Oscar Luiz Brisolara
Sentado sobre um tramado de
antigas achas que haviam ficado por queimar para todo sempre, o velho, preto como os
carvões que queimara vida afora, roçava uma mão áspera contra a outra, mais
áspera ainda. O que seria da vida? Não tinha ninguém.
A preta Maria, com quem dividira
mais de cinquenta anos de cama e cabo de machado, mudara-se, de há anos, para o
cerro dos ausentes, sobre cuja lápide grotesca mandara gravar o nome dela e as datas de nascimento e morte.
Os cinco filhos, um a um, haviam
sumido no mundo. No princípio, vinham alguns domingos por ano. As visitas foram
raleando. Agora, já fazia seis anos, ninguém quis mais saber dele... Tinham lá seus compromissos. Compreendia. Amava-os assim como eram: bons. Remoeu
ideias... costurou saudades... cozeu umas verduras com ovo e, enquanto comia e
olhava o rancho descomposto... quase engolido pelas capoeiras que subiam por
tudo... crescia até cipó enredando as plantas e o seu futuro... relembrou distantes tempos...
Buscou no passado um sentido para
vida. Sim, o calo da direita era mais duro... quando o braço forte arremessava
a lâmina afiada do ferro do machado contra o tronco rijo, o cabo da ferramenta
conduzia de volta as vibrações da resistência que o cepo impunha ao
instrumento. Desse modo, o cabo, também de madeira rija, vibrava no interior da
mão.
Somente quem sentiu a dor dessas
vibrações na pele jovem pode entender como se formam esses calos. Quando ainda
muito jovem, a camada interna que reveste a mão é mais delicada. Nos moços do
campo, muito menos do que nos jovens de livros e canetas.
E o cabo do machado primeiro
forma bolhas de água, que por força do atrito se rompem. Depois, surgem feridas
que sangram e, por fim, toda a mão se alinha, pouco a pouco, como a madeira que corta e
forma uma crosta dura e uniforme, rachada aqui e ali em função das dobras do
tecido. E é para sempre… Com a sola do pé acontece o mesmo… Uma espécie de
camada quase óssea protege o pé dos pequenos espinhos, dos seixos dos caminhos
muitos de uma vida descalça...
O velho Augusto enfrenta tudo,
desde o frio dos invernos cortantes, passando pelo correr das cordas rudes ao
puxar dos bois, até às vibrações dos machados, constantes e rítmicas, regidas
pelo ritmo das pancadas, repetidas aos milhares pelos anos sem conta, e pelo
ritmo cortante da existência que enrijece as mãos e as almas.
Desde o raiar do dia, para colher
o tempo de surpresa e produzir mais, sempre estivera ao cabo do machado. Seu
pai fora carvoeiro, o avô, escravo. Não lia letras. Passara os anos todos,
quase noventa, derrubando árvores e queimando carvão. Era preciso ciência. Caso
não soubesse, ou ficava duro e imprestável, ou virava tudo cinza e lá se iam dias
ou semanas de trabalho duro.
Cortava os troncos. Separava os
galhos. Tronco grosso tinha de se rachar. Depois, empilhava tudo. Uns dois
metros de altura, três de eixo. A seguir, barreava. Uma pá de corte. Solo úmido.
Tudo muito bem coberto. Um buraquinho para o fogo, bem embaixo. Um respiro por
cima. Controlado. Apenas uma fumacinha. Três dias queimando, lentamente.
Quando esfriava, tirava tudo.
Quebrava os nacos e ensacava. O pai botava na carroça e ia para a cidade,
vender. Depois de um dia inteiro, casa por casa, voltava na alta noite. Os
bois, ele, cansados. Um dinheirinho para a comida e tudo de novo. Ano afora,
vida adentro, vida afora. Sempre, do mesmo modo, eternamente. Até que o destino
chegasse e acabasse com tudo.
Com tudo não, que tudo mesmo não
termina. Mas corre o dia, correm os anos, corre a vida e corre a história. A
gente correndo atrás dele. Primeiro para ser homem, depois para continuar e,
por fim, para não morrer.
Tinha carvão por tudo. Fibras de
madeira carbonizada penetradas nas mãos, no corpo, nos pulmões. O médico havia
dito que o pulmão do velho era mais preto que seu rosto. Sempre a fumaça,
ardendo nos olhos, queimando o nariz. Depois as brasas. Mãos sempre queimadas. Ardendo.
Pés esburacados, quase não doíam mais.
O carvão, que lhe dera aquela
vida, ia-se-lhe até mesmo pela alma. Sem queixas nem lamúrios, olhava para as
próprias mãos. Cumprira com dignidade tudo o que a existência lhe propusera.
Sem nada, sem culpa nem mágoa, nem descrença aguardava o fim próximo de tudo...
Tudo o que enxergava era preto, a
não ser o vermelho do braseiro, que apagado também preteava. Mas quem disse que
preto é ruim ou feio? Ao preto carvão, tudo dedicara. Também dele tudo
recebera. Será que Deus é preto? Quem sabe? Só branco que acha que Deus é
branco. Eu acho que é pretinho como eu e a finada Maria. Um dia vou me rir
tanto.
E agora, o doutor lhe afirmava
que seu destino era negro. Câncer nos pulmões. Com a chaleira preta, servia um
amargo chimarrão e o verde da água quentinha dava-lhe um novo alento. Que para
pobre nunca se apaga o alento. Tragédia é para rico...