quinta-feira, 19 de outubro de 2017

INCERTEZAS EXISTENCIAIS


Oscar Luiz Brisolara
Hoje, olhei para o cactus do meu jardim. Ele está extremamente triste. Um dia, visitando os morros pedregosos da minha infância, lá estava ele. Meio pendurado entre urzes e rochas. Quase despencando no abismo.
Convidei-o para o meu jardim. Pensei que estivesse feliz. Talvez fosse verdade. E, com ele, trouxe um mundo de momentos felizes e recordações perdidas.
Para quem nasceu entre a montanha e o abismo, entre rochedos e arbustos, os cactus são companheiros do dia a dia. Amigos, não diria tanto.
Eles possuem lá seus hábitos não muito sociáveis. A maioria se reveste de espinhos. São enfeites. Adornos incômodos para os que se aproximam.
Os nossos lá eram bem exagerados. Os espinhos pontiagudos acabavam numa ponta cheia de serrilhas semelhantes a fisgas de anzol. Quando penetravam na pele e nas carnes, grudavam. Para arrancá-los ou era corte, ou vinha junto um naco de pele e tecido vermelho e mole.
Sobre eles, havia um mito. Hoje acredito ser verdade. Há tanta verdade da infância que se diz ser invenção. Ah, esqueci-me de dizer que para nós cactus era tuna. Pois, se dizia então: “Espinho de tuna caminha no corpo.” Vai sempre em frente. Quando chega ao coração, mata dolorosamente e devagarinho. Morreu ninguém sabe de quê.
Pois esses lá de casa possuíam outro instrumento de maldade. Quando chegava a primavera, davam uns frutos. A gente chamava de figo da Índia. Não sei por que razão. Eles eram bem dali.
Eram muito gostosos, para meninos de poucas iguarias. Mas havia uma cilada. Eram cheios de touceirinhas de minúsculos pelos. Ah, aqueles pelos! Penetravam na pele e provocavam dias de desconfortos. Não havia nada que passasse a ardência. Arrancá-los como? Eram moles. Quase invisíveis.
Mas eram como aqueles colegas arredios. Estavam por toda parte. Não tinha como não topar com eles. As folhas enormes, verdes, gordas e espinhudas, também eram cobertas por essas touceirinhas de pelos malvados.
Eu tinha um muito especial. Estava entre nossa casa, o cerro e a sanga. Toda hora passava por ele. Um dia, os bois haviam topado nele numa disparada. Ficaram umas folhas no chão. Não vi. Ia para a escola. Perdido em sonhos de menino. Entrou todo o espinho na sola do pé. 
Caí gritando. Um pedação daquela folha pendurado. Minha mãe levou-me para casa. E agora? Era quase menina. Vinte e poucos. Tentou arrancar. Eu berrava. Cortou o espinho com a tesoura. Libertou-me do pedação de folha. 
Quando ela puxava, eu berrava desesperado. Ela deixou-me na cama. Chorei bastante. Adormeci. Quando acordei, outra choradeira. Ela, sem solução.
À noite, meu pai voltou do serviço. – “Traz água morna.” Colocaram meu pé numa bacia. Ela me distraiu, contando histórias, nervosa. De repente, ele deu um puxão. Eu, um berro enlouquecido. Aí, não parava mais. – “Segura firme!” Ele puxou sei lá com quê. 
Doeu um tantão. Chorei sei lá quanto, fiz manha. No dia seguinte, fui manco para a escola. Em uma semana, nem lembrava o ocorrido.
Passaram anos. Ele lá. Fomos tornando-nos amigos. Quando estava triste. Sem jeito. Respeitando as manias dele, eu me achegava. Não tinha para quem dizer. Dizia para ela. Esqueci agora que era uma tuna. Como as mulheres arredias, não dizia nada. Olhava com aqueles olhos verdões. Parada. Os espinhos pareciam menos agressivos. Mas eu sabia. Não dava para tocar. Carinho. Era louco?
Um dia, estava furioso. Queria ir caminhar no campo. Minha mãe dissera que não. Tinha feito uma desobediência qualquer. Vovó não intervinha. Não era com ela. Então, cheguei-me para a tuna. Um galho verde de eucalipto. Paulada nela. 
Saltaram pedaços. O galho era rijo. Pesado. A minha revolta era grande. Bati. Bati. Bati... Ela ficou olhando calma para mim. Orelhas caídas. Muda. Uma gosma escorria dos ferimentos. Sentei na pedra. Olhei. Ainda não havia aprendido a pedir perdão.
Ela entendeu. Perdoou. E nossa amizade se foi estreitando a cada dia. Quando fui para o internato, nem lembrei de despedidas. Passaram-se os tempos. Substituí-a por tantos outros e outras.
Pois, veio o dia do passeio na serra. Peguei o cactus desvalido. A tuna, eu deveria dizer. Talvez, de algum modo fosse parente da minha primeira amiga. Veio para casa comigo. Esqueci que elas amam as pedras. Não se deu com a areia do meu pátio. Jamais me disse nada. Como sempre, muda. De novo, diante da dúvida. O que fazer?

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