Pela Páscoa de 1996, os meios de comunicação britânicos dedicaram muita atenção ao que parecia ser uma descoberta espantosa – a de ossários, encontrados em Jerusalém, que continham as ossadas de um pequeno grupo de pessoas, entre as quais estaria «Jesus, filho de José».
As outras eram duas Marias (uma, cuja inscrição estava em grego) – neste contexto, possivelmente a Virgem e Madalena -, um José, um Mateus e um «Judas, filho de Jesus».
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Capítulo 11 – AS INEXATIDÕES DOS EVANGELHOS – Livro “The Templar Revelation – Secret Guardians of the True Identity of Christ”, de Lynn Picknett e Clive Prince.
http://www.picknettprince.com/
CAPÍTULO XI – AS INEXATIDÕES DOS EVANGELHOS:
Obviamente que estes nomes, encontrados todos juntos, desta maneira, provocaram alguma excitação entre os cristãos, embora as implicações desta descoberta não fossem necessariamente do seu agrado – afinal, o próprio cristianismo fora fundado sobre a ideia de que Jesus ressuscitou dos mortos e ascendeu corporalmente ao céu. Encontrar as suas ossadas seria devastador. Mas eram, de fato, as suas – e as da sua família?
Tem de se admitir que, com toda a probabilidade, não eram. Pode ter sido mera coincidência que os nomes tivessem particular ressonância para os cristãos, porque eram todos nomes comuns na Palestina do primeiro século. Mas a razão por que esta descoberta foi importante deveu-se à simples dimensão e intensidade do debate que ela provocou. Os programas de televisão e os jornais de qualidade agarraram-se à pergunta: se pudesse ser provado que elas eram aquelas ossadas específicas, qual seria o seu significado para o cristianismo? Para nós, um dos aspectos mais reveladores da questão foi o espanto e a indignação de muitos cristãos quando confrontados com a ideia de que Jesus possa ter sido um homem normal. Para muitos, foi mesmo uma surpresa que o seu nome fosse comum.
Apesar de ser compreensível que cristãos confessos desejassem manter o seu conceito de Jesus como (único) Filho de Deus e talvez decidir, por uma questão de estratégia, ignorar o que pessoas alheias pudessem dizer sobre ele, é estranho que tantos cristãos não saibam, de fato, até que ponto se provou que o relato do Evangelho é inexato. Nunca houve acesso a tanta informação: escreveram-se livros, nos últimos cinquenta anos, que adotaram um largo âmbito de perspectivas sobre Jesus e o seu movimento e apresentaram muitas teorias diferentes (e, por vezes, divertidas).
Entre elas, surgiram ideias como a de Jesus ser um pai divorciado, com três filhos, um maçônico, um budista, um mágico, um hipnotizador, o progenitor de uma dinastia de reis (Merovíngios) franceses, um filósofo cínico, um cogumelo alucinógeno – e mesmo uma mulher! Esta explosão de ideias estranhas e prodigiosas pode ser, em parte, uma consequência da tendência moderna para levantar questões, mas a razão por que estas ideias possam ter surgido deve-se ao fato dos estudos recentes terem revelado que a tradicional história de Jesus está radicalmente deturpada e, portanto, é pouco consistente. Mas, apesar de estas ideias florescerem porque este vácuo existe, elas dependem do fato de os Evangelhos terem de ser não só reinterpretados como virtualmente reescritos.
Este vácuo só pôde ser discernido quando a pesquisa de fundo apresentou um contexto para a história. Descobertas arqueológicas, como os textos de Nag Hammadi e os manuscritos do Mar Morto, revelaram muito mais sobre a época e a cultura em que Jesus viveu – e, de súbito, parece que muitos aspectos do cristianismo, habitualmente considerados únicos, não eram assim como foram contados. Mesmo os mais tradicionais e familiares conceitos cristãos são agora considerados como tendo um significado completamente diferente, no contexto da Palestina do primeiro século.
Por exemplo, um lema que os cristãos evangélicos gostam particularmente de exibir no exterior das suas igrejas é «Jesus Cristo é o Senhor». Para eles, esta frase encerra a ideia de que Jesus era literalmente divino – o Senhor, Deus encarnado. Foi extraída dos Evangelhos, na crença de que era um título concedido a Jesus pelos seus discípulos, em reconhecimento da sua posição única. Mas, como demonstrou Geza Vermes, o conceituado estudioso da Bíblia, esse título era apenas um termo respeitoso comum, como o que as crianças dirigiam ao pai ou uma esposa ao seu marido – o equivalente a «senhor». Não implica nada mais do que um simples costume e, certamente, nada de espiritual ou divino. Mas, ao longo dos séculos, esta frase adquiriu vida própria e é considerada quase como prova de que Jesus é o Senhor universal.
Outro exemplo de como a tradição cristã se transformou em fato histórico é o das principais festividades, como a Páscoa e o Natal. Todo os anos, milhões de cristãos de todo o mundo celebram o nascimento do Menino Jesus, a 25 de Dezembro. A história da Natividade é a mais familiar do mundo: Maria era uma Virgem, que concebeu pela intervenção do Espírito Santo; na estalagem, não havia quarto para ela e para o seu marido José, por isso a criança nasceu num estábulo (ou numa caverna, segundo outras versões), os magos e os pastores vieram adorar o Salvador recém-nascido. Esta história pode não ser aprovada por cristãos mais sofisticados e pelos teólogos, Mas é uma das primeiras histórias que se contam às crianças e, na primeira infância, ela transforma-se em «Evangelho».
Quando o papa julgou prudente explicar que Jesus não nascera, de fato, a 25 de Dezembro, mas que essa data fora escolhida porque já era uma festividade pagã romana do solstício (Sol Invictus) de inverno no hemisfério norte, este anúncio causou alguma sensação. Para a maioria dos cristãos comuns, este anúncio foi uma grande revelação. Que este anúncio tivesse sido feito apenas em 1994 é quase incrível. Contudo, ele é apenas a ponta do icebergue porque os teólogos sabem há muito que toda a história do Natal é apenas um mito solar.
O grau em que a maioria dos católicos é mantida deliberadamente na ignorância é maior, muito maior: a data do Natal, a 25 de Dezembro, não é apenas a do alegado nascimento de Jesus; foi também a de muitos deuses pagãos, como Osíris, Átis, Tamuz, Adónis, Dionísio e muitos outros. Também eles nasceram em lugares humildes como cavernas, pastores acorreram ao lugar do seu nascimento, que fora anunciado por sinais e maravilhas, incluindo o aparecimento de uma nova estrela. E entre os seus múltiplos títulos contavam- se o de «Bom Pastor» e de «Salvador da Humanidade».
Quando confrontado com a evidência de Jesus ser apenas um de uma longa série de tradições de «deuses que morrem e ressuscitam», o clero tem tendência para se refugiar no conceito insatisfatório de que os pagãos da antiguidade, de certo modo, se aperceberam indistintamente de que, um dia, haveria um verdadeiro Deus salvador, mas tiveram de se limitar a um arremedo grotesco do futuro cristianismo.
Embora as verdadeiras origens do cristianismo sejam examinadas em pormenor, mais tarde, é suficiente dizer que a data comum do nascimento a 25 de Dezembro não é a única semelhança entre a história de Jesus e a dos deuses pagãos. Osíris, por exemplo – consorte de Ísis -, morreu às mãos dos perversos a uma sexta-feira e foi magicamente «ressuscitado», depois de estar três dias no Mundo dos Mortos. E os mistérios de Dionísio eram celebrados pela ingestão do Deus através de uma refeição mágica de pão e vinho, simbolizando o seu corpo e sangue. Estes «deuses-que-morrem-e-ressuscitam» há muito que foram reconhecidos como tal por teólogos, historiadores e estudiosos da Bíblia, mas parece ter havido uma conspiração tácita para ocultar esta informação ao «rebanho» (ignorante) da Igreja.
Com toda a confusão de novos elementos que estão a emergir sobre as origens do cristianismo, é demasiado fácil ser levado pelo entusiasmo e abraçar uma determinada ideia sem a cautela e o discernimento necessários. Se a fonte material é mal interpretada, as conclusões alcançadas podem estar muito longe da verdade. Por exemplo, muitas palavras foram dedicadas aos manuscritos do Mar Morto, que foram descobertos em 1947; alguns deles parecem lançar nova luz sobre o primitivo cristianismo. Certas passagens dos manuscritos convenceram muitas pessoas de que Jesus e João Batista eram membros dos essênios, uma seita baseada em Qumran, junto do Mar Morto. Não é exagero dizer que esta convicção é agora julgada por muitas pessoas como estando irrefutavelmente provada.
De fato, não existe nenhuma prova de que os próprios manuscritos fossem de origem essênia – esta foi simplesmente a suposição imediata quando eles foram encontrados. Há uma hipótese: que os documentos fossem os escritos de uma única seita, quer dos essênios quer de uma das muitas seitas que se sabe terem-se retirado para aquela área. Contudo, o eminente professor de História Judaica Norman Golb, que analisou cuidadosamente a descoberta dos manuscritos do Mar Morto e o desenvolvimento do seu estudo, contestou, recentemente, esta hipótese.
Demonstrou que a suposição de eles terem origem numa única comunidade – ou mesmo que alguma comunidade religiosa lá tivesse existido – não é apoiada pela evidência arqueológica nem pela evidência dos próprios manuscritos. Golb pensa que os manuscritos faziam, de fato, parte da biblioteca do Templo, que fora escondida lá durante a Revolta judaica de 70 d.C. Se Golb tiver razão, e tudo indica que tem, então, virtualmente todos os livros escritos sobre os manuscritos do Mar Morto são redundantes.
Essencialmente, o que muitos eruditos fizeram foi tentar reconstituir as crenças de uma hipotética seita a partir de uma coleção de textos que, de fato, tiveram a sua origem entre uma variedade de grupos diferentes. É como deduzir as crenças de alguém a partir dos livros que se encontram nas suas estantes: a nossa biblioteca pessoal, por exemplo, revela facilmente o nosso interesse por assuntos religiosos e esotéricos, mas, como os nossos livros abrangem uma variedade de perspectivas – céticas, racionais, crédulas -, não podem representar aquilo em que nós, de fato, acreditamos. (Por comparação, os textos de Nag Hammadi nunca foram considerados produto de uma única seita.)
Embora a ligação «essênia» dos manuscritos do Mar Morto seja falaciosa, apesar da sua categoria de mito moderno, eles permanecem de profunda importância histórica para a compreensão do judaísmo daquela época. Mas, como é pouco provável que sejam de grande utilidade para qualquer estudo das origens do cristianismo, os manuscritos não terão grande importância nesta investigação.
Os perigos de basear conclusões generalizadas em premissas imperfeitas são exemplificados por “The Hiram Key” (A Chave de Hiram) de Knight e Lomas. De acordo com o seu argumento, alguns dos manuscritos do Mar Morto contêm idéias que são semelhantes às da maçonaria, e, como eles afirmam «que os autores dos manuscritos do Mar Morto… eram essênios, está agora fora de dúvida», então concluir-se-ia que os essênios foram os precursores da Maçonaria. Se acrescentarmos a isto a certeza dos autores de que Jesus era essênio, a conclusão é evidente: Jesus era maçônico!
Contudo, como vimos, os manuscritos não foram escritos pelos essênios e não se provou que Jesus fosse membro dessa seita, portanto todo o argumento se desmorona. Pelo menos, oferece ao investigador demasiado entusiasta um exemplo admonitório.
Tínhamos atingido o ponto em que compreendemos que uma reavaliação radical da posição de João Baptista e de Maria Madalena devia ter sido feita há muito tempo. Afinal, parecia que estas duas figuras históricas tinham algum direito convincente a serem consideradas muito a sério – pelo menos, por um persistente movimento secreto da Europa que incluíra algumas das mentes mais brilhantes de todos os tempos.
O tema dominante do que designamos pela Grande Heresia Europeia era a inexplicável veneração – atingindo, nalguns casos, a verdadeira adoração – de Maria Madalena e de João Batista. Mas isso representava alguma coisa mais do que um gênero de não-ortodoxia deliberada, uma persistente rebeldia contra a Igreja, sem nenhum fundamento? Existia alguma coisa substancial por detrás destas heresias? Para descobrir se havia alguma base factual para estas crenças, recorremos ao Novo Testamento, e em particular aos quatro Evangelhos canônicos de Mateus, Marcos, Lucas e João.
Admitimos um espanto inicial por esta associação «herética» entre Batista e Madalena. Não apenas não existia nada na versão do cristianismo, reconhecida pela Igreja, que os associasse – além da sua aparente devoção a Jesus -, mas uma investigação superficial das próprias heresias também não conseguiu apresentar qualquer causa comum plausível. As suas imagens eram polos opostos. João Batista surge como um asceta que morreu devido aos padrões morais inflexíveis, embora, talvez notavelmente, ele não morresse como um mártir cristão. (De fato, não existe nenhuma sugestão de que ele invocasse os ensinamentos ou a moral de Jesus quando tomou a sua posição fatal contra Herodes Antipas.)
E, por outro lado, julga-se que Madalena tenha sido uma prostituta, embora, de acordo com a história tradicional, ela se tivesse convertido e passasse o resto da sua longa vida como penitente. De certo modo, João e Maria não parecem ter sido verdadeiros aliados: segundo os Evangelhos, certamente, não há nenhuma sugestão de que eles se tivessem conhecido. No entanto, há indicações de que, provavelmente, eles tinham conhecimento um do outro. Os eruditos reconhecem que Batista tinha uma grande fama de pregador íntegro, na sua época e lugar, que viera do deserto para chamar os homens ao arrependimento, enquanto Maria era uma das discípulas de Jesus, desempenhando um papel importante no seu movimento.
E, segundo se pensa, Jesus e João eram primos, ou, pelo menos, pertenciam à mesma família. Lendo nas entrelinhas, pode imaginar-se que João tinha conhecimento de Maria Madalena como alguém que lavava os pés dos homens, lhes trazia toalhas limpas e lhes preparava as refeições. Talvez tivesse um conhecimento vago da sua antiga reputação e desaprovasse a sua presença «impura» – a não ser, claro, que ele a tivesse batizado. Não existe nenhum registro disso, mas também não há registros de que os apóstolos, como S. Pedro, tivessem sido batizados.
Contudo, uma investigação mais profunda do ambiente da história da Bíblia dá algumas indicações sobre a ligação entre Madalena e Batista. O primeiro elo de ligação importante é o dos seus papéis complementares na carreira de Jesus como pregador. É João quem representa o seu princípio e Maria Madalena quem simboliza o seu fim.
É João quem inicia o ministério de Jesus através do rito do batismo. E Maria que é central para os acontecimentos que rodearam a sua morte e ressurreição. A grande associação é que eles celebraram uma espécie de «sagração». O batismo com a água, celebrado por João, é claramente análogo à unção com o óleo de nardo celebrada por Maria de Betânia, que é geralmente se supõe que seja a mesma que Maria Madalena, e foi a última quem ungiu o corpo morto de Jesus com mirra e aloés, para ser enterrado.
A grande semelhança entre estas duas personagens curiosamente fascinantes, no entanto, reside no fato de, apesar de ambos terem obviamente desempenhado uma importante função ritual na vida de Jesus, eles apenas foram incluídos na história do Evangelho por tolerância.
Eles surgem e desaparecem das páginas da Bíblia com tal brusquidão que criam uma nota particularmente discordante. Por um lado, os Evangelhos referem a execução de João às mãos dos soldados de Herodes, mas, por outro, não há nenhuma palavra sobre o pesar de Jesus por este fato ou de como exortou os seus discípulos a manifestar reverência pela memória de João.
Madalena, de súbito, surge na história no momento da Crucificação, num papel que é claramente de alguma intimidade com Jesus, e é a primeira pessoa a testemunhar a Ressurreição – todavia, por que não é ela específica e anteriormente mencionada? Talvez porque os evangelistas foram obrigados a admitir que tanto João como Maria Madalena desempenharam papéis tão centrais na história de Jesus que não podiam ser totalmente excluídos da narrativa, mas, caso contrário, nunca teriam sido mencionados. Então, que havia em João Baptista e em Maria Madalena que era tão ofensivo para os evangelistas e os primeiros padres da Igreja?
É fácil compreender esta deliberada marginalização no caso de Madalena. Por um lado, ela é claramente importante na história de Jesus, mas, por outro, não existe virtualmente nenhuma informação sobre ela nos Evangelhos. Excetuando uma única referência, em Lucas, por exemplo, ela faz a sua primeira verdadeira aparição como testemunha da crucificação. Não sabemos como ela se tornou discípula, exceto a implicação da história de «expulsão de sete demônios» de que ela, em dada altura, teria sido curada por Jesus. Nem somos informados de qual era o seu exato papel, especialmente no enterro de Jesus.
De início, supusemos ingenuamente que qualquer discípula teria recebido este tratamento desdenhoso simplesmente porque era mulher e, portanto, cidadã de segunda-classe no que dizia respeito aos judeus do século I. Mas, nesse caso, as coisas deviam ter mudado desde a época de Rute e Naomi, cujas vidas estão tão bem relatadas no Antigo Testamento. E há também a curiosa insistência no apelido ou título de Maria Madalena.
Embora a sua derivação seja discutida mais tarde, é possível ver, no próprio fato de ele ser usado pelos evangelistas, uma indicação de que ela era uma mulher de recursos próprios. Todas as outras mulheres dos Evangelhos são definidas pela sua posição de esposa, mãe ou irmã de algum homem importante. Mas, aqui, temos simplesmente Maria Madalena. É como se os evangelistas imaginassem que os seus leitores soubessem quem ela era.
Referindo-se às discípulas de Jesus, os Evangelhos dizem que elas «o serviam com os seus haveres» – indicando que elas tinham alguns haveres para o servir. Fazia ela parte de um grupo de mulheres independentes, com alguns meios, que sustentavam o grupo de Jesus? Certamente, muitos eruditos acreditam que era este o caso. Maria Madalena, quando é referida pelo nome, está sempre no topo da lista, mesmo antes de Maria, a Mãe – exceto quando há uma razão específica para colocar a Virgem em primeiro lugar.
O Priorado de Sião acredita que Maria Madalena e Maria de Betânia são uma e a mesma pessoa, a irmã de Lázaro e aquela que unge os pés de Jesus. Se for este o caso, então o tratamento brusco que lhe dão os evangelistas torna-se ainda mais evidente. Eles parecem ter tornado, de forma deliberada, a sua identidade e o seu papel ainda mais difícil de se determinar. Os Evangelhos Sinópticos vão ao ponto de tornar anônima a mulher que unge Jesus, embora seja muito provável que os evangelistas soubessem quem ela era e por que razão era importante.
Este processo de marginalização parece também ter sido aplicado a João Baptista. Os modernos estudiosos do Novo Testamento reconhecem que a exata relação entre João e Jesus é difícil de definir. Muitos deles apontam para a aparente e excessiva insistência de João no seu papel de simples precursor, sugerindo que ele «protesta de mais». De forma significativa, o Evangelho de Marcos – que foi provavelmente o primeiro, e aquele em que Marcos e Lucas se basearam – é menos insistente no papel subordinado de João que os textos posteriores. Isto levou muitos estudiosos a concluir que a subserviência de João a Jesus, que é repetida ad nauseam, era, de fato, uma cobertura para a rivalidade entre os dois homens e os respectivos grupos de discípulos.
O escrutínio minucioso dos próprios Evangelhos revela indicações dessa rivalidade. Para começar, uma leitura imparcial revela que muitos dos primeiros – e mais famosos – discípulos de Jesus vieram das fileiras dos discípulos de João. Por exemplo, o jovem João, o discípulo Amado (que, como vimos, era central para muitas crenças «heréticas») é reconhecido como tendo sido um dos acólitos de João e podia mesmo ter adotado o seu nome como um sinal de respeito por ele. Os discípulos de João, depois da decapitação do seu líder, continuaram como um grupo distinto: dizem-nos que alguns deles foram buscar o seu corpo, e há passagens do Novo Testamento em que os discípulos de Jesus discutem com os de João sobre as respectivas maneiras de viver.
Contudo, com maior significado, a história registra que João Batista teve dúvidas sobre Jesus como Messias – numa passagem a que, sem surpresa, a Igreja dá pouca divulgação. Quando João está encarcerado na prisão de Herodes, ele envia dois dos seus discípulos para interrogar Jesus: «És tu o que devia vir ou temos de esperar por outro? Este episódio é particularmente embaraçoso para os teólogos. Por um lado, eles consideram João Batista o enviado de Deus para preparar o caminho do Messias e indicá-lo como tal às multidões, reconhecendo também nele, deste modo, alguma medida de orientação divina – mas o «precursor» interroga-se, depois, se fez ou não a escolha certa!
Há alguns sinais menos óbvios, mas igualmente notáveis, da rivalidade que existia entre os dois homens, nas palavras de Jesus que a história registrou. O primeiro encontra-se na famosa passagem em que Jesus parece elogiar João perante as multidões, dizendo-lhes que: «Não se levantou entre os homens nascidos de mulher maior que João Batista». Contudo acrescentou a intrigante reserva: «O menor do reino dos Céus é maior que ele.» O exato significado desta afirmação tem sido tema de muito debate. O eminente estudioso do Novo Testamento Geza Vernes comparou este uso da frase «o menor do reino dos Céus» com outros exemplos e concluiu que era um circunlóquio – uma frase formal e impessoal – que simboliza o próprio orador. Por outras palavras, Jesus dizia à multidão «João pode ter sido um grande homem, mas eu sou maior».
Há, no entanto, outra interpretação muito mais óbvia, que nunca vimos discutida por nenhum estudioso da Bíblia. Admite-se que a frase «nascido das mulheres» pudesse ser tomada como um insulto porque implicava fraqueza – nesse caso, toda a passagem adquire uma tonalidade completamente diferente. Talvez a declaração de Jesus «entre os homens nascidos de mulheres não se levantou maior que João Batista» possa ser tomada como um insulto direto. Este insulto parece ser reforçado pelo comentário seguinte – «o menor do reino dos Céus é maior que ele». Se Geza Vernes tiver razão, e Jesus afirmava que ele era maior, então dificilmente era um elogio a João Batista. Mas pode ter sido um insulto maior, significando «mesmo o menor dos meus discípulos é maior que ele».
Tem sido sugerido que há outra ofensa mal velada a João – que teria sido óbvia para os judeus do século I – nos comentários de Jesus, durante uma discussão entre os seus discípulos e os de João: «Nenhum homem ponha vinho novo em odres velhos.» Nessa época e lugar, o vinho era geralmente transportado em «garrafas» feitas de peles de animal – e João andava vestido com peles de animais… No contexto desta particular discussão, é muito provável que este comentário se referisse a João.
É evidente que esta rivalidade era bem conhecida dos evangelistas, pelo menos cinquenta anos depois da crucificação (a época aproximada em que os livros foram escritos). Talvez os quatro Evangelhos fossem, de fato, escritos com a ideia oculta de minimizar esta vergonhosa rivalidade e de assegurar que Jesus levasse a vantagem. De fato, não há dúvidas de que os evangelistas se teriam sentido muito mais felizes se pudessem ter excluído totalmente João.
Assim, é evidente que Batista e Madalena – aquele que batizou Jesus e aquela que foi a primeira testemunha da parte principal do cristianismo, da ressurreição – estão unidos pelo fato de os evangelistas se sentirem, no mínimo, constrangidos em relação a eles. Mas é possível descobrir porquê, reconstituir os seus verdadeiros papéis e restabelecer a sua importância original?
O principal problema é que os livros do Novo Testamento são uma fonte de informação muito duvidosa. Como todos os textos Antigos, foram, certamente submetidos a um processo incessante de edição, seleção, tradução e interpretação. Ao longo dos séculos, foram feitos aditamentos às obras originais, que são, por vezes, irrelevantes, mas, ocasionalmente, são muito significativas. Por exemplo, na Primeira Epístola de João, a frase «Porque há no céu três que dão testemunho, o Pai, a Palavra e o Espírito Santo, e estes três são um» sabe-se ter sido posteriormente acrescentada. Também a história da mulher «surpreendida em adultério» surge apenas no Evangelho de João – e as suas primeiras versões conhecidas não incluem este episódio. Se ele é ou não autêntico tem sido tema de grande debate.
Um exemplo importante da confusão provocada pelos caprichos da tradução é o da ideia errada de que Jesus era um humilde carpinteiro. A palavra aramaica original era naggar, que pode significar quer um trabalhador de madeira quer um estudioso ou um homem erudito. No contexto, o último faz mais sentido porque não há nenhuma sugestão, em parte alguma, de que Jesus fosse um artesão de qualquer natureza – e a sua erudição provocou os comentários daqueles que o ouviam: a palavra naggar apenas é usada quando as pessoas discutem especificamente a erudição de Jesus. Mas a ideia de que Jesus era carpinteiro está agora tão indelevelmente gravada na história cristã como o fato de que ele nasceu a 25 de Dezembro.
As datas em que os Evangelhos foram escritos têm sido tema de grande debate e controvérsia. Como escreve A. N. Wilson:
“Uma das características mais curiosas do conhecimento do Novo Testamento é o fato de que, apesar de homens eruditos se terem debruçado sobre documentos durante séculos, nunca conseguiram determinar, sem margem para dúvida, questões tão simples como: onde foram escritos os Evangelhos, ou quando foram escritos, e, ainda menos, quem os escreveu”.
Os manuscritos mais antigos que se conhecem datam do século IV, mas são claramente cópias de textos mais antigos. Assim, os estudiosos tiveram de tentar determinar a sua proveniência, analisando a linguagem dos fragmentos dos Evangelhos que subsistem. Embora a questão não tenha sido resolvida de forma conclusiva, o atual consenso é que o Evangelho de Marcos é o mais antigo, tendo sido escrito talvez em 70 d.C. Também há consenso quanto a Mateus e Lucas se terem baseado largamente em Marcos, e, por isso, devem ter sido compostos mais tarde, embora incorporem material de outras fontes.
O Evangelho de João é considerado como sendo o último a ter sido escrito – talvez entre 90 e 120 d.C. O quarto Evangelho – o de João – sempre teve alguma coisa de enigmático. Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos coletivamente como Evangelhos Sinópticos, narram mais ou menos a mesma história, apresentando os acontecimentos quase pela mesma sequência e representando Jesus de maneira semelhante – embora ainda existam discrepâncias e inconsistências em episódios individuais. Um bom exemplo disto é o número e os nomes diferentes das mulheres que visitaram o túmulo de Jesus, segundo os três autores. O Evangelho de João, no entanto, narra a história de Jesus por uma ordem muito diferente e também inclui acontecimentos que os outros não referem.
Dois exemplos são as bodas de Canaã, em que Jesus realiza o seu primeiro milagre – transformando a água em vinho -, e a ressurreição de Lázaro, que se transforma, no evangelho de João, num dos acontecimentos principais. Que os outros cronistas tivessem desconhecido episódios tão importantes sempre intrigou os historiadores bíblicos.
Contudo, o Evangelho de João também difere na imagem que apresenta de Jesus. Enquanto os Evangelhos Sinópticos narram a história de um mestre religioso e taumaturgo, que se ajusta perfeitamente a um enquadramento judaico, o Evangelho de João tem uma atitude mais mística e mais gnóstica, atribuindo maior importância à divindade de Jesus. Também tenta explicar o significado implícito na história à medida que ela se desenrola.
Atualmente, a opinião corrente é que Jesus era um líder religioso judaico, que foi sobretudo rejeitado pelo seu próprio povo. Muitos analistas modernos nem consideram que ele planejasse fundar uma nova religião e que o cristianismo aconteceu quase acidentalmente, porque os ensinamentos de Jesus vingaram no resto do Império romano. Isto explica, segundo afirmam, ideias como a deificação de Jesus: ele tinha de se tornar conhecido como o Filho de Deus – literalmente Deus encarnado – para apelar ao mundo romanizado, que estava habituado à ideia de que os seus governantes e heróis se tornavam deuses.
Como o Evangelho de João insiste nestes temas, partiu-se do princípio de que ele fora escrito numa fase mais tardia do progresso do cristianismo, quando a nova religião começava a dar os primeiros passos no contexto mais vasto do Império romano. O problema é que o Evangelho de João é o único que, de fato, reivindica ser baseado no testemunho ocular de alguém (o próprio João) que assistiu aos principais acontecimentos da vida de Jesus – o «discípulo amado» que, tradicionalmente, é considerado ser o jovem João, daí a atribuição do Evangelho.
Certamente que o Evangelho de João contém os pormenores mais circunstanciais, como a atribuição de nome a indivíduos que surgem anonimamente nas outras versões. Assim, alguns eruditos argumentam que João é o primeiro Evangelho, embora haja outras interpretações, que vão desde a ideia de que João era o mais imaginativo, até à de que usou testemunhos em primeira-mão, mas acrescentou, depois, a sua própria interpretação.
O Evangelho de João é, segundo qualquer critério, muito estranho, Tem confundido mesmo os estudiosos mais eruditos, devido às suas confusas mensagens: de fato, o seu tom – que é inconfundível – é redondamente contrariado pelos fatos que tem o cuidado de apresentar ao leitor. Devido à pormenorizada informação que oferece, o Evangelho de João é reconhecido como o de maior valor histórico, contudo, também considerado como o mais distante no tempo em relação à vida de Jesus.
Revela um conhecimento mais preciso das práticas religiosas judaicas, mas é o menos judaico e o mais helenista (Gnóstico) na perspectiva adotada. É indiscutivelmente o mais hostil aos judeus – as suas diatribes contra eles revelam verdadeiro ódio -, mas deixa mais claro que os outros Evangelhos que foram os romanos, não os judeus, os responsáveis pela execução de Jesus. É também o mais estridente na sua marginalização de João Baptista, dedicando muitas palavras à sua aparente inferioridade e ignorando completamente o destino subsequente de Baptista – todavia, ao contrário dos Evangelhos Sinóticos, revela-nos que Jesus recrutou os seus primeiros discípulos entre o grupo de João e que os apoiantes de ambos os líderes continuaram a ser rivais, revelando assim que João era importante por direito próprio.
Mas esta evidente confusão é facilmente explicada pelas múltiplas fontes que foram usadas para compilar o Evangelho de João – incluindo o seu relato de testemunha ocular da missão de Jesus. E, como veremos, algumas destas fontes são particularmente reveladoras.
Muitos cristãos modernos acreditam que o Novo Testamento foi, de algum modo, divinamente inspirado. Contudo, os fatos contrariam esta ideia: foi apenas em 325 d.C. que o Concilio de Niceia se reuniu para discutir quais os livros que seriam incluídos no que viria a ser o Novo Testamento e a Bíblia. Não há dúvidas de que os homens presentes no Concílio incluíram na incumbência os seus próprios preconceitos e agendas, cujo triste fruto ainda estamos a colher. Eventualmente, o Concílio determinou que apenas quatro Evangelhos seriam incluídos no Novo Testamento e rejeitou, definitivamente, mais de cinquenta outros livros, com maior ou menor ou igual pretensão a serem considerados autênticos e que hoje são chamados de Evangelhos Apócrifos..
Num só rasgo, as idéias expressas, implícita ou explicitamente, no material rejeitado tornaram-se sinônimo de heresia. (De fato, a palavra heresia significava originalmente escolha.) Em certo sentido, o mesmo gênero de processo de seleção, semelhante ao que foi empreguado pelo Concilio de Niceia, continua até hoje. O público, em geral, não está autorizado a decidir sobre os textos que restaram. Por exemplo, o Evangelho de Tomás, cuja existência há muito era conhecida, só foi descoberto na sua versão completa quando os textos de Nag Hammadi foram desenterrados, em 1945.
Mas qualquer regozijo pela sua descoberta deve ser moderado pelo reconhecimento da razão da sua aceitação pelos teólogos: está em concordância com os quatro Evangelhos existentes, e foi essa a razão por que foi permitida a sua inclusão no cânone não oficial (embora a própria Igreja Católica o declarasse herético). Outros textos, datando aproximadamente da mesma época, foram rejeitados porque os seus conceitos religiosos não estão em harmonia com o Novo Testamento. De modo geral, estes são textos que têm uma perspectiva gnóstica.
Os cristãos são educados no conceito de «verdade evangélica», significando que os fatos são literal, inequívoca e divinamente inspirados. Muito poucos eruditos modernos, no entanto, aceitam que o Novo Testamento seja a palavra de Deus, porque sabem que as palavras do Novo Testamento não são mais nem menos válidas do que qualquer outro relato publicado cinquenta ou mais anos depois dos acontecimentos que descrevem.
É coincidência que os Evangelhos apenas fossem escritos depois do primeiro missionário, Paulo, ter evangelizado muitos países do Mediterrâneo oriental? É certo que nas cartas Paulo não dá nenhuma indicação de que tinha conhecimento de alguma coisa da vida e dos fatos de Cristo, além de que fora morto e ressuscitara. Assim, os Evangelhos foram criados para reforçar a sua versão do cristianismo ou para a contradizer? Os seus autores dificilmente podiam ter desconhecido o ministério de Paulo.
Os relatos dos Evangelhos foram, como vimos, escritos pelo menos quatro décadas depois da crucificação, e as coisas tinham mudado desde então – pelo menos porque a «vinda do reino de Deus», como Jesus prometera, não se tinha, de fato, concretizado. Este próprio espaço de tempo, certamente, apresenta enormes problemas na avaliação da autenticidade dos Evangelhos, porque não há maneira de distinguir as passagens que se baseavam em verdadeiros fatos históricos, em boatos ou em extrapolações de boatos – ou em completa invenção.
Muitas das palavras que agora consideramos como tendo saído da boca de Jesus podem não ter sido registradas textualmente ou podem nunca ter sido proferidas por ele ou por ninguém. Algumas delas podem ter sido erradamente relembradas, mesmo pelos seus discípulos (embora seja possível que povos com uma tradição oral, como os judeus, as conservassem consideravelmente «mais puras», durante mais tempo, do que nós o faríamos atualmente), e palavras de alguém completamente diferente possam ter sido atribuídas a Jesus. Ironicamente, todavia, uma das poucas maneiras de verificar se uma palavra é genuína é o «princípio da dissimilaridade»: isto é, verificando se ela contradiz a mensagem global dos Evangelhos. Afinal, se ela vai contra o espírito da maioria dos textos, é improvável que o autor a tenha inventado.
Durante a maior parte dos dois últimos milênios, supôs-se que os Evangelhos tinham sido divinamente inspirados e que continham a verdade autêntica sobre Jesus, os seus ensinamentos e mensagem para a Humanidade. Ele era, subentendia-se, o Filho de Deus, enviado para libertar o Homem dos seus pecados por um ato supremo de sacrifício e para instituir uma nova Igreja que suplantasse a religião do Antigo Testamento – e, por implicação, a de todos os pagãos do mundo grego e romano. É apenas nos últimos duzentos anos que a Bíblia tem sido submetida ao mesmo escrutínio crítico de outros documentos históricos e que se fez uma tentativa de enquadrar a vida e os ensinamentos de Jesus no contexto da sua época.
Podia esperar-se que este processo tivesse clarificado grande parte do caráter e da motivação de Jesus. De fato, verificou-se o contrário. Embora este método tenha revelado que muitas suposições estão erradas – por exemplo, Jesus não foi executado por iniciativa dos líderes religiosos judaicos mas porque foi acusado de intriga política pelos romanos -, falhou totalmente nas respostas a algumas das perguntas mais fundamentais acerca dele. Podemos afirmar o que Jesus não era, mas ainda é difícil afirmar o que ele era.
O resultado disto é que, hoje, o estudo do Novo Testamento está em crise. É incapaz de chegar a acordo sobre questões fundamentais como: Jesus proclamou ser ele o Messias? Proclamou ser o Filho de Deus? Proclamou-se rei dos judeus? E é completamente incapaz de explicar o significado de muitos dos seus atos. Nem mesmo consegue apresentar uma explicação convincente para a sua crucificação, porque não há nada que Jesus tenha dito ou feito – segundo o relato dos Evangelhos – que tivesse ofendido quer os líderes religiosos judaicos quer os senhores romanos, a ponto de eles terem desejado o seu sangue”. Muitos dos seus atos simbólicos, como o derrubar das mesas dos cambistas do templo ou mesmo o acontecimento crucial da instauração da eucaristia na última Ceia, não têm qualquer relação com o judaísmo.
O mais espantoso, no entanto, é o fato do estudo do Novo Testamento ter grande dificuldade em explicar, em primeiro lugar, por que devia uma religião ter sido fundada em nome de Jesus. Se Jesus, de fato, fosse o tão esperado Messias judaico, então ele fracassou nesse papel, porque foi humilhado, torturado e morto. E, todavia, os seus discípulos continuaram não só a venerá-lo mas também foram levados, pela sua devoção por ele, a declararem-se diferentes dos outros judeus.
Um bom exemplo desta confusão acadêmica encontra-se nas obras de dois dos mais eminentes estudiosos do Novo Testamento dos tempos recentes, Hugh Schonfield e Geza Vermes. Os paralelos entre os dois professores são espantosos. Ambos eram eruditos judeus que, desde muito cedo, se começaram a interessar pelas origens do cristianismo e dedicaram a maior parte das suas vidas ativas a esta questão. Ambos compreenderam que a maioria dos eruditos cristãos não tinha chegado a situar a investigação sobre o Jesus histórico no contexto mais amplo da cultura judaica da sua própria época e lugar.
Ambos esperavam encontrar a resposta por meio de uma cuidadosa comparação dos relatos dos Evangelhos com o judaísmo da época de Jesus e ambos, além das suas várias obras acadêmicas, publicaram livros que tiveram enorme sucesso popular e que apresentavam o resultado do trabalho das suas vidas – Schonfield com o seu The Passover Plot (1965) e Vermes com Jesus the Jew (1973). No entanto, as conclusões a que chegaram dificilmente podiam ter sido mais diferentes.
Vermes apresenta Jesus como um hassidiano – um dos herdeiros, muito semelhante aos xamãs, dos profetas do Antigo Testamento, que se distinguiram pela sua independência do judaísmo institucional e pelos seus milagres. Ele demonstra que não há nada no Novo Testamento que sugira que Jesus alguma vez proclamasse ser o Messias, ainda menos o Filho de Deus – estes títulos foram-lhe atribuídos, retrospectivamente, pelos seus discípulos. Schonfield, por outro lado, apresenta Jesus como uma figura essencialmente política, partidário da independência da Palestina relativamente a Roma e que conscientemente planejou a sua própria carreira para a adaptar à do esperado Messias, mesmo até ao ponto de, voluntariamente, engendrar a sua própria morte por crucificação.
The Passover Plot de Hugh Schonfield revelou ainda outras razões para aceitar a «verdade evangélica» com cautela. A sua obra demonstrou que, por detrás de Jesus e dos seus adeptos conhecidos, existia um outro grupo misterioso, com a sua agenda e interesses próprios na manipulação da sua história. Embora este argumento seja conhecido, vale a pena fazer aqui um breve resumo.
Em todas as histórias dos Evangelhos, Jesus defronta-se repetidamente com certas pessoas, que não são os seus discípulos mais próximos nem fazem parte do conjunto dos seus seguidores e que são geralmente pessoas abastadas – como José de Arimateia, que surge abruptamente, não se sabe de onde, para monopolizar os preparativos para o enterro de Jesus. As figuras centrais desta organização eram as do grupo de Betânia, a qual Schonfield denomina a «base de operações» de Jesus.
Este grupo parece ter assegurado que Jesus desempenhasse o papel do Messias esperado, especialmente a entrada em Jerusalém. O jumento que montava, cumprindo, assim, a profecia de Zacarias (9:9), fora previamente reservado, incluindo a senha para que fosse entregue – embora os discípulos de Jesus desconhecessem tudo. Também a sala para a última Ceia já está preparada, embora fosse a época do ano de maior movimento e Jerusalém estivesse apinhada de gente. Jesus manda os discípulos irem à cidade e procurar um homem que levava um cântaro com água (o que constituiria um espetáculo notório, porque apenas as mulheres realizavam essas tarefas subalternas); de novo seriam trocadas senhas e o homem conduzi-los-ia, então, à sala do andar superior.
Isto indica que os discípulos não tinham conhecimento de grande parte do que, de fato, se passava e que Jesus agia segundo um programa predelineado, no qual os membros da família de Betânia eram os principais protagonistas. Este é outro exemplo de que os Evangelhos não apresentam um quadro completo da história de Jesus. Muitas pessoas, atualmente, têm conhecimento de que foram atribuídos a Jesus motivos políticos. Hoje sabe-se que os seus discípulos incluíam membros de diferentes facções – alguns deles eram tão radicais que, hoje, lhes chamaríamos terroristas. A maioria dos eruditos considera que o apelido de Judas, geralmente indicado como «Iscariotes», deriva de sicarii, o nome de um desses grupos. Simão, o Zelota, é outro exemplo de como homens de violência estavam próximos de Jesus.
As obras de Schonfield e de Vermes são relativamente famosas e de fácil acesso. A obra de outro investigador bíblico, no entanto, apesar de merecer uma audiência muito mais vasta, teve, de fato, uma aceitação bastante menor. Uma descoberta muito importante foi feita em 1958 pelo Dr. Morton Smith (subsequentemente professor de História da Antiguidade na Universidade de Colúmbia, Nova Iorque) na biblioteca de Mar Saba, uma comunidade fechada e isolada da Igreja Ortodoxa Oriental, a cerca de doze milhas de Jerusalém. Smith já estivera no mosteiro durante a segunda guerra mundial quando, como estudante, ficara sem recursos na Palestina. Compreendendo a potencial importância dos documentos que se tinham acumulado naquela biblioteca, ao longo dos séculos, Smith voltou ao mosteiro em 1958.
A sua descoberta mais importante em Mar Saba foram alguns fragmentos de um «Evangelho Secreto» que se supunha ter sido escrito por Marcos. O que ele, de fato, encontrou foi a cópia de uma carta de um sacerdote da Igreja do século II, Clemente de Alexandria. A cópia datava, no mínimo, da segunda metade do século XVII e fora escrita na capa de um livro que datava de 1646 (uma prática comum quando os documentos muito antigos se começavam a deteriorar). Contudo, da análise do estilo – que continha muitas das conhecidas idiossincrasias de Clemente -, os paleógrafos concluíram que o original devia ter sido realmente escrito por ele.
Há também peculiaridades nos extratos deste «Evangelho Secreto» citados na carta que tornam provável que eles sejam genuínos. (Por exemplo, descreve Jesus sendo dominado pela cólera.) De todos os Evangelhos canônicos, apenas o de Marcos atribui emoções humanas a Jesus – os restantes extirparam estes elementos dos seus relatos, e é algo que, dificilmente, padres da Igreja, como Clemente, tivessem inventado.
A carta de Clemente é uma resposta a alguém chamado Teodoro, que lhe tinha escrito, aparentemente para lhe pedir conselho sobre a maneira de lidar uma seita herética conhecida como os carpocratianos (segundo o nome do seu fundador, Carpocrates). Este era um culto gnóstico cujas práticas incluíam ritos sexuais, que foram, naturalmente, condenados por Clemente e por outros padres da Igreja. As doutrinas desta seita pareciam basear-se num outro Evangelho de Marcos.
Nesta carta, Clemente admitia que este Evangelho existia e que era autêntico – embora acusasse os carpocratianos de má interpretação e de falsificação de parte dele – e que representava um Evangelho escrito por Marcos, que continha os ensinamentos esotéricos de Jesus, que não se destinavam a ser revelados aos cristãos comuns. Este «Evangelho Secreto de Marcos» é muito semelhante à mais conhecida versão canônica, exceto por conter, no mínimo, duas passagens que foram deliberadamente extirpadas para não serem reveladas aos «não-iniciados».
Esta descoberta é importante por três razões. Em primeiro lugar, pelo conhecimento que revela dos anos de formação da Igreja Católica e dos métodos usados pelos padres da Igreja para instituírem o cânone do dogma cristão. Revela que os textos eram editados e censurados e que mesmo obras reconhecidas como tendo valor igual aos Evangelhos canônicos eram negadas aos crentes comuns. Além disso, revela que figuras respeitáveis, como Clemente, estavam dispostas a mentir para impedir que esse material se tornasse mais conhecido: embora confesse a Teodoro que o Evangelho Secreto de Marcos existe, aconselha-o a negá-lo a toda a gente.
O segundo aspecto importante é a confirmação de que os Evangelhos Canônicos e os outros livros do Novo Testamento não apresentam um quadro completo das doutrinas e motivação de Jesus e que (como é sugerido por alguns relatos das suas palavras nos Evangelhos canônicos) havia, pelo menos, dois níveis de doutrina. Um era o exotérico, destinado aos discípulos comuns, e o outro era o esotérico, para os discípulos especiais – ou o verdadeiro círculo interno de iniciados.
O terceiro ponto importante da descoberta do Evangelho Secreto de Marcos – e um de particular relevância para a nossa investigação – é a natureza das duas passagens que Clemente cita na carta.
A primeira é um relato da ressurreição de Lázaro, embora nesta versão ele não seja designado pelo nome, sendo descrito apenas como um «jovem» de Betânia. A narração é muito semelhante à do Evangelho de João, exceto que, nesta versão, há um seguimento do milagre efetivo – revela que, seis dias depois, o jovem aproximou-se de Jesus «trazendo um pano de linho a cobrir-lhe o corpo nu» e permaneceu com ele uma noite, durante a qual «lhe foi revelado.. o mistério do reino de Deus».
Mais do que uma ressurreição milagrosa, portanto, a ressurreição de Lázaro parece ter feito parte de algum gênero de rito iniciatório em que o iniciado sofre uma morte e um renascimento simbólicos antes de lhe serem reveladas as doutrinas secretas. Um rito desta natureza é uma parte comum de muitas das religiões de mistério, que eram largamente praticadas nos mundos grego e romano – mas, como alguns leitores podem deduzir, ele não incluía também uma iniciação homossexual?
É certo que Morton Smith especulava que isto podia ter sido assim, a julgar pela alusão específica a um simples pano que cobria a nudez do jovem e pelo fato de ter passado uma noite sozinho com o seu mestre, Jesus. Na nossa opinião, contudo, parece-nos uma interpretação demasiado moderna – e demasiado apressada, porque as escolas de mistério implicavam habitualmente nudez e longas horas de isolamento com o iniciador, sem que isso envolvesse necessariamente qualquer atividade sexual.
O fato de este relato ser o da ressurreição de Lázaro é também importante. Como vimos, este é um dos episódios do Evangelho de João que não aparece em qualquer dos outros três evangelhos, e é citado pelos críticos como prova de que o Evangelho não é autêntico. O próprio fato de que apareceu uma vez, pelo menos, num dos outros Evangelhos, mas foi, depois, deliberadamente suprimido, apoia a autenticidade de João e explica por que foram censurados estes episódios relevantes, que davam indicações de uma doutrina secreta que fora reservada para o círculo interno de Jesus.
A outra passagem, mais curta, citada por Clemente, também é interessante porque preenche uma conhecida lacuna da história, que já foi reconhecida pelos eruditos. No Evangelho canônico de Marcos (11:46) lemos a curiosa afirmação: «E eles [Jesus e os seus discípulos] chegaram a Jericó: e quando ele saía de Jericó, acompanhado pelos seus discípulos e por um grande numero de pessoas, o cego Bartimeu, filho de Timeu, estava sentado junto da estrada, a mendigar.» Como não havia nenhum motivo para nos informar de que Jesus chegou a Jericó e partiu imediatamente, é óbvio que alguma coisa desapareceu deste relato. A carta de Clemente confirma que foi este o caso, ao revelar a passagem censurada, que é a seguinte:
E a irmã do jovem que Jesus amava, a mãe de Jesus e Salomé estavam lá, e Jesus não as recebeu.
O versículo omitido parece bastante inócuo, e não despertou o interesse da passagem de «Lázaro» – mas é, de fato, muito mais importante do que primeiramente parece. O «jovem que Jesus amava» é Lázaro, porque ele é referido por esta frase no Evangelho de João. (E, como a frase também é usada para o discípulo, em cujo testemunho o Evangelho se baseia – «João» -, há, pelo menos, um bom argumento para supor que o «discípulo amado» e Lázaro são a mesma pessoa.) As irmãs de Lázaro são Maria e Marta de Betânia, e, se aceitarmos que esta Maria é a mesma que Maria Madalena, então ela seria uma das três mulheres que Jesus evitou em Jericó.
Dada a sua brevidade, esta passagem não contém as implicações teológicas do relato mais longo, sobre Lázaro, acima citado. O que é importante, no entanto, é que, por alguma razão, esta frase aparentemente inofensiva devesse ter sido suprimida tão cedo. Que possível razão podiam ter tido os padres da Igreja para negarem aos seus adeptos o conhecimento de que existira algum gênero de situação que envolvia Jesus e a irmã de Lázaro – possivelmente Maria Madalena -, a mãe de Jesus e uma mulher chamada Salomé?
Os eruditos reagiram a este material, descoberto por Smith, ignorando as implicações e declarando-o demasiado insubstancial para ser devidamente analisado. Mas, na nossa opinião, ele levanta algumas questões interessantes.
Clemente acreditava que Marcos escrevera este «Evangelho Secreto» quando vivia na cidade egípcia de Alexandria. Considerando que o «mito da fundação» do Priorado de Sião e do Rito de Mênfis associa o sacerdote egípcio Ormuz a S. Marcos, podia ele ser uma alusão velada a esta tradição secreta?
A descoberta do Evangelho Secreto de Marcos confirma que os livros do Novo Testamento, tal como os conhecemos hoje, não são registros verdadeiros e imparciais de Jesus e do seu ministério. Até certo ponto, são obras de propaganda. Podia parecer impossível esperar reconstituir um quadro exato dos primeiros tempos do cristianismo a partir das suas páginas. A propaganda pode ser usada para tirar conclusões racionais, contanto que ela seja reconhecida como tal. Pode ser forçada a revelar o que começou por esconder, se for cuidadosamente analisada – por exemplo, passagens suspeitas são aquelas onde existem ofuscações que são óbvias ou onde são omitidos nomes sem nenhuma razão aparente.
É encorajador, no entanto, saber que grande parte do material «proibido», que foi eliminado dos textos originais do Novo Testamento ou que aparecia nos Evangelhos completos que foram rejeitados pelo Concílio de Niceia, tem sido conservado secretamente pelos chamados «heréticos», cuja heresia, em muitos casos, se devia simplesmente ao fato de conhecerem a verdade sobre as passagens censuradas. Que poderia conter este material editado que fosse tão potencialmente prejudicial para a Igreja, que aqueles que o conheciam foram impiedosamente perseguidos e condenados à fogueira?
Seguindo as indicações resultantes da nossa investigação sobre os movimentos secretos europeus, iniciamos a reavaliação da história de Jesus e das suas doutrinas. Durante anos, tínhamo-nos debatido com o conjunto de informação diversa que tínhamos reunido a partir de diversas fontes – tudo, desde textos teológicos clássicos a entrevistas com os próprios «heréticos», desde as páginas do Novo Testamento e de textos apócrifos e gnósticos às obras de alquimistas e herméticos. Um padrão começou, eventualmente, a emergir – e era tão espantoso, tão diferente da versão dos acontecimentos ensinada nas igrejas que, de início, duvidamos das nossas conclusões.
E se muitos dos chamados «heréticos», com o seu conhecimento secreto da história original de Jesus, fossem, de fato, os verdadeiros cristãos? Uma análise verdadeiramente imparcial da história de Jesus pode revelar-nos os graves acontecimentos da Palestina do século I? Era (É) tempo de abandonar os antolhos de dogmas e preconceitos e olhar para além do mito.
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