Capítulo 04 A – A PÁTRIA DA HERESIA
As lendas sobre Maria Madalena ultrapassaram a Provença, embora os lugares associados à sua vida em terras de França só se encontrem ali. Todo o sul do pais gaulês está cheio das suas lendas, embora elas se concentrem particularmente junto dos Pirenéus, a sudoeste, e na região de Ariège.
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Capítulo 04 A – A PÁTRIA DA HERESIA – Livro “The Templar Revelation – Secret Guardians of the True Identity of Christ” de Lynn Picknett e Clive Prince.
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CAPÍTULO 4A – A PÁTRIA DA HERESIA
Partindo de Marselha, em direção a oeste, aproximamo-nos da região de Languedoc-Roussilon, outrora a mais rica região da França e agora uma das mais pobres. Nesta região despovoada, a terra parece fazer eco dos nossos pensamentos e pouco mais, milha após milha, apesar do crescente número de turistas que vêm apreciar a sua história encharcada de sangue – para não mencionar o vinho local. Mas, apesar de nós, como bons europeus, termos dado a nossa contribuição para a economia local, estávamos ali, antes de mais nada, para estudar os mistérios do passado dos Templários e de Maria Madalena.
Testemunhos da turbulenta história da região veem-se por toda a parte. Castelos arruinados e antigas cidadelas, destruídos por ordem de reis e papas, enchem a paisagem e revelam brutalidades que ultrapassam mesmo a habitual tendência medieval para governar pela atrocidade. Porque, se algum lugar da Europa podia ser considerado a pátria da heresia, esse lugar é o Languedoc-Roussilon. E é este simples fato histórico que foi responsável pelo empobrecimento sistemático da região. Excetuando regiões como a Bósnia e a Irlanda do Norte, raramente o dogmatismo da religião católica de Roma deixou as suas marcas nos destinos de um país de uma maneira tão óbvia.
Antigamente o Languedoc – de Langue d’Oc, a língua local – estendia-se da Provença para a área entre Toulouse e os Pirenéus orientais. Oc era a forma de dizer "sim", ao contrário de "oui", nas demais regiões. Até ao século XIII, não fazia propriamente parte da França, mas era governado pelos condes de Toulouse, que, embora nominalmente devessem fidelidade aos reis de França, na prática eram até mais ricos e poderosos do que aqueles.
Nos séculos XII e XIII, esta área era a inveja da Europa, pela sua civilização e cultura. A sua arte, literatura e ciência eram, de longe, as mais avançadas da época – mas, no século XIII, esta brilhante cultura foi destroçada por uma invasão dos bárbaros do norte. provocando um sentimento de indignação latente, que dura até hoje. Muitos habitantes ainda preferem considerar a região como Occitânia, o seu antigo nome. E, como iríamos verificar, uma região com uma memória particularmente longa.
O velho Languedoc foi sempre um lugar de refúgio para ideias heréticas e heterodoxas, provavelmente porque uma cultura que encoraja e incentiva a busca de conhecimento (Gnósis) tem tendência para tolerar um novo pensamento radical.
Uma parte central deste ambiente social eram os trovadores – os menestréis itinerantes cujas canções de amor eram essencialmente hinos ao Princípio Feminino Divino na criação. Esta tradição do amor cortês concentrava-se na mulher idealizada e na mulher ideal, a deusa. Podem ter sido românticas, mas as canções dos trovadores também continham verdadeiro erotismo. A influência do movimento estendeu-se para lá do Languedoc e teve particular êxito na Alemanha e nos Países Baixos, onde os trovadores eram conhecidos como minnesingers – literalmente, «cantores das damas», embora aqui a palavra tenha o significado de mulher arquétipo ou idealizada (O Poder Feminino, como complemento do Masculino).
O Languedoc assistiu ao primeiro ato de genocídio europeu, quando mais de 100.000 membros da heresia gnóstica cátara foram massacrados por ordem do papa de Roma durante a Cruzada dos Albigenses (derivado do nome da cidade de Albi, uma fortaleza cátara). Foi especificamente para o interrogatório e extermínio dos cátaros que a Inquisição foi criada. Talvez porque a Cruzada dos Albigenses remonta ao século XIII, o seu impacto nunca igualou o dos holocaustos mais modernos. Muitos habitantes locais ainda ardem com paixões antigas e alguns sugerem mesmo que houve um encobrimento oficial, ao longo dos séculos, uma conspiração para impedir que a história dos cátaros fosse mais largamente conhecida.
Além dos cátaros, a região era, e sempre foi, um centro de alquimia, e várias aldeias atestam as preocupações alquímicas dos seus anteriores habitantes, especialmente Alet-les-Bains, próximo de Limoux, onde as casas ainda estão decoradas com símbolos esotéricos. Foi também em Toulouse e Carcassonne que surgiram as primeiras acusações de participação no chamado Sabat das Bruxas, nos anos 30 e 40 do século XIV. Em 1335, sessenta e três pessoas foram acusadas de bruxaria em Toulouse, e as confissões foram-lhes arrancadas pelos habituais métodos garantidos pela inquisição da “santa” igreja romana.
Entre elas, havia uma rapariga, Anne-Marie de Georgel, que se julga ter sido a porta-voz das outras quando descreviam as suas crenças. Disse que todas elas viam o mundo como um campo de batalha entre o Senhor do Céu e o Senhor Deste Mundo; ela e as restantes apoiavam o último, porque pensavam que ele seria o vencedor. Esta afirmação podia ter sido «bruxaria» para os juízes eclesiásticos, mas era gnosticismo puro e simples. Outra mulher, igualmente acusada, declarou que assistira ao «Sabat» para «servir o jantar aos cátaros».
Muitos elementos pagãos sobrevivem nesta área e encontram-se nos lugares mais surpreendentes. Embora esculturas do «Homem-Verde» – o Deus da vegetação, que foi venerado na maioria das regiões rurais da Europa – se encontrem em igrejas, sob outros aspectos, católicas, como a Catedral de Norwich, ele não é geralmente representado como filho de uma deusa do Antigo Testamento. Como escreveram A. T. Mann e Jane Lyle:
Na catedral pirenaica de St Bertrand-de-Comminges, Lilith arranjou uma maneira de entrar numa igreja: ali, uma escultura representa uma mulher alada e com pés de pássaro dando à luz uma figura dionisíaca, um Homem Verde.
A mesma pequena cidade alega ter sido o local do túmulo de uma personagem tão importante como Herodes Antipas, o governador da Palestina que mandou executar João Batista. Segundo Josefo, o cronista judaico do primeiro século, o triunvirato perverso, Herodes, sua mulher e a sua astuciosa enteada, Salomé – a da chamada «Dança dos Sete Véus» -, foram exilados para a cidade romana de Lugdunum Convenarum, na Gália, que é agora St Bertrand-de-Comminges. Herodes desapareceu, sem deixar rasto, mas Salomé morreu num rio de montanha, e Herodíades continuou a viver na lenda local, transformando-se na líder do pacto de «bruxas que cavalgam de noite pelo ar».
Outra pitoresca lenda languedociana diz respeito à «Rainha do Sul» (Reine du Midi), um título da condessa de Toulouse. No folclore, a protetora de Toulouse é La Reine Pedauque (a Rainha com Pés de Ganso). Isto pode ser uma referência ao Pays d’Oc, na «língua dos pássaros», esotérica e cheia de trocadilhos, mas investigadores franceses identificaram esta figura com a deusa síria Anat, que, por sua vez, está intimamente associada a ÍSIS. E há ainda a óbvia associação a Lilith, a mulher com pés de pássaro.
Uma outra figura lendária da região é Meridiana. O seu nome parece ligá-la a meio-dia e ao sul (ambos midi em francês). A sua mais famosa aparição ocorreu quando Gilbert d’Aurillac (c. 940-1003). que. mais tarde, foi o papa Silvestre XI viajou para Espanha para aprender os segredos de alquimia. Silvestre, que possuía uma cabeça que falava como um oráculo, recebeu a sua sabedoria desta Meridiana, que lhe ofereceu «o corpo, riquezas e a sua sabedoria mágica» – claramente uma forma de conhecimento alquímico e esotérico que era comunicado através da iniciação sexual. A escritora-investigadora americana Barbara G. Walker deriva o nome Meridiana de «Maria-Diana» ligando, assim, esta deusa pagã compósita às lendas de Madalena no Sul de França.
O Languedoc também acolheu a maior concentração de Cavaleiros Templários da Europa, até à sua supressão no princípio do século XIV, e ainda está juncada de evocativas ruínas dos seus castelos e fortes militares.
Se, como suspeitamos, existissem muitas mais ramificações «heréticas» do culto de Madalena, além das que encontramos na Provença, então seria aqui, seguramente no Languedoc, que as encontraríamos. Uma das primeiras cidades importantes porque passamos, na autoestrada de Marselha, conhecera incríveis paixões despertadas em seu nome – e milhares de pessoas foram mortas devido ao significado que Madalena tinha para elas.
Atualmente, Béziers (durante o império romano era chamada de Baeterrae Septimanorum) situa-se no departamento de Hérault, no Languedoc-Roussillon, uma cidade populosa, aproximadamente a dez quilômetros de distância do golfo de Lion, no Mediterrâneo. Mas, em 1209, todos os habitantes da cidade foram impiedosamente perseguidos e chacinados pelos cruzados albigenses. Mesmo para os anais desta longa campanha sangrenta – e, por vezes, francamente bizarra – esta é uma história particularmente estranha.
A história foi relatada por vários comentadores contemporâneos, mas vamos limitar-nos ao relato de Pierre des Vaux-de-Cernat, um monge cisterciense que o escreveu em 1213. Ele não assistiu pessoalmente aos acontecimentos, mas baseou o seu relato no dos cruzados que os testemunharam. Béziers tornara-se um centro de heréticos e, por esse motivo, quando os cruzados atacaram a cidade, existia um enclave de 222 cátaros que viviam ali sem serem molestados pela população em geral. Embora não se saiba se o conde de Béziers era, ou não era, ele próprio, um cátaro, ou um mero simpatizante, o que é certo é que, então, ele não fez nada para os perseguir ou eliminar, e foi isso que particularmente irritou a igreja de Roma e os seus cruzados.
Exigiram que os habitantes da cidade – católicos comuns – entregassem os cátaros ou abandonassem a cidade para que os restantes cátaros pudessem ser mais facilmente eliminados. Embora esta ordem fosse dada sob pena de excomunhão – que não era uma questão irrelevante naqueles tempos em que o inferno era uma grande realidade – e a opção alternativa parecesse bastante generosa, no sentido em que aos católicos era dada uma oportunidade de fugir ao massacre iminente, sucedeu uma coisa espantosa. Os habitantes da cidade recusaram-se a acatar qualquer das ordens. Como escreve Des Vaux-de-Cernat, preferiram morrer como heréticos a viver como católicos. E, segundo o relato enviado ao papa pelos seus representantes, os habitantes da cidade fizeram juramento de defender os heréticos.
Dadas as circunstâncias, em Julho de 1209, os cruzados entraram em Béziers e, sem dificuldade, tomaram a cidade e mataram todos os seus habitantes – homens, mulheres, crianças e sacerdotes – e o lugar foi incendiado. Entre 15.000 e 20.000 pessoas foram chacinadas; destas, pouco mais de 200 eram heréticas. «Nada os pôde salvar, nem a cruz, nem o altar, nem o crucifixo.» Foi ali que os cruzados perguntaram aos legados do papa como podiam distinguir os heréticos do resto da população e receberam a famosa resposta: «Matem-nos todos. Deus reconhecerá os seus.»
Embora seja fácil compreender que a população podia ter pretendido defender a sua cidade dos saques característicos de um exército, não se deve esquecer que lhe foi dada oportunidade de partir, e se a segurança dos seus bens era a sua principal preocupação, então eles podiam simplesmente ter entregue os heréticos e voltado aos seus afazeres quotidianos sem olhar para trás. No entanto, eles ficaram e assinaram efetivamente a sua sentença de morte duas vezes seguidas, ao fazer um juramento de apoio aos cátaros. Mas o que se passou realmente em Béziers?
Em primeiro lugar, deve ser tomada em conta a data precisa do massacre. Foi a 22 de Julho – o dia da festa de Maria Madalena, o que é apontado por todos os escritores contemporâneos como sendo de singular importância. E fora na igreja de Maria Madalena, em Béziers, que, quarenta anos antes, o senhor local, Raymond Trencavel I, fora assassinado – embora as razões da sua morte continuem obscuras. Mas em Béziers, pelo menos, o elo entre Madalena e a heresia não era acidental e permite prescrutar os antecedentes da Cruzada dos Albigenses no seu conjunto. Como escreve Pierre des Vaux-de-Cernat:
“Béziers foi conquistada no dia de Santa Maria Madalena. Oh! Suprema justiça da Providência!… Os heréticos alegavam que Maria Madalena era a concubina de Jesus Cristo… e foi, por conseguinte, com justa causa que aqueles cães repugnantes foram capturados e massacrados durante a festa daquela que eles tinham insultado… “
Por mais chocante que esta ideia possa ter sido para o bom monge e para os cruzados, obviamente ela não o era para a grande maioria do povo da cidade, que ativamente apoiara os heréticos até à morte. É claro que esta crença era uma tradição local, de poder quase único sobre o coração e a mente do povo. Como vimos, os Evangelhos gnósticos e outros textos primitivos não hesitam em descrever a relação entre Maria Madalena e Jesus como sendo notoriamente sexual. Mas como é que estes cidadãos franceses medievais ouviriam falar disso? Os Evangelhos gnósticos ainda não tinham sido descobertos (e, mesmo que tivessem sido, é improvável que chegassem ao seu conhecimento). Então, de onde veio esta tradição?
Este episódio representou o levantar da cortina para toda a Cruzada Albigense, que iria devastar o Languedoc durante mais de quarenta anos, deixando cicatrizes tão profundas na psique coletiva do povo, que não é, de modo nenhum, bizarro detectá-las ainda (n.t. assim como um profundo ressentimento contra a “santa” igreja de Roma). Mas quem eram estes cátaros – cujas crenças deram origem a que uma cruzada fosse montada contra eles? Que aterrorizava tanto a Instituição da igreja romana, que esta criou a Inquisição especificamente como uma letal arma contra eles (e os demais dissidentes do catolicismo romano)?
Ninguém pode, com alguma exatidão, identificar a gênese da fé cátara, mas ela tornou-se rapidamente um poder a ser considerado no Languedoc do século XI. Para os habitantes do Languedoc, os cátaros não eram tratados com o desdém e o ridículo com que a nossa cultura tende a considerar os cultos religiosos minoritários; eles eram a religião dominante da região e tratados, localmente, com o maior respeito. Todas as famílias nobres da área eram, elas próprias, cátaras ou simpatizantes dos cátaros, que lhes deram ativo apoio. O Catarismo era virtualmente a religião de Estado do Languedoc.
Conhecidos como Les Bonhommes ou Les Bons Chrétiens – os «homens bons» ou «bons cristãos» -, os cátaros pareciam não ter ofendido ninguém. Os modernos comentadores, especialmente os que têm uma perspectiva da New Age, afirmam que eles representavam um irrepreensível movimento de regresso aos princípios fundamentais da Cristandade (nada a ver com o CATOLICISMO de Roma). Embora, como veremos, tivessem absorvido muitas outras idéias e tivessem a sua própria ideologia algo confusa, é verdade que a sua maneira de viver era uma tentativa de obediência aos ensinamentos de Jesus.
Acusavam a Igreja Católica de se ter afastado demasiado do conceito original do movimento de Jesus. Consideravam anátema a riqueza e a pompa da Igreja, as quais eles julgavam ser o oposto do que Jesus destinara aos seus discípulos. Superficialmente, portanto, parecem ter sido os percursores do movimento protestante, mas, apesar de certas similaridades, não foi esse o caso.
Os cátaros viviam suas vidas muito simples. Preferiam reunir-se ao ar livre ou em casas vulgares, mais do que em igrejas e, embora tivessem uma hierarquia administrativa que incluía bispos, todos os membros batizados eram espiritualmente iguais e considerados sacerdotes. Talvez o mais surpreendente para aquela época fosse a sua ênfase na igualdade dos sexos, embora o civilizado Languedoc já tivesse uma atitude em relação às mulheres mais esclarecida do que era o habitual. Os cátaros eram vegetarianos e pacifistas e acreditavam numa forma de reencarnação. Eram também pregadores itinerantes, viajando aos pares, vivendo na mais completa pobreza e simplicidade, detendo-se para ajudar e curar sempre que podiam. Em muitos aspectos, os Homens Bons não pareciam constituir ameaça para ninguém – exceto para a própria Igreja.
Esta organização, a igreja de Roma, encontrou muitas razões para perseguir os cátaros. Eles eram clamorosos inimigos da cruz, considerando-a uma sinistra e doentia lembrança do instrumento que torturara Jesus até à morte. Também odiavam todo o culto dos mortos e o comércio de relíquias que lhe estava associado – um meio essencial para rechear os cofres de Roma na época dos cátaros. Mas a razão primordial que levou os cátaros a terem dificuldades com a Igreja foi a sua recusa em reconhecer a “autoridade” do papa.
Durante o século XII, vários concílios da Igreja condenaram os cátaros, mas, por fim, em 1179, eles e os seus protetores foram declarados «malditos». Até esse momento, a Igreja enviara missionários – os oradores de talento da época – para tentar recuperar os habitantes do Languedoc para a «verdadeira fé»; mas estes missionários eram recebidos com apatia. Até o grande S. Bernardo de Clairvaux (1060-1153) foi enviado para aquela zona, mas regressou exasperado com a intransigência dos languedocianos.
Curiosamente, no entanto, no seu relato para o papa, teve o cuidado de explicar que, apesar de os cátaros estarem doutrinariamente em erro, se «examinarmos a sua maneira de viver, não encontraremos nada mais irrepreensível». Esta iria ser a característica comum a toda a cruzada: mesmo os inimigos dos cátaros tiveram de admitir que a sua maneira de viver era exemplar.
A táctica imediata da Igreja foi tentar usar as mesmas armas dos cátaros, enviando-lhes a sua versão de pregadores itinerantes. Entre os primeiros destes pregadores, em 1205, estava o famoso Dominicano Gusmão, um monge espanhol que viria a fundar a Ordem dos Frades Pregadores (mais tarde, a Ordem (Dominicana) de S. Domingos, cujos membros, ainda mais tarde, criaram e dirigiram a “Santa” Inquisição).
As duas facções encontraram-se numa série de discussões abertas. uma espécie de debate público, muito aceso, que não resolveu nada. Finalmente, em 1207, o papa Inocêncio III perdeu a paciência e excomungou o conde de Toulouse, Raimundo VI, por não ter agido contra os heréticos. Esta atitude foi obviamente impopular, porque o legado papal, que transmitiu a notícia, foi morto por um dos cavaleiros de Raymond. Foi a última gota: o papa declarou uma cruzada total contra os cátaros, os seus apoiantes e simpatizantes. A cruzada foi convocada a 24 de Junho de 1209 – o dia da festa de S. João Batista.
Até àquela altura, todos os cruzados tinham sido convocados contra os muçulmanos – contra «selvagens» estrangeiros, que viviam em terras tão distantes que eram literalmente inimagináveis. Mas esta cruzada ia ser travada por católicos contra cristãos, quase na vizinhança do papa. Havia todas as possibilidades de alguns cruzados conhecerem pessoalmente os heréticos que tinham jurado exterminar.
A Cruzada dos Albigenses, que começou em Béziers em 1209, prosseguiu com a maior brutalidade, à medida que cidade após cidade caíam em poder dos soldados, sob o comando de Simon de Montfort. A campanha prolongou-se até 1244 – um período de tempo considerável para que os soldados fizessem o seu pior. Há lugares no Languedoc onde ainda hoje o nome Simon de Monfort suscita uma reação de medo misturada com aversão, o mesmo sentimento em relação a igreja de Roma.
Na época, os motivos, manifestamente religiosos, da campanha em breve se misturaram com razões políticas mais cínicas. A maioria dos cruzados veio do norte de França e a riqueza e o poder do Languedoc eram demasiado atrativos para serem ignorados. No princípio da cruzada, esta região podia ter desfrutado de considerável independência; no final, ela fazia definitivamente parte de França.
Este episódio da história europeia foi, pelos padrões de qualquer pessoa, enormemente importante. Não foi apenas o primeiro genocídio europeu, mas foi também um passo crucial na unificação da França – e deu o impulso direto à criação da Inquisição pela igreja de Roma. Mas, na nossa opinião, a Cruzada dos Albigenses representa muito mais que uma campanha de atrocidades curiosamente esquecida.
Os cátaros eram pacifistas e desprezavam tanto «o imundo invólucro da carne» que estavam ansiosos por se libertar dele, mesmo que o meio de libertação significasse o martírio de serem queimados vivos. Durante a campanha, inúmeros milhares de cátaros morreram na fogueira, e muitos destes não demonstraram o menor horror ou medo quando confrontados com ela. Aparentemente, alguns foram mais longe e não evidenciaram qualquer dor. Isto foi particularmente notável no final do cerco do seu último refúgio, a fortaleza de Montségur.
Paragem essencial para o turista moderno, Montségur tornou-se quase num lugar mítico, muito semelhante a Glastonbury Tor. Mas, embora os que estão destreinados fisicamente possam considerar este último uma subida íngreme, não é nada, comparado com a estrada que leva ao topo do château de Montségur. Uma cidadela de pedra, ele ergue-se de modo quase impossível nas alturas vertiginosas de uma montanha escarpada, com a forma aproximada de um antigo pão-de-açúcar, que domina a aldeia e um vale que se tomou perigoso devido à queda regular de pedras dos rochedos.
Indicações em várias línguas advertem aqueles, cujo vigor esteja em dúvida, contra tentativas suicidas de subir ao château; mesmo os bronzeados carregadores acham a subida muito dura. É difícil imaginar como os cátaros e os seus abastecimentos conseguiram chegar ao topo. No entanto, uma vez lá chegados, era relativamente fácil aguentar até ao fim do cerco, porque os cruzados – com todas as suas armaduras e cavalos – nem podiam tentar a subida.
Mas, a partir de 1240, quando os cruzados tinham obrigado os restantes cátaros a recuar cada vez mais para os contrafortes dos Pireneus, Montségur tornou-se o seu quartel-general. Como refúgio de cerca de 300 cátaros, mas, mais particularmente, dos seus líderes, Montségur era a presa cobiçada pelos homens do papa. A então rainha da França, Branca de Castela, reforçou a importância de Montségur quando escreveu sobre a sua captura: «[devemos] cortar a cabeça do dragão».
Durante os dez meses que durou o cerco de Montségur, aconteceu um fenômeno curioso. Vários dos soldados sitiantes desertaram e juntaram-se aos cátaros rebeldes, apesar de conhecerem bem o fim que os esperava. O que os poderia ter incitado a esta bizarra deserção? Algumas pessoas sugeriram que eles estavam tão impressionados pelo comportamento exemplar dos cátaros que sofreram uma profunda conversão (despertar) interior.
Como vimos, os cátaros encararam a sua morte certa pela tortura não apenas com estoicismo mas com total calma – mesmo, diz-se, quando as chamas começaram a envolvê-los. Para aqueles que se recordam dos anos 70 deste século, isto faz lembrar imediatamente a imagem obcecante daquele solitário monge budista imolando-se como protesto contra a guerra do Vietnã. Estava sentado, completamente imóvel, num transe nascido de uma longa preparação e de inimaginável disciplina, enquanto o fogo o consumia.
E os cátaros, conscientemente, prepararam-se para a morte, fazendo mesmo um juramento, que prometia especificamente fidelidade à sua fé, face a todos os tipos de tortura. Usaram eles também uma técnica de transe semelhante, que lhes permitisse vencer a mais extrema das agonias? Certamente, este segredo era algo que os soldados, desde tempos imemoriais, sempre desejaram conhecer.
Seja como for, a queda de Montségur deu origem a muitos e persistentes mistérios, que exerceram um fascínio durante gerações, incluindo os caçadores de tesouros nazistas e os que procuram o Santo Graal. O mistério mais persistente diz respeito ao chamado tesouro dos cátaros, que quatro deles conseguiram levar para fora da cidadela na noite anterior ao massacre dos restantes cátaros. Estes intrépidos heréticos conseguiram fugir, descendo por cordas, pelo lado mais íngreme da montanha, no meio da noite.
Embora se tivessem rendido formalmente a 2 de Março de 1244, por razões que nunca foram explicadas, os cátaros foram autorizados a permanecer na cidadela durante mais quinze dias – passado esse tempo, entregaram-se para serem queimados. Alguns relatos vão mais longe e descrevem-nos como tendo descido a correr a encosta da montanha e saltado para as fogueiras, que os aguardavam em baixo, no sopé da montanha. Tem sido especulado que eles pediram este tempo extra para proceder a algum ritual, mas nunca ninguém saberá a verdade do fato.
A natureza exata do tesouro dos cátaros é uma questão de viva especulação. A julgar pelo percurso arriscado seguido pelos quatro fugitivos, o tesouro dificilmente podia ter consistido em pesados sacos com barras de ouro. Tem-se especulado que era o próprio Santo Graal – ou qualquer objeto ritual com grande significado – enquanto outras pessoas alegam que ele se constituía na forma de manuscritos, sendo um tesouro do conhecimento, ou mesmo que os quatro cátaros eram eles próprios, de algum modo, importantes. Podiam ter representado uma hierarquia de autoridade, talvez mesmo personificarem literalmente a lendária descendência de Jesus e Maria Madalena.
Mas se o tesouro cátaro fosse realmente conhecimento secreto, de que forma se teria revestido? Em que acreditavam, de fato, os cátaros? É difícil avaliar as suas crenças com alguma exatidão, porque eles deixaram poucos registros escritos e muito do que se diz que eles acreditavam proveio dos escritos dos seus inimigos – a Inquisição da igreja romana. E como sagazmente observam Walter Birks e R. A. Gilbert. em The Treasure of Moniségur (1987), deu-se demasiada ênfase à sua suposta teologia quando, com todas as probabilidades, foi o seu modo de viver que constituiu a atração. Contudo, a religião foi consequência de uma visão do mundo específica, e as suas origens exatas continuam discutíveis.
Os cátaros eram uma ramificação dos bogomilos, um movimento herético que floresceu nos Balcãs, no meado do século X, mas que manteve a sua influência na zona até os cátaros encontrarem a morte. O bogomilismo teve larga divulgação – pelo menos, até Constantinopla – e foi considerado uma séria ameaça à ortodoxia religiosa romana.
Os bogomilos da Bulgária eram, eles próprios, herdeiros de uma longa geração de «heresia» e tinham adquirido uma pitoresca reputação entre os seus opositores. Por exemplo, a palavra inglesa hugger, que significa «sodomita», deriva do nome «búlgaro» e emprega-se tanto literalmente – todos os heréticos são acusados de desvio sexual, quer a acusação seja, ou não, justificada – como em sentido pejorativo.
Continua …
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