Xingu formou os primeiros agentes indígenas de saúde do Brasil. Índios de diferentes pontos da reserva, sobretudo os localizados nas portas de entrada da doença, aprenderam a fazer diagnóstico por meio de lâminas analisadas em microscópio e a aplicar o tratamento recomendado em cada caso. Paralelamente, foi adotada a nebulização (“fumacê”) nas aldeias e em locais de trânsito, como beiras de rios e roças, e a equipe do Projeto manteve a supervisão dos agentes e a vigilância de focos por rádio.
Com tais medidas, a malária já estava controlada em 1990 e nunca mais se registrou morte por essa doença no parque. “Diagnóstico e tratamento precoce são sempre a estratégia mais indicada para toda doença infectocontagiosa por transmissor ou por homem a homem”, conclui Rodrigues. O sucesso obtido pode inspirar o país neste momento de proliferação dos casos de dengue, zika e chikungunya.


Acima, dança durante o quarup, cerimônia fúnebre que reúne todas as aldeias do parque
2 – Preservação da natureza
Enquanto os 26 mil km2 do Parque do Xingu permanecem nas mesmas condições de 55 anos atrás, sucessivas degradações vêm marcando seu entorno. Primeiramente, o entorno do parque sofreu com a derrubada da floresta por madeireiros; depois, a maior parte dos campos desmatados passou a ser ocupada pela pecuária extensiva, ao mesmo tempo que outras áreas foram tomadas pelo garimpo.
Nos últimos 15 anos, cada vez mais plantações de soja e cidades em crescimento cercam o parque. Em 1980, havia apenas três municípios na região; hoje, são dez. Os índios chamam essa situação de “abraço de morte”, porque os problemas ambientais sofridos no parque vêm de fora. Assoreamento do leito dos rios, contaminação das águas por mercúrio e agroquímicos (que também chegam via aérea), invasão de porcos selvagens que destroem os cultivos de subsistência, além das mudanças nos marcadores do tempo que permitiam aos índios saber quando choveria e, portanto, quando era hora de abrir as roças e de plantar.
Já de dentro para fora, a mata preservada segue prestando os chamados “serviços sistêmicos” ou “serviços ambientais”. Ou seja, a natureza continua a contribuir para o equilíbrio do clima e o bem-estar das pessoas, seja na forma de umidade do ar que leva chuva pelo Brasil afora, na oferta de frutos, na manutenção da biodiversidade, da polinização, da absorção de carbono, entre tantos outros. “Sabemos que, sem a umidade que vem da Amazônia, o clima do Sudeste e do Sul se desregula, e essas mudanças são irreversíveis”, alerta Mércio Gomes, antropólogo e presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre 2003 e 2007. “Já perdemos 15% da Amazônia, vamos parar aí para evitar um desastre maior.”


Tronco que representa Orlando Villas Bôas na homenagem realizada em 2003. Essa foi a primeira vez que o Xingu se reuniu em torno de um líder branco para o quarup.
3 – Respeito às diferenças culturais
Maior reserva em área do Brasil, o Parque do Xingu é também a mais multicultural. Em seu território convivem pacificamente 6 mil indivíduos de 16 etnias diferentes e cinco grupos linguísticos. O clima harmônico, definido como pax xinguana pelo antropólogo Eduardo Galvão, só pôde ser preservado até hoje graças à existência do parque. As tribos da região do Xingu têm rituais intertribais (como cerimônias para os mortos, quarup; encontros para troca de bens, moitará; e competições de luta, huka-huka), adaptaram seus mitos de origem para um mito comum e criaram casamentos intertribais, por exemplo.
De famílias formadas por integrantes de diferentes tribos nascem índios poliglotas, que desde crianças falam quatro ou cinco línguas. “Eles desenvolveram mecanismos de convívio por séculos e se transformaram em diplomatas fantásticos, que substituem o conflito pela negociação, pela conversa, pelo ritual”, diz o antropólogo George Zarur. “Os irmãos Villas Bôas propuseram proteger os índios sem se envolver demais com a vida deles. Sem querer ensiná-los. Porque nós é que temos de aprender deles sobre a felicidade de viver em grupo, sobre o saber viver em comunidade com respeito ao indivíduo”, afirma Zarur.
O advogado e professor Orlando Villas Bôas Filho reforça o coro. “O Xingu é uma lição contra o etnocentrismo. Querer que o indígena se adapte à forma de produção ocidental, que cria excedentes e acumula bens, é o mesmo que o Estado Islâmico querer que todos vivam como ele.” A imagem de um Brasil multicultural – que o país sempre procura vender – se deve muito à experiência do Xingu, ressalta Villas Bôas Filho.


O doutor Roberto Baruzzii (morto em fevereiro), idealizador do Programa Xingu de cuidados aos indígenas, instalado no parque desde 1965
4 – Resgate da medicina humanizada
Profundo conhecedor de “medicamentos naturais” obtidos de plantas, substâncias animais e minerais, detentor único de técnicas de massagem e imersões para cura, o pajé tem muito mais a ensinar aos médicos do mundo ocidental do que técnicas desse tipo. Para Douglas Rodrigues, o trabalho da Unifesp junto aos indígenas do parque fez com que os médicos e residentes resgatassem a medicina humanizada exercida pelo pajé.
“Um pajé não dá uma olhada em você, escreve uma recomendação no papelzinho e o despacha. Ele abraça a causa do paciente e o acompanha até sua melhora”, afirma. “Essa boa prática médica vem se perdendo pela massificação da medicina, pelo espaço maior da tecnologia nessa área.” Na experiência de Rodrigues, a principal raiz que ele aprendeu a usar com o pajé foi a raiz do problema de saúde do paciente. “O pajé cava até encontrar a causa da enfermidade do paciente na família e na comunidade da pessoa.”
5 – Autonomia e autodeterminação
O Xingu também entrou para a história como a primeira reserva indígena do país a ser dirigida pelos próprios índios. A transição foi possibilitada, como quase tudo conquistado pelo parque, pela atuação visionária dos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, que sempre viram nos indígenas indivíduos muito capazes de aprender, interagir e cuidar das próprias vidas. Meio século depois, os xinguanos provam diariamente sua autonomia e autodeterminação. Com a perda progressiva de relevância e poder da Funai, eles não perderam tempo reclamando da vida. Várias aldeias e etnias se organizaram em associações que desenvolvem projetos e levantam recursos para resolver questões internas e externas.
Os índios também atuam de modo cada vez mais organizado e duro na defesa e segurança do seu território. “Quem entra sem permissão termina apreendido, com trator e tudo, se for o caso”, conta Paulo Junqueira, coordenador adjunto do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA). Com uma equipe de 50 integrantes, a ONG trabalha no Parque dando assessoria para questões burocráticas, como o trabalho de vigilância e de geração de renda. Afinal, os índios incorporaram no seu dia a dia bens de consumo ao longo dos anos de contato com o branco, e hoje querem dinheiro para comprar roupas, sabão em pó, panela, barco (que precisa de manutenção e combustível), etc.


Cena de huka-huka, as competições de luta

“O eixo principal é os índios tomarem conta do parque, criando contraponto ao assédio que sofrem do mundo externo para exercer atividades não sustentáveis, como venda de peixes, madeira e areia”, diz Junqueira. Como resultado desse trabalho, os xinguanos comercializam hoje diferentes tipos de pimenta, mel de abelha e sementes florestais. Desde 2007 já foram vendidas 150 toneladas de sementes, empregadas no reflorestamento de matas ao longo dos rios que formam a bacia do Xingu.
Mas as principais investidas contra a identidade dos índios e a integridade do parque vêm na forma de propostas de grandes projetos de hidrelétricas e de leis que preveem mineração nas reservas e a demarcação de terras indígenas (a famosa PEC 215) sem laudo da Funai, apenas com a aprovação do Congresso Nacional. Os índios do Xingu atuam intensamente para manter seus direitos, mas disso depende que o branco entenda as várias contribuições – entre as quais as descritas nesta reportagem – que eles têm a dar à sociedade atual.
A Visão indígena
Sapaim Kamayurá nasceu com outro nome, mas, ainda novo, adotou o apelido de “pequeno” (sapaim), dado por Orlando Villas Bôas, por ser o menor entre os garotos da mesma idade. Ele também nasceu um índio comum no Parque Indígena do Xingu, mas na adolescência foi escolhido pelos espíritos da floresta, os Mamaés, para ser pajé. Foi por meio de sonhos que recebeu a notícia e depois passou pela provação de sobreviver à causa – ficou profundamente doente, mas resistiu e “renasceu” para ser pajé, como é costume acontecer entre os indígenas.
O pajé Sapaim Kamayurá


Os pajés escolhidos pelos espíritos têm mais expressão na tribo do que aqueles que desejam ocupar essa posição e pedem para ser treinados por outros. “Já fiquei dois anos, três anos sem sair da minha oca, quando Mamaé me preparou para ser pajé”, conta Sapaim Kamayurá. Assim ele aprendeu sobre todas as plantas e procedimentos.
Chefe mais alto da aldeia depois do cacique, o pajé lida com os espíritos causadores das doenças dos índios, mas reconhece que as doenças de brancos são causadas por outros espíritos, que devem ser tratados pelos brancos. Sapaim estava em um hospital do Rio de Janeiro quando conversou com PLANETA. “Cheguei aqui, dormi, e ontem, dormi de novo. É primeira vez que estou hospital, tratamento urinário. Quando sair, vou comprar passagem para Xingu. Voltar para quarup. A gente vai homenagear morto ano passado. Cada aldeia está animada”, explica, em seu português peculiar, sobre sua situação de saúde e a festa.
Sapaim já tinha estado antes no Rio por bastante tempo para cuidar de quem está fora do parque. Nessas ocasiões também deu entrevistas para jornais e revistas e participou de programas de TV, divulgando seu trabalho e as crenças do seu povo. “Sou médico da tribo, maior curandeiro. Estava no Rio para fazer pajelança, cura e reza”. Mas ele não recomenda a vida na cidade para os conterrâneos. “A vida no parque é muito diferente, outra energia, energia boa. Na cidade muda cabeça, índio vai usar cabeça do branco. Não é bom para rapaziada. Depois ele não vai querer pintar, não vai querer dançar, tudo isso. É comum acontecer quando pessoa vai muito para cidade.”
Para ele, dentro do parque os xinguanos mantêm a vida de sempre. “Não mudou nada. A gente usa mais nossa cultura mesmo, nossa tradição, nossa dança, nossa língua. A gente reza para não acabar nossa cultura, nossa tradição. Nossa reza é muito forte.”

Saiba mais, leitura adicional:

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