A Revelação Templária – 14 – João o CRISTO
Quando investigamos o papel de Leonardo da Vinci na mistificação do Sudário de Turim, ficamos espantados com a frequência com que João Batista surge na história do artista. Não só o próprio Leonardo era um grande admirador do santo, mas muitos lugares associados ao mestre eram, talvez por coincidência, dedicados ao santo. Entre eles destacava-se Florença, a cidade que Leonardo Da Vinci amava e que ostenta o extraordinário Batistério, na sua parte central.
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Capítulo 14 – João CRISTO – Livro “The Templar Revelation – Secret Guardians of the True Identity of Christ”, de Lynn Picknett e Clive Prince.
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Em 1996, quando realizávamos um documentário televisivo sobre o Sudário, visitamo-lo com uma equipe de filmagem, a qual – o acrônimo mágico «BBC» é virtualmente um «abre-te Sésamo» – conseguiu que tivéssemos o lugar à nossa disposição durante algum tempo, antes de as portas serem abertas ao público. O Batistério é um estranho edifício octogonal que data do período da Primeira Cruzada e que talvez deva a sua forma invulgar aos Templários, que (assim como as suas características igrejas redondas) também promoveram a forma octogonal, baseada no que eles pensavam ter sido o Templo de Salomão em Jerusalém. Tínhamos um interesse especial em o visitar porque a única escultura existente de Leonardo (uma obra conjunta com Giovanni Francesco Rustici) decorava uma parede exterior deste estranho edifício octogonal. Era, é claro, uma estátua de João Batista. E, como em todas as representações de João Baptista criadas por Leonardo, ele está representado com o indicador direito levantado {dedo correspondente a Júpiter (Diaus Pater, deus pai), Zeus, o deus patriarcal}.
Como vimos, a heresia europeia está parcialmente centrada em Batista, embora as suas verdadeiras razões sejam deliberadamente mantidas obscuras; na verdade, quando começamos a investigar este assunto, há alguns anos, depressa se tornou aparente que essas razões constituíam um segredo interno de organizações como os Cavaleiros Templários e os maçônicos. Mas por que é ainda considerado prudente manter este segredo tão zelosamente guardado?
O tradicional conceito cristão de João Batista é bastante claro. É opinião unânime que o seu batismo de Jesus marcou o princípio do ministério do último – de fato, dois dos Evangelhos canônicos iniciam-se com a pregação de João junto do rio Jordão. A imagem de João, criada pelos autores, é a de um evangelista ardente e ascético que emerge de uma existência de eremita do deserto para exortar o povo de Israel a arrepender-se dos seus pecados e a ser batizado. Desde o princípio, há alguma coisa tão inflexível e fria em João que provoca constrangimento no leitor moderno; na verdade, não há nada nos Evangelhos que justifique a extrema veneração que lhe é prestada por gerações de heréticos – certamente, não aquela que lhe é prestada por homens de suprema inteligência, como Leonardo da Vinci.
Os relatos dos Evangelhos, de fato, revelam pouco sobre Baptista. Referem que o batismo que celebrava era um sinal exterior de arrependimento e que muitos responderam à sua chamada e foram ritualmente imersos no Jordão – incluindo Jesus. Segundo Mateus, Marcos, Lucas e João, Baptista proclamava-se apenas como o precursor do anunciado Messias e que reconheceu ser Jesus essa figura. Tendo desempenhado o seu papel, desaparece quase inteiramente da história, embora haja indícios de que continuou a batizar durante algum tempo, até ser decapitado.
Segundo o Evangelho de Lucas, Jesus e João eram primos, e, entrelaçado com o relato da concepção e do nascimento do primeiro, faz uma descrição dos de João – que são semelhantes aos de Jesus, mas são notavelmente menos miraculosos. Os pais de João, o sacerdote Zacarias e Isabel, são idosos e não têm filhos; contudo, são informados pelo anjo Gabriel de que tinham sido escolhidos para gerar um filho, e, pouco depois, a estéril Isabel concebe. É a Isabel que Maria se dirige quando sente que vai ser mãe de Jesus. Isabel está no sexto mês de gravidez e, na presença de Maria, o seu filho ainda não nascido «saltou no seu ventre»; deste modo, ela sabe que o filho de Maria será o Messias. Isabel louva Maria, o que a inspira a proferir o «cântico» conhecido agora como o Magnificat.
Os Evangelhos relatam que, pouco depois de ter batizado Jesus, João foi preso e encarcerado por ordem de Herodes Ântipas. A razão apresentada é o fato de João ter condenado publicamente o recente casamento de Herodes com Herodíades, a anterior esposa do meio-irmão de Herodes, Filipe – um casamento que, dado que ela se divorciara de Filipe, era contra a lei judaica. Depois de um período, não especificado, na prisão, João foi executado. Segundo a conhecida história, Salomé, filha de um anterior casamento de Herodíades, dança para o padrasto, na festa de aniversário deste, que fica tão encantado que lhe promete tudo o que ela quiser, até «metade do seu reino». Incitada por Herodíades, Salomé pede a cabeça de João Batista numa bandeja. Não podendo voltar atrás com a sua palavra, Herodes acede com relutância – porque já admirava Batista – e manda decapitar João. Os seus discípulos são autorizados a levar o corpo para ser sepultado, embora seja pouco claro se este incluía, ou não, a cabeça.
A história tem tudo – um rei tirano, uma madrasta perversa, uma dançarina núbil e a morte horrível de um famoso homem santo – e, por conseguinte, constituiu material fértil para gerações de artistas, poetas, músicos e dramaturgos. Parece exercer um eterno fascínio, o que é talvez curioso para um episódio que consiste em poucos versículos dos Evangelhos. Duas adaptações, em particular, escandalizaram o público no princípio do século XX: a ópera de Richard Strauss, Salomé, retratava uma rapariga promíscua tentando seduzir João na prisão, e, ao ser tratada com desprezo, exigindo a sua cabeça como vingança, e, mais tarde, beijando, triunfante, os seus lábios sem vida. A peça de Oscar Wilde com o mesmo título teve apenas uma representação devido ao horror provocado pela sua pré-publicidade, que se centrava sobretudo no fato de o próprio Wilde desempenhar o papel do título. Contudo, o famoso cartaz de Aubrey Beardsly para a publicidade da peça mantém a descrição gráfica da interpretação da história bíblica, segundo Wilde, e, mais uma vez, centra-se na suposta luxúria necrofílica de Salomé.
Esta capitosa mistura de erotismo imaginado tem pouca ligação com o inexpressivo relato do Novo Testamento, cujo único objetivo parece ser demonstrar, em termos não equívocos, que João era o precursor de Jesus e seu subalterno espiritual – e também para desempenhar o profetizado papel de Elias reencarnado, que precederia o advento do Messias. Contudo, há outra fonte de informações sobre João, de fácil acesso: Antiguidades dos Judeus, livro de Josefo. Ao contrário da sua referência a Jesus, a autenticidade desta informação não é contestada porque se enquadra naturalmente na narrativa e é um relato impessoal que não elogia João e que, de modo significativo, difere dos relatos dos Evangelhos.
Josefo regista a pregação e o batismo de João e o fato de que a sua popularidade e influência sobre as massas alarmava Herodes Ântipas, que mandou prender e executar João, num «golpe preventivo». Josefo não dá pormenores sobre a sua prisão nem sobre as circunstâncias ou modo da sua execução e não fez qualquer referência às alegadas críticas ao casamento de Herodes. Salienta o enorme apoio popular a João e acrescenta que, pouco depois da sua execução, Herodes sofreu uma severa derrota numa batalha – que o povo tomou como sinal de castigo pelo seu crime contra o Batista.
Que podemos concluir sobre João a partir dos relatos dos Evangelhos e de Josefo? Para começar, a história do seu batismo de Jesus deve ser autêntica, porque a sua inclusão demonstra que ela era demasiado conhecida para ser completamente ignorada – já observamos a tendência dos evangelistas para, em caso contrário, marginalizar João sempre que possível. João atuava em Pereia, a leste do Jordão, um território que, assim como a Galileia, era governado por Herodes Ântipas; o Evangelho de João é mais específico e registra o nome de duas pequenas povoações onde João batizava: Betânia, na outra margem do Jordão (1:28) – uma aldeia junto da principal rota comercial – e Aenon, a norte do vale do Jordão (3:23). Os dois lugares ficavam bastante afastados. Assim parece que João viajou muito durante a sua missão.
A impressão de ascetismo eremítico alimentada pelas traduções inglesas dos Evangelhos pode, de fato, ser uma ideia errada. O grego original eremos, traduzido por «deserto» ou por «região desabitada», pode significar qualquer lugar de solidão. A mesma palavra, curiosamente, é usada acerca do lugar onde Jesus alimentou as cinco mil pessoas. Carl Kraeling, no seu estudo de João, que é considerado o texto acadêmico clássico, também demonstra que a dieta de «gafanhotos e mel», que dizem ter sido a preferida de João, não é prova de um estilo de vida especialmente ascético.
Também é provável que a missão de João não se confinasse unicamente aos judeus. No relato de Josefo, embora ele inicialmente apresente João a exortar «os judeus» à piedade e a uma vida de virtude, ele acrescenta que «outros se juntaram [isto é, à volta dele] (porque estavam extremamente interessados em ouvir as suas doutrinas)». Alguns eruditos pensam que estes «outros» apenas podiam ser não-judeus, e segundo o estudioso bíblico britânico Robert L. Webb:
[…] não há nada no conteúdo que sugira que eles não pudessem ter sido pagãos.
A localização do ministério de João sugere que ele podia ter tido contatos com os pagãos que percorriam as rotas comerciais do Oriente, assim como os pagãos que habitavam na região da Transjordânia. Outra ideia errada é a da idade de João, que se supõe ser aproximadamente a mesma de Jesus. Contudo, a implicação dos quatro Evangelhos é que João já pregava há vários anos, antes de batizar Jesus, e que era o mais velho dos dois, talvez por larga margem. (A história do nascimento de João, no Evangelho de Lucas, é, como veremos, grandemente imaginada e é improvável que tenha qualquer semelhança com os fatos.) Tal como a de Jesus, a mensagem de João era um ataque implícito ao culto do Templo de Jerusalém – não apenas à possível corrupção dos seus membros, mas a tudo o que ele representava. O seu apelo ao batismo pode ter exasperado as autoridades do templo, não apenas porque João o declarava superior aos seus ritos mas porque era gratuito.
Há, também, as anomalias das descrições da sua morte, especialmente quando comparadas com o relato de Josefo. Os respectivos motivos atribuídos a Herodes – receio da influência política de João (Josefo) e cólera pela sua crítica ao casamento do rei (os Evangelhos) – não se excluem mutuamente. Os planos maritais de Herodes tiveram, de fato, implicações políticas, mas não devido à pessoa com quem casara. O problema residia na pessoa de quem se divorciara para casar de novo. A sua primeira esposa era uma princesa do reino árabe de Nabateia e o notório insulto a esta família real precipitara uma guerra entre os dois reinos. A Nabateia confinava com o território da Pereia, governado por Herodes, onde João pregava. Portanto, a condenação do casamento, por parte de João, colocava-o ao lado do rei inimigo, Aretas, com a implícita ameaça de que, se a populaça concordasse com ele, as multidões podiam acabar por apoiar Aretas contra Antipas.
Talvez pareça uma hipótese acadêmica, mas é intrigante que os Evangelhos «atenuassem» o verdadeiro motivo de Herodes para mandar matar João. Se reconhecermos que eles são essencialmente obras de propaganda e que, quando obscurecem algum acontecimento, o fazem deliberadamente, a alternativa suscita perguntas sobre o motivo por que, neste caso, os evangelistas se deveriam preocupar.
Os relatos dos Evangelhos cometem um erro. Referem que João criticava Herodes Antipas porque este casara com a ex-mulher do seu meio-irmão Filipe. Mas, apesar de as circunstâncias do casamento serem historicamente exatas, o meio-irmão em questão era outro Herodes, não Filipe. Era este Herodes que era pai de Salomé. Apesar do fato de João – como Madalena – ter sido deliberadamente marginalizado pelos evangelistas, ainda se encontram indicações sobre a sua influência nos contemporâneos de Jesus. Num episódio, cuja implicação não parece atingir a maioria dos cristãos, os discípulos de Jesus dizem-lhe: «Senhor, ensina-nos a rezar como João ensinou os seus discípulos.» Este pedido pode, de fato, ser interpretado de duas maneiras: como «ensina-nos orações como João ensinou aos seus discípulos» ou «ensina-nos as mesmas orações que João ensinava… ». depois, lemos que Jesus lhes ensinou o que se tornou conhecido como a Oração do Senhor (Pai nosso, que estais no Céu, Santificado seja o Vosso nome…).
Já no século XIX, o grande egiptólogo Sir E. A. Wallis Budge registrou as origens das primeiras palavras da «Oração do Senhor»: uma antiga oração egípcia a Osíris-Amon começa assim, «Amon, Amon que estais no céu…» Claramente, esta oração precedeu em séculos João e Jesus, e o «Senhor» que é invocado não é Jeová nem o seu alegado filho, Jesus. Em qualquer caso, a «Oração do Senhor» não foi composta por Jesus.
Geralmente, supõe-se que João foi dominado pelo temor, mal viu Jesus, antes de o ter batizado. Ficamos com a impressão de que toda a sua missão, talvez toda a sua vida, estava ligada a este único acontecimento. Contudo, há, de fato, claras indicações de que João e Jesus, embora intimamente associados no princípio da carreira do último, eram grandes rivais. Este fato não passou despercebido a muitos dos mais respeitados comentadores bíblicos atuais. Como escreve Geza Vermes:
… O objetivo dos evangelistas era, sem dúvida, dar a impressão de amizade e estima mútua, mas as suas tentativas sugerem superficialidade, e um exame minucioso das evidências, notoriamente fragmentárias, indica que, pelo menos a nível dos respectivos discípulos, os sentimentos de rivalidade não estavam ausentes.
Vermes também descreve a insistência de Mateus e de Lucas na precedência de Jesus em relação a João como «rebuscada». Na verdade, para os leitores objetivos, há alguma coisa muito suspeita na repetida, e mesmo chocante, ênfase de João na superioridade «daquele que vem depois». Aqui, temos um João Batista que se humilha, de fato, perante Jesus. Contudo, como afirma Hugh Schonfield:
Segundo as fontes cristãs, sabemos que havia uma considerável seita judaica, rival dos seguidores de Jesus, que consideravam que João Batista era o verdadeiro Messias…
Schonfield também registra a «grande rivalidade» entre os respectivos adeptos, mas acrescenta que a influência de João sobre Jesus era demasiado conhecida: «Eles não podiam, por conseguinte, denegrir Batista, e tiveram de recorrer à imaginação para enfatizar o seu lugar secundário». (Sem uma compreensão desta rivalidade, não se pode entender o total significado dos verdadeiros papéis de João e de Jesus. Além das profundas implicações para a própria teologia cristã, a incapacidade de reconhecer a hostilidade Jesus/João torna extremamente insatisfatórias as novas teorias radicais. Por exemplo, como vimos, Ahmed Osman argumenta que Jesus foi inventado pelos discípulos de João para que se cumprisse a sua profecia sobre aquele que haveria de vir.
Do mesmo modo, no livro The Hiram Key, de Knight e Lomas, vai a ponto de defender que Jesus e João eram co-Messias, agindo em associação, uma teoria que exige que os dois pregadores fossem colegas próximos; mas nada podia estar mais longe da verdade. A conclusão mais lógica é que Jesus começou por ser um dos discípulos de João e afastou-se, depois, para formar o seu próprio grupo. (É muito provável que ele tivesse sido batizado por João, mas como um acólito, não como Filho de Deus!) É certo que os Evangelhos registram que Jesus recrutou os seus primeiros discípulos entre as hordas dos discípulos de João.
De fato, o famoso estudioso bíblico inglês C. H. Dodds traduz a frase do Evangelho de João «Aquele que virá depois de mim» (ho opiso mou erchomenos) como «aquele que me segue». Pela sua ambiguidade, podia ser o mesmo que em inglês e significar «discípulo». Na verdade, Dodds pensa que era esse o caso. A mais recente critica da Bíblia aponta para a noção de que João nunca fez a sua famosa declaração sobre a superioridade de Jesus, nem que tivesse sugerido que este fosse o Messias. Esta ideia é apoiada por vários aspectos.
Os Evangelhos (bastante ingenuamente) registram que João, quando estava preso, questionou a autoridade do messianismo de Jesus. Por implicação, ele duvidava se tivera razão na sua aprovação inicial de Jesus, mas este também podia ser outro exemplo do fato de os evangelistas terem de adaptar um episódio real de modo a servir os seus objetivos. Seria possível que João tivesse inequivocamente negado que Jesus era o Messias – talvez mesmo condená-lo?
Na perspectiva da mensagem cristã, as implicações de todo o episódio são – ou deveriam ser – profundamente perturbadoras. Por um lado, os cristãos aceitam que João fora divinamente inspirado a reconhecer Jesus como o Messias, mas a interrogação de João, na prisão, revela, no mínimo, que ele tinha dúvidas. E evidente que o seu encarceramento lhe dera tempo para pensar, ou talvez a inspiração divina o tivesse abandonado. Como veremos, futuros adeptos de João, que Paulo enfrentou durante o seu trabalho missionário em Éfeso e Corinto, desconheciam a alegada proclamação de João sobre uma figura maior que viria depois dele.
A prova mais convincente de que o Batista nunca proclamou Jesus como o Messias prometido é o fato de os próprios discípulos de Jesus nunca o reconhecerem como tal, pelo menos, no princípio do seu ministério. Ele era o seu líder e o seu mestre, mas nunca há qualquer sugestão de que eles o seguissem, a princípio, porque acreditavam que ele era o tão aguardado Messias judaico. A identidade de Jesus como Messias parece ter ocorrido aos discípulos, de forma gradual, à medida que o ministério de Jesus avançava. Contudo, Jesus começou a sua missão depois de ser batizado por João: então, se João realmente anunciara o messianismo de Jesus, por que razão mais ninguém nessa ocasião tinha conhecimento disso? (E os próprios Evangelhos deixam claro que as pessoas o seguiam, não porque ele era o Messias mas por qualquer outra razão.)
Depois, há outra consideração muito intrigante. Quando o movimento de Jesus começou a ter impacto, Herodes Antipas atemorizou-se e parecia pensar que Jesus era João ressuscitado ou reencarnado (Marcos 6:14):
E o rei Herodes ouviu falar dele (porque o nome de Jesus se tornara notório) e disse: João Baptista ressuscitou dos mortos e por isso estas maravilhas operam nele.
Estas palavras foram sempre uma fonte de perplexidade. Que queria Herodes dizer com elas – que Jesus era, de algum modo, João reencarnado? Mas não devia ser isso, porque João e Jesus viveram ao mesmo tempo. Mas, antes de analisar melhor esta história, consideremos algumas importantes implicações das palavras de Herodes. A primeira é que é evidente que ele não sabe que João profetizara que «um maior que ele» viria depois dele, caso contrário, teria tirado a conclusão óbvia de que Jesus era essa pessoa. Se a vinda do Messias fora uma parte notável da doutrina de João – como os Evangelhos afirmam – então Herodes devia ter tido conhecimento dela.
A segunda é que Herodes diz que «João… ressuscitou… e, por conseguinte, estas maravilhas operam nele [Jesus]». Isto implica que João gozara reputação própria de taumaturgo. Esta, contudo, é completamente negada nos Evangelhos – de fato, no Evangelho de João (10:41), ela é tão enfática que sugere um encobrimento. João Baptista tinha transformado água em vinho, tinha alimentado milhares de pessoas a partir de um punhado de alimentos, tinha curado os doentes – tinha até ressuscitado os mortos? Talvez tivesse. Mas uma coisa é certa: o Novo Testamento, sendo a propaganda de Jesus, não é lugar em que possamos esperar ler a descrição desses milagres.
Outra explicação possível para as palavras de Herodes, de outro modo confusas, acerca de João ter, de algum modo, renascido através de Jesus é, no mínimo, superficialmente incrível – tanto literal como metaforicamente. Mas lembremos que estamos a lidar com uma cultura e uma era tão diferentes das nossas que, em muitos aspectos, parecem ser um mundo completamente diferente. Karl Kraeling, em 1940, comentou que as palavras de Herodes apenas fazem sentido se forem interpretadas como reflexo das ideias ocultistas que eram correntes no mundo greco-romano do tempo de Jesus. Esta sugestão foi aproveitada e desenvolvida por Morton Smith, em Jesus the Magician, em 1978. Como já vimos, Smith concluiu que a resposta ao enigma da popularidade de Jesus residia nas suas exibições de magia egípcia.
Nessa época, acreditava-se que, para praticar magia, um feiticeiro devia ter poder sobre um demônio ou um espírito. De fato, esta alusão encontra-se numa passagem dos Evangelhos em que Jesus se refere a João ser acusado de «possuir um demônio». {Daemon ou daimon (grego δαίμων, transliteração daímon, tradução “divindade”, “espírito”), é um tipo de ser que em muito se assemelha aos gênios-djins da mitologia árabe. A palavra daimon se originou com os gregos na Antiguidade; no entanto, ao longo da História, surgiram diversas descrições para esses seres. O nome em latim é dæmon, que veio a dar o vocábulo em português demônio.} Isto não se refere, como poderia parecer, à possessão por um espírito mau, mas antes à afirmação de que João tinha poder sobre um espírito.
De acordo com a sugestão de Kraeling, neste contexto, as palavras de Herodes Antipas podiam ser interpretadas como uma referência a este conceito, porque não era apenas um demônio que podia ser assim «escravizado» mas também o espírito de um ser humano, especialmente um que tivesse sido assassinado. Um espírito, ou uma alma, assim escravizados cumpririam, segundo se supunha, as ordens do seu senhor. (Mais tarde, esta acusação foi feita a Simão, o Mago, que, segundo se dizia, tinha «escravizado» o espírito de um rapaz assassinado.) Kraeling escreve:
Os detratores de João aproveitaram a ocasião da sua morte para lançar a sugestão de que o seu espírito desencarnado servia Jesus como instrumento de realização de obras de magia negra, o que não era pequena concessão aos poderes de João.
Tendo em consideração esta explicação, Morton Smith interpreta assim as palavras de Herodes:
João Batista ressuscitou dos mortos [pela necromancia de Jesus; Jesus agora domina-o]. E, por conseguinte, [dado que Jesus-João os controlam] os poderes [inferiores] operam [as suas maravilhas] por ele [isto é, por sua ordem].
Em apoio desta ideia, Smith cita o texto mágico de um papiro que se encontra agora em Paris. A invocação é dirigida – talvez com algum significado – ao deus-sol Hélios:
Concede-me a autoridade sobre este espírito dum homem assassinado de cujo corpo possuo uma parte.
Especialmente interessantes, neste contexto, são os dons que a atuação mágica se destina a conferir ao mágico: a capacidade de curar e de predizer se uma pessoa doente irá sobreviver ou se morrerá e a promessa de que «serás adorado como um Deus…»
Um outro episódio serve para sublinhar o fato de que a popularidade de João era maior que a de Jesus. Este episódio ocorre próximo do fim do ministério deste, quando ele pregava às multidões no templo de Jerusalém. Os sumos-sacerdotes e os anciãos vêm enfrentá-lo publicamente e fazer-lhe perguntas astuciosas, na esperança de o fazer cair numa armadilha – perguntas que Jesus evita com a vivacidade de um político experiente. Quando lhe pedem que identifique a autoridade com que fala, Jesus responde com uma contrapergunta: «O batismo de João, donde vinha? Do céu ou do homem?» Esta resposta faz hesitar os seus antagonistas:
E eles discutiam entre si dizendo: «Se dissermos “do Céu”, ele dir-nos-á: “Então, por que não acreditais nele?”» Mas, se respondermos: “Dos Homens”, receamos as pessoas; porque todos consideram João como um profeta.
Confrontados com este dilema, recusaram responder. O que é significativo nesta troca de palavras é que Jesus usou, contra os sacerdotes, o medo que eles tinham da popularidade de João, e não da sua, junto das multidões. Como vimos, Josefo realçou o grau da influência de João e do seu apoio junto do povo: é evidente que Batista não era um vulgar pregador itinerante, mas um líder de grande carisma e poder que, por qualquer razão, dispunha de elevado número de partidários. De fato, segundo Josefo, judeus e pagãos «estavam extremamente interessados em escutar as suas doutrinas».
Um curioso episódio do Evangelho apócrifo, denominado Livro de Tiago ou o ProtoEvangelho, indica que João era importante por direito próprio. Admite-se que este Evangelho fosse compilado bastante tarde e que incluísse episódios da infância de Jesus que ninguém leva a sério – mas ele incorpora material de várias fontes e podia, assim, incluir, no mínimo, indicações de tradições famosas. E difícil compreender que alguém familiarizado com os Evangelhos canônicos as tivesse inventado. Neste episódio das infâncias de Jesus e de João – depois da conhecida história do nascimento de Jesus e da visita dos reis magos -, Herodes ordena a matança dos inocentes. Até aqui, tudo parece idêntico à versão que se encontra no Novo Testamento. Contudo, depressa ela toma um rumo completamente diferente.
Quando Maria tem conhecimento do massacre, a sua reação é apenas envolver o filho em faixas e colocá-lo numa manjedoura – presumivelmente, para o esconder dos soldados. Mas parece que é João o objeto da busca. Segundo o relato, Herodes envia os seus homens para interrogar o pai de João, Zacarias, e estes comunicam a Herodes que Zacarias não sabe onde se encontram a mulher e o filho: Herodes ficou irado e disse: «O filho dele será rei de Israel.» Nesta versão, é Isabel que foge do país, com João. Aqui, há claras indicações de uma «Sagrada Família» paralela, talvez mesmo rival.
Como vimos, João tinha um grande movimento popular que, como o de Jesus, era formado por um círculo de discípulos que o acompanhavam para toda a parte e por membros de um público geral que vinha ouvir as suas palavras. Também, como no caso de Jesus, depois da morte de João, os seus discípulos começaram a escrever relatos da sua vida e dos seus ensinamentos, no que foram efetivamente as escrituras de João.
Os eruditos reconhecem que existia esse corpo da «literatura de João» – outrora, porque já não existe agora. Possivelmente foi destruído ou conservado secreto pelos «heréticos». Parece, contudo, que ele devia ter incluído alguns elementos que não estavam de acordo com os relatos do Novo Testamento sobre João e Jesus – caso contrário, ele teria sido mantido no domínio público, sob qualquer forma.
O relato de Lucas sobre as concepções «associadas» de Jesus e de João é extremamente interessante. De uma análise da história, os eruditos concluíram, sem margem para dúvida, que esta é realmente uma combinação de duas histórias distintas, uma referindo a concepção de João e a outra a de Jesus, que «estão (segundo Kraeling) unidas por elementos que, basicamente, não têm relação com o fio de qualquer das séries». Por outras palavras, Lucas (ou a fonte que ele usou) tomou duas histórias distintas e tentou associá-las usando o artifício literário do encontro das duas futuras mães, Isabel e Maria. A conclusão lógica é que a história da infância de João era originariamente independente do Evangelho, e é provável que precedesse a história da Natividade de Jesus.
Isto comporta importantes implicações. A primeira é que as histórias referentes a João já existiam. A segunda é que a versão da natividade, segundo Lucas, foi especificamente evocada para prevalecer sobre a versão corrente acerca de João. Afinal, o «milagre» do nascimento de João consiste no fato de ter nascido de pais tão idosos, ao passo que Lucas apresenta Jesus como tendo nascido de uma virgem. E o único motivo que podia ter levado Lucas a apresentar esta versão da história é o fato de os discípulos de João já existirem como rivais dos de Jesus.
Esta teoria é apoiada por outro fato, que foi demonstrado pelos eruditos – mas que permanece desconhecido da maioria dos cristãos. O muito apreciado «cântico» de Maria, o Magnificat, era, de fato, o de Isabel, e referia-se ao seu filho. A linguagem associa a mulher a Hannah, uma figura do Antigo Testamento, que foi estéril até uma idade avançada, portanto, é mais adequado à situação de Isabel. De fato, alguns dos primeiros manuscritos do Novo Testamento referem que é o cântico de Isabel, e Irineu, padre da Igreja, também refere que foi Isabel, e não Maria, quem proferiu aquelas palavras.
Do mesmo modo, na cerimônia da circuncisão de João, seu pai, Zacarias, profere uma «profecia» ou hino, conhecido como o Benedictus, em louvor do seu filho recém-nascido. Obviamente que este hino devia ter feito parte da história original da natividade de João Baptista. Tanto o Magnificat como o Benedictus parecem ter sido «hinos» a João, que foram incorporados num «Evangelho de João» que foi, depois, adulterado por Lucas para o tornar mais aceitável aos discípulos de Jesus. Isto indica que as pessoas não só escreviam relatos da vida de João como o elogiavam em cânticos e em versos. Mas estas tradições sobre João ofereceram, de fato, aos futuros evangelistas o material que serviu de base aos seus relatos sobre Jesus? Como escreve Schonfield em Essene Odyssey:
Contatos com os discípulos de João Batista… deram a conhecer aos cristãos as histórias da natividade de João, nas quais ele figura como o Messias infante das tradições sacerdotais, nascido em Belém.
Além disso, os primitivos textos da Igreja, conhecidos como as Declarações Clementinas, também referem que alguns discípulos de João acreditavam que ele era o Messias. E o autor Geza Vermes pensa que alguns episódios dos Evangelhos e dos Atos indicam que os discípulos de João consideravam que ele era o Messias.
O conhecimento de que existiu, de fato, uma «literatura de João» apresenta uma solução para muitos problemas suscitados pelo Quarto Evangelho – aquele que foi atribuído ao discípulo João. Como vimos, há várias contradições internas neste Evangelho. Embora seja o único baseado no relato de uma testemunha ocular – uma pretensão apoiada pelos pormenores circunstanciais do próprio texto -, ele contém elementos notoriamente gnósticos que estão em contradição com os outros Evangelhos e com o tom objetivo do resto do próprio livro. Isto é particularmente notório no «Prólogo», relativamente a Deus e ao Verbo. O Evangelho de João é o mais clamorosamente anti-Batista dos quatro e, no entanto, é o único que refere, de forma explícita, que Jesus recrutou os primeiros discípulos entre os adeptos de João – incluindo o suposto autor e testemunha ocular, o próprio «discípulo -João evangelista – amado».
Mas estas contradições não invalidam, necessariamente, o Evangelho. É evidente que o autor compilou o texto a partir de várias fontes que ele entrelaçou e interpretou segundo as suas ideias pessoais sobre Jesus, reescrevendo o material quando considerou necessário. Quem quer que fosse o autor, o Evangelho parece conter o testemunho do «discípulo amado» em primeira-mão. Mas muitos dos mais influentes estudiosos do Novo Testamento pensam que o autor também usou alguns textos escritos pelos discípulos de Batista, os quais, de acordo com uma autoridade sobre estudos do Oriente Médio, Edwin Yamanchi, «O quarto evangelista… suprimiu o carácter mítico e cristianizou». O material referente ao Baptista é principalmente o prólogo e alguns dos chamados «discursos da revelação» entre Jesus e os discípulos. O notável estudioso da Bíblia, o alemão Rudolf Bultmann, afirmava que estes discursos eram:
[…] considerados os documentos originais dos discípulos de João Batista, que exaltaram João e lhe atribuíram o papel de redentor, enviado do mundo da Luz. Assim, uma parte considerável do Evangelho de João não começou por ser de origem cristã, mas resultou da transformação de uma tradição baptista.
É de notar que estes elementos do Evangelho de João são os mais gnósticos; e, por conseguinte, causaram a maioria dos problemas aos historiadores, no que diz respeito ao Evangelho. Tem-se partido do princípio de que, como estes elementos não estão em harmonia com a teologia dos outros Evangelhos e com o resto do Novo Testamento, este livro devia ter sido escrito muito mais tarde do que os outros. Contudo, reconhecer que eles provieram de uma fonte que não eram os discípulos de Jesus altera o quadro, e vários comentadores associaram o Quarto Evangelho a «uma fonte gnóstica pré-cristã» que foi adaptada pelo autor. Essa fonte parece ter sido João Batista e os seus discípulos, que pareciam ter sido gnósticos.
(Estas descobertas podem apresentar uma solução para a controvérsia sobre a data do Evangelho de João. Como vimos, a opinião geral, considerando o material gnóstico e não judaico deste Evangelho, é que ele foi escrito depois dos Evangelhos sinópticos. Contudo, se Jesus não era judeu, e como grande parte do material deriva dos discípulos de João Baptista – que, como veremos, era gnóstico – é inteiramente possível que este Evangelho seja contemporâneo dos outros ou mesmo anterior.)
Durante a sua vida, João teve um grande número de devotos partidários, e esse número continuou a aumentar depois da sua morte, de um modo que é curiosamente paralelo à expansão do cristianismo. Há provas de que o movimento de João se transformou numa Igreja por direito próprio e que não se confinava à Palestina. A. N. Wilson, em 1992, escreve no seu livro Jesus:
Se a religião de João Batista (e sabemos que ela existiu) se transformou no culto dominante do Mediterrâneo, mais do que a religião de Jesus, devíamos sentir que sabíamos mais do que sabemos sobre esta fascinante figura. O seu culto sobreviveu, pelo menos, até próximo de 60 d.C., como o autor é suficientemente sincero para revelar… Em Éfeso, consideravam que «O Caminho» (como era conhecida a religião destes primeiros crentes) significava seguir «o batismo de João». Se Paulo tivesse sido uma personalidade mais fraca… ou nunca tivesse escrito as suas epístolas, teria acontecido facilmente que o «batismo de João» tivesse sido a religião que captasse a imaginação do mundo antigo, mais do que o batismo de Cristo… O culto podia mesmo ter evoluído até ao ponto em que os atuais joaninos, ou batistas, teriam acreditado que… João era divino… Este acidente da história, no entanto, não se verificaria.
Assim, até o Novo Testamento descreve a existência da Igreja de João para além das fronteiras de Israel. Bamber Gascoigne escreve:
Um grupo de pessoas que Paulo conheceu deu-lhe uma intrigante visão do potencial crescimento desta religião – aquela que Paulo rapidamente abafou à nascença.
Esse grupo de pessoas pertencia, evidentemente, à Igreja de João. A sua própria existência como entidade distinta, após a morte de Jesus, demonstra que João nunca pregara sobre «um maior» que viria depois dele ou, mesmo que o tivesse feito, essa pessoa nunca podia ter sido Jesus. Parecia que, quando os joaninos encontraram Paulo, não faziam nenhuma ideia de tal profecia. O seu culto não era insignificante. Tinha sido descrito como «um movimento internacional» e estendia-se da Ásia Menor a Alexandria. Os Atos registam que a religião de João fora introduzida em Éfeso por um natural de Alexandria chamado Apolo – suspeitosamente, esta é a única referência a Alexandria em todo o Novo Testamento.
Assim, João Batista tinha um movimento próprio, distinto e forte, que sobreviveu como uma verdadeira Igreja. No entanto, tem-se partido do princípio – tal como nos comentários de A. N. Wilson, atrás citados – de que, desde muito cedo, ele foi absorvido pela Igreja cristã. Algumas das suas comunidades, como as que Paulo encontrou, foram suplantadas pela sua versão pessoal do movimento de Jesus. Mas há fortes evidências de que a Igreja de João, de fato, sobreviveu.
Este conjunto de evidências, contudo, enfatiza o papel de uma figura que, a princípio, podia parecer deslocada nesta história, alguém que tem sido injuriado em toda a história cristã como «o pai de todas as heresias» e adepto da magia negra da pior espécie. Alguém que até deu o seu nome a um pecado: o de tentar comprar o Espírito Santo: simonia. Estamos a referir-nos, evidentemente, a Simão, o Mago.
Ao contrário das outras duas figuras importantes que temos estado a discutir – Maria Madalena e João Batista -, Simão, o Mago, não era alguém que tivesse sido marginalizado pelos primeiros cronistas cristãos, mas foi-lhe permitido figurar, de forma proeminente, nos primeiros textos cristãos. Contudo, ele ainda é inequivocamente declarado mau, como o homem que tentou imitar Jesus e que, a dado momento, se infiltrou na Igreja embrionária para conhecer os seus segredos – até, evidentemente, ser denunciado pelos apóstolos. Por vezes conhecido como «o primeiro herético», Simão, o Mago, é considerado um caso perdido, sem redenção. Mas uma indicação quanto a este julgamento reside no fato de os primeiros padres da Igreja considerarem a palavra gnóstico como sinônimo de herético – e Simão era gnóstico (embora não, como eles pensavam, o fundador do Gnosticismo).
Simão faz apenas uma breve aparição no Novo Testamento, nos Atos dos Apóstolos (8:9- 24). Curiosamente, ele era um samaritano, que, segundo os Atos, usara artes mágicas para «enfeitiçar» o povo da Samaria. Quando o apóstolo Filipe ali pregava, Simão fica tão impressionado que é batizado por ele. Mas isto vem a revelar-se ser um estratagema astucioso para conseguir obter o poder do Espírito Santo. Oferece dinheiro para o comprar a Pedro e a João, e é severamente censurado. Então, Simão, receando pela sua alma, arrepende-se e pede-lhes que rezem por ele.
Contudo, os primeiros padres da Igreja conheciam melhor esta figura e os seus relatos contradizem a lição moral do livro dos Atos. Ele era natural da aldeia de Gitta e era famoso pelos seus dons de mágico (daqui, o seu título de Mago). Durante o reinado de Cláudio (41-54 d.C., isto é, nos dez anos imediatos à crucificação), foi para Roma, onde foi venerado como um deus, tendo-lhe sido mesmo erguida uma estátua. Os samaritanos já o tinham reconhecido como um deus.
Simão, o Mago, viajava com uma mulher de nome Helena, uma antiga prostituta da cidade Fenícia de Tiro, a quem ele chamou a Primeira Ideia (Ennoia), a Mãe de Tudo. Isto tem origem nas suas crenças gnósticas: ele ensinava que a «primeira ideia» de Deus – tal como a figura judaica de Chokmah/Sabedoria/Sophia, já discutida – fora feminina e que fora ela que criara os anjos e os semideuses criadores (sóis) , que são os deuses deste mundo. Eles criaram a Terra, segundo as suas instruções, mas revoltaram-se e aprisionaram-na na matéria, no mundo material. Ela ficou prisioneira numa série de corpos femininos (incluindo o de Helena de Troia), cada um deles sofrendo humilhações cada vez mais insuportáveis e terminando, eventualmente, como prostituta no porto marítimo de Tiro. Mas nem tudo estava perdido, porque Deus também encarnara, sob a forma (de um homem) de Simão, o Mago. Ele procurara-a e encontrara-a.
O conceito de um sistema cosmológico, que incluía uma série de mundos e planos superiores e inferiores, já nos é familiar. Embora os pormenores precisos variem, é a crença gnóstica comum que chegou até aos cátaros medievais e que está subjacente à cosmologia hermética que é a base do ocultismo ocidental, continuando na alquimia até ao hermetismo da Renascença. Há também paralelos exatos e surpreendentes com outros sistemas que já discutimos. O mais importante é a semelhança com o texto gnóstico copta Pistis Sophia, no qual é (Cristo em) Jesus quem procura a prisioneira Sophia, uma figura explicitamente associada, nesse texto, a Maria Madalena. (Simão também chama a Helena a sua «ovelha perdida».)
A personificação da Sabedoria como uma mulher – e, além disso, uma prostituta – é algo com que já estamos familiarizados nesta investigação e que, ao longo dela, se estende como um fio. No caso de Simão, esta personificação era literal, na pessoa de Helena. Como escreve Hugh Schonfield:
[…] os simonitas veneravam Helena como Atena (deusa da Sabedoria), a qual, por sua vez, era identificada com ÍSIS, no Egito.
Schonfield também associa Helena com Sophia e com Astarte. Segundo Karl Luckert, o conceito de Simão acerca de Ennoia encarnada em Helena remonta a ÍSIS. Geoffrey Ashe concorda, acrescentando: «[Helena] inicia o caminho de regresso à glória como Kiria ou rainha celestial”.
Outra fonte apócrifa, datando aproximadamente de 185, descreve Helena como sendo «negra como uma etíope» e apresenta-a dançando acorrentada, acrescentando: «Todo o Poder de Deus e de Simão reside nesta mulher que dança».
Ireneu registra que os sacerdotes-iniciados de Simão «viviam imoralmente», mas, lamentavelmente, não acrescenta mais nada. Mas é óbvio que eles celebravam ritos sexuais, como revela Epifânio na sua obra monumental Contra a Heresia:
E ele sentia prazer nos mistérios da obscenidade e… no derramamento dos corpos, emissionum virorum, feminarum menstruorum e que se reuniam para celebrar os mistérios da forma mais obscena.
(G. R. S. Mead, um autêntico vitoriano, deixou estas frases latinas na sua tímida tradução, mas parece que a seita de Simão praticava magia sexual, envolvendo sémen e sangue menstrual.)
É óbvio que os padres da Igreja tinham grande receio de Simão, o Mago, e da sua influência, que parecem ter sido uma séria ameaça à Igreja primitiva, o que pode parecer estranho – até se compreender quanto Simão tinha, de fato, em comum com Jesus. Os sacerdotes esforçaram-se por explicar que, embora Simão e Jesus dissessem e fizessem quase as mesmas coisas, incluindo milagres, a fonte dos respectivos poderes era diferente. Simão atuava através de feitiçaria pecaminosa, enquanto Jesus agia pelo poder do Espírito Santo. Com efeito, Simão era uma imitação satânica de Jesus. Assim, encontramos, por exemplo, Hipólito, que afirma, sem rodeios. a respeito de Simão: «Ele não era Cristo.” Epifânio escreve, de forma mais reveladora:
Desde o tempo de Cristo até hoje, a primeira heresia foi a de Simão, Mago, e, embora ela não tivesse correta e distintamente nome cristã causava grandes danos devido à corrupção que provocava entre cristãos.
Além disso, segundo Hipólito:
[…1 ao resgatar a liberdade de Helena, ele oferecia, assim, a salvação aos homens pelo conhecimento que lhe era próprio.
Outro relato atribui a Simão a capacidade de operar milagres, incluindo a transformação de pedras em pão. (Isto pode explicar a Tentação de Jesus, quando lhe é oferecido o poder para fazer o mesmo, mas ele recusa-o. Contudo, sabemos que, mais tarde, ele deu de comer a cinco mil pessoas, a partir de cinco pães e dois peixes, o que é quase a mesma coisa.) Jerônimo cita uma das obras de Simão:
Eu sou a Palavra de Deus, eu sou o glorioso, eu sou o Paracleto, o Todo-Poderoso. Eu sou o todo de Deus.
Por outras palavras, Simão proclamava-se divino e prometia a salvação aos seus discípulos. Nos Atos Apócrifos de Pedro e Paulo, Simão, o Mago, e Pedro entram em contenda para ressuscitar um cadáver. Simão, no entanto, apenas consegue reanimar a cabeça, enquanto Pedro tem um êxito completo. Há muitas histórias apócrifas de batalhas de magia entre Simão, o Mago, e Simão Pedro, terminando todas com o necessário triunfo cristão. Mas o que elas revelam, no entanto, é que o primeiro era tão influente que as histórias tinham de ser imaginadas para contrariar o seu poder sobre as massas.
O Mago não era um mero feiticeiro itinerante, mas um filósofo que registou as suas idéias. É inútil dizer que os seus livros originais se perderam, mas existem alargadas citações deles nas obras dos padres da Igreja, onde foram incluídas para serem redondamente condenadas. Mas estes fragmentos revelam o gnosticismo de Simão e enfatizam a existência de duas forças criadoras opostas mas complementares – uma masculina e outra feminina. Por exemplo, esta citação da sua Grande Revelação:
Do universal evo há duas extensões… uma manifesta-se do alto, que é o Grande Poder, a Mente Universal que ordena todas as coisas, masculina, e a outra de baixo, a Grande Ideia, feminina, que cria todas as coisas. Por isso, juntando-se, elas unem-se e criam o Espaço Central… nele está o Pai… É ele que sempre existiu, existe e existirá, um poder masculino-feminino do preexistente Poder Ilimitado…
Aqui, encontramos ecos do hermafrodita alquímico, do andrógino simbólico que tanto fascinariam Leonardo. Mas de onde vieram estas ideias de Simão, o Mago? Karl Luchert faz remontar as «raízes ideológicas» das doutrinas de Simão às religiões do antigo Egito e parece que elas, de fato, refletem, e talvez mesmo continuem, de forma adaptada, aqueles cultos. Embora, como vimos, as escolas de ÍSIS/Osíris enfatizem a natureza oposta e igual das divindades femininas/masculinas, supõe-se que esta natureza esteja, por vezes, combinada no caráter e corpo de ÍSIS. Ela é retratada, ocasionalmente, usando uma barba, e julga-se que ela teria afirmado: «Embora seja uma mulher, transformei-me num homem… ».
Simão, o Mago, e Jesus eram, no que dizia respeito à Igreja primitiva, perigosamente semelhantes nas suas doutrinas, razão porque Simão foi acusado de tentar usurpar o conhecimento dos cristãos. Havia um reconhecimento tácito de que as suas doutrinas eram, de fato, compatíveis com as de Jesus – até de que fazia parte do mesmo movimento. As implicações deste reconhecimento são perturbadoras. Os ritos sexuais de Simão e de Helena, por exemplo, também eram praticados por Jesus e Maria Madalena? Segundo Epifânio, os gnósticos tinham um livro, chamado As Grandes Perguntas de Maria, que se supõe continham os segredos internos do movimento de Jesus, que revestiam a forma de cerimônias obscenas.
Podia ser tentador ignorar estes rumores como maledicências grosseiras – mas, como já vimos, há evidências de que Madalena era uma iniciadora sexual da tradição da prostituta do Templo, cuja função era conferir aos homens os dons de horasis: iluminação espiritual através do ato sexual. John Romer, no seu livro Testament, explica o paralelo:
Helena, a prostituta, como os cristãos lhe chamavam, era a Maria Madalena de Simão, o Mago.
Mas há também outra acusação: a das prováveis origens egípcias de ambos. Karl Luckert comenta Simão:
Como «pai de todas as heresias», ele deve ser estudado agora, não só como adversário mas como notório rival de Cristo, na primitiva igreja cristã – possivelmente até como potencial aliado…Do fato da herança egípcia de ambos pode ter derivado a força da ameaça de Simão, o Mago. O perigo incluía a possibilidade de ele ser confundido com a própria figura de Jesus …
E Luckert encontra um estreito paralelo no que ele considera ser a missão dos dois homens. Ele reconhece a aparente dicotomia da pregação de Jesus como uma mensagem essencialmente egípcia destinada a um público judaico, mas admite a estreita ligação entre a original teologia hebraica e a do Egito. A respeito de Simão, o Mago, Luckert escreve:
[ele]… considerou que era a sua missão corrigir o que… devia ter falhado; nomeadamente, o afastamento de toda a dimensão feminina de Tefnut-Mahet-Nut-ÍSIS da divindade masculina.
É este, evidentemente, o motivo que tínhamos colocado como hipótese para a missão de Jesus na Judeia e que lhe é atribuído no Levitikon. Luckert conclui que Jesus triunfou de Simão, o Mago, apenas por ter recorrido ao extremo de incluir a sua própria morte no contexto. A ênfase muda radicalmente, no entanto, se tomarmos em consideração a ideia de que a crucificação pode não ter terminado na morte de Jesus. Além destes paralelos com Jesus, há um outro dado inquietante – e, para nós, revelador acerca de Simão, o Mago: ele era discípulo de João Batista. E não só, ele foi, de fato, nomeado por João Batista como seu sucessor (embora, por razões que apresentaremos, não fosse uma sucessão direta).
As implicações desta nomeação são espantosas. Porque Simão fora sempre conhecido como feiticeiro e mágico sexual, e não apenas nos anos imediatos à morte de João. Não é o caso de um discípulo que ultrapassa as marcas logo que o puritano guru é removido da cena. João deve ter conhecido e aprovado a doutrina de Simão. E, se Simão era membro do círculo interno de João, ele teria aprendido as suas artes mágicas com Batista – como teriam outros discípulos, na mesma situação. Como, por exemplo, Jesus… A citação seguinte é extraída das Aprovações Clementinas do século III:
Foi em Alexandria que Simão aperfeiçoou os seus estudos de magia, sendo partidário de João, um hemerobatista [«Batista da Luz» – pouco se conhece sobre esta designação], através do qual ele veio a conhecer as doutrinas religiosas. João era o precursor de Jesus… De todos os discípulos de João, Simão era o favorito, mas, quando o seu mestre morreu, ele encontrava-se em Alexandria e, portanto, Dositeus, um co-discípulo, foi escolhido para chefe do movimento.
Este relato entra em razões numerológicas extremamente convolutas para explicar o motivo por que João tinha trinta discípulos – presumivelmente, apenas no círculo interno – embora fossem, realmente, vinte e nove e meio, porque um deles era uma mulher, que não contava como pessoa inteira. Chamava-se Helena… Isto é interessante porque implica, no contexto, que esta era a Helena de Simão, o Mago, e que ela também fora discípula de João. Tudo isto deixa a sensação, extremamente incômoda, de que Batista, que sempre foi apresentado como um puritano ascético e monástico, era, de fato, outra coisa muito diferente.
Quando Simão regressou de Alexandria, Dositeus entregou-lhe a liderança da Igreja de João, embora não pacificamente. Mais uma vez, constatamos que a cidade egípcia de Alexandria é importante nesta história, talvez porque foi ali que os protagonistas principais aprenderam a sua magia. Dositeus tinha também uma seita com o seu nome, a qual conseguiu sobreviver até ao século VI. Orígens registra:
[…] um certo Dositeus dos samaritanos apresentou-se e disse que era o Cristo das profecias: a partir desse dia até hoje, há dositeístas que escrevem sobre Dositeus e contam histórias sobre ele, como se ele não tivesse sofrido a morte, mas ainda estivesse vivo.
É possível encontrar continuadores de Simão até ao século III. O seu sucessor imediato foi um certo Menander. Os dositeístas veneravam João Batista «como seu legítimo mestre … dos últimos Dias». Mas as seitas de Simão e de Dositeus foram eventualmente erradicadas pela Igreja.
A implicação evidente é que João Batista não era o pregador ocasional das multidões: ele era o chefe de uma organização – que tinha a sede em Alexandria. Como vimos, os primeiros prosélitos de Jesus ficaram surpreendidos ao descobrir uma «Igreja de João» em Éfeso, e que fora lá instituída por Apolo de Alexandria. Foi esta metrópole que também serviu de base a Simão, o Mago – sucessor oficial de João e conhecido rival de Jesus – e que era também samaritano. Curiosamente, os cristãos veneravam o túmulo de Batista em Samaria até ser destruído, no século IV, por ordem do imperador Juliano, o que, no mínimo, sugere uma primitiva tradição que associava João Batista àquela terra. (Talvez a parábola do bom samaritano fosse uma tentativa sutil de apaziguamento dos discípulos de João ou de Simão, o Mago.)
Contudo, não há nenhuma sugestão de que Simão, o Mago, fosse judeu, nem mesmo natural da Samaria. Até nos ataques mais violentos que lhe fizeram, os padres da Igreja nunca o atacaram por ser judeu – e, dada a violência com que os judeus, ao longo dos séculos, têm sido atacados por terem assassinado o filho de Deus, isto é particularmente significativo. Como vimos, João pregava aos não judeus e atacava o culto do Templo de Jerusalém – o verdadeiro alicerce da religião judaica. Ele tinha, com todas as probabilidades, fortes laços com Alexandria – mas, o que é mais significativo, o seu sucessor era também um pagão. Tudo isto implica que o próprio João não era judeu e que estava familiarizado com a cultura egípcia.
É particularmente estranho que os primeiros padres da Igreja, como Ireneu, fizessem remontar as origens das seitas «heréticas» precisamente a João Batista. Afinal, segundo os Evangelhos, ele inventou o batismo e, virtualmente, viveu para preparar o caminho de Jesus. Mas eles conheciam a verdade sobre João Batista? Compreenderam que ele não era um precursor, mas um grande rival, que era venerado, por direito próprio, como Messias? Reconheceram o fato espantoso de que João, afinal, não era um cristão?
Com efeito, os evangelistas vingaram-se de João. Reescreveram-no e, no processo, subjugaram-no e realinharam-no, para que o antigo rival – talvez mesmo inimigo – de Jesus fosse visto ajoelhado perante ele, temeroso da sua divindade. Suprimiram os verdadeiros motivos, palavras e atos de João e substituíram-nos por aqueles que melhor se adequassem à imagem que, deliberadamente, criaram de Jesus e do seu movimento.
Como peça de propaganda, teve um sucesso espantoso, embora este talvez se deva, em parte, à antiga tendência da Igreja para responder a quaisquer questões «heréticas» com a tortura e a fogueira. A história cristã, em que hoje acreditamos, é o resultado de um anterior reino de terror, tanto como da propaganda dos Evangelhos. Mas, muito afastados da influência sinistra da Igreja oficial, alguns dos fiéis discípulos de João mantinham viva a sua memória de «verdadeiro Messias.» E eles ainda existem hoje.
“Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem”. – Mateus 7:13,14
“Quem anda com os sábios será sábio; mas o companheiro dos tolos sofre MUITA aflição”– Provérbios 13, 20
“Não vos enganeis. As más companhias corrompem os bons costumes” – 1 Coríntios 15, 33
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