sexta-feira, 30 de agosto de 2019

MORALES E SUAS FORMIGAS


Oscar Luiz Brisolara
Ah, o Morales... Era meio rombo de bestunto, segundo um dos doutores das pesquisas agrárias onde trabalhavam ambos. Os demais funcionários de todas as naturezas jamais tinham um diálogo sério com ele. Eram apenas algumas brincadeiras, cujo tom dependia do nível de refino do interlocutor. Havia os mais grosseiros, cujas palavras chegavam às raias da ofensa. Outros eram apenas sutis. Diziam palavras de cujo sentido ele jamais suspeitara. Por respeito, apenas sorria.
Quando chegava sozinho nos campos, pomares ou bosques, ali sentia-se sábio, de saberes inquestionáveis. Desde o princípio, fora admoestado de que as formigas eram o inimigo mais terrível das pesquisas. O ataque de um formigueiro a um campo de estudos poderia, em uma noite, destruir o resultado de anos de estudos. E isso continha muito de verdade. Na área da agricultura, tudo é muito lento. Ele, em suas limitações, levara essas advertências aos extremos.

Máquina de matar formigas aberta

Morales sentia-se sábio ao grau máximo de seu saber. Levava seu trabalho extremamente a sério. Vestia um uniforme de brim rústico fornecido pela instituição. Nesses trajes, sentia-se um poderoso general.
Pois, num determinado dia, dei por ele andando muito concentrado, com o rosto sisudo, observando o chão. Nós morávamos numa casa do governo, dentro da Estação Experimental. Teria eu em torno de seis anos, talvez um pouco mais. Interroguei-o sobre o que fazia.
Descobriu em mim um discípulo atento à exposição de suas teorias e estudos. Diante das palavras dele, eu senti também uma enorme curiosidade. Minha mãe era professora. Eu passava os dias sob a proteção do amplo alpendre do enorme casarão secular, antiga residência de poderoso fazendeiro.
Máquina de matar formigas

Daí em diante, fui atento aprendiz das descobertas do Morales. Falava-me das diversas espécies de formigas. Das maldades delas. Também de suas práticas inteligentes: “Um formigueiro jamais devora plantas que estejam próximas ao ninho dele”, dizia ele num tom de alta sapiência. Passei de ano. Com as férias de meus pais, levaram-me à visita de parentes por diversas cidades dos arredores.
Quando retornamos, recomecei um novo ano de aprendizado. Há formigas que têm um ninho superficial. “Outras”, dizia ele, “fazem diversas panelas subterrâneas, algumas de grande profundidade.” Para cada uma delas, havia uma tecnologia que devia ser rigorosamente executada. Caso contrário, era uma perda fatal. Pesquisas de longo tempo e árduo trabalho podiam ser destruídas, em apenas uma noite. Eu prestava sisuda atenção, como se me destinasse a substituir, com o passar dos anos, o meu sábio mestre.
Depois, veio o aprendizado dos instrumentos adequados a essa guerra interminável. As inimigas da agricultura tinham estratégias que obrigavam o estudioso a acompanhar o desenvolvimento de novas tecnologias. Mas ele estava sempre atento e estava levando vantagem sobre seu inimigo.
O principal instrumento era o que o docente chamava de máquina de matar formigas. Tratava-se uma poderosa e ao mesmo tempo perigosa arma de ataque. Consistia em um cilindro metálico que se afunilava na parte inferior, onde se ligava a uma cânula que devia ser inserida na entrada do ninho das formigas.
Na parte superior, havia uma trava que fixava a tampa vedante. Um orifício na tampa da máquina ligava o fole superior à fumaça. O fole era feito de madeira e couro. Dois manípulos de madeira serviam para a emissão de ar na câmara inferior já descrita aqui. Essa câmara metálica era abastecida de brasas incandescentes sobre as quais ele jogava, com a própria mão, grossa de calos um punhado de arsênico, que deveria emitir uma fumaça tóxica. Essa seria letal às malvadas inimigas dos humanos.
O modo como esse processo me foi ensinado atendia a um ritual quase macabro. Quando ele travava a tampa a pressionar o fole saía uma fumaça de um horrível odor, que me enchia os olhos de lágrimas e me feria o nariz e a garganta. Mas eu me sentia importante e secava as lágrimas e tapava o nariz com a parte inferior da camisa.
Morales não parava de falar. Sentia-se em pleno combate contra milhares de inimigos terríveis e que resistiam fortemente ao ataque. Ele tinha um fundamento filosófico para essa interminável guerra. Estava em jogo o próprio futuro da humanidade. Se saíssem vencedoras as formigas, a humanidade estava perdida... morta pela falta de alimentos. Ele apresentava um complexo arcabouço teórico do qual nada podia eu entender a esse tempo.
Grande Morales. Tenho saudades dele e de suas lições. Muitas de suas exposições me foram importantes em meus estudos superiores. Depois para o mestrado e doutorado. Há muitas semelhanças entre nossas academias de estudo e as lições de Morales. Meu mestre Morales. Uma flor de teu discípulo em teu túmulo, querido mestre.

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