quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

A ALMA DAS COISAS


Oscar Luiz Brisolara
Quanto mais os anos vão-se embrenhando nas fímbrias do passado, mais me é vedado o entendimento das coisas mais simples. Pareço retornar à infância. Agora é minha tímida bengala. Aliás, são duas. Isso torna mais confusa nossa convivência.
Pois a mais velha veio de uma casa de antiguidades. Eu sorria para ela. Ela, meio tímida, tentava disfarçar o constrangimento. Meu pé direito padecia de uma lesão plantar causada pelo diabetes.
Passaram-se os dias. Ela sempre ao meu lado. Ao lado esquerdo de meu leito, que foi sempre o meu lado na cama. Chegava até mesmo a fazer um estranho curvamento para eu apanhá-la melhor. Retardava a velocidade da queda para eu poder agarrá-la, quando despencava ao movimento brusco meu. Ao levantar-me na noite para alguma necessidade, não a agarrava para respeitar suas horas de repouso. Mais de uma vez surpreendi-a curvando o manipulo para ver se eu vinha bem. Uma noite, quando tropecei em um sapato fora do lugar, sem querer corri sobre ela, ouvi seu coração ofegante.
Depois de alguns anos de convivência, ela estava já frouxa, enfeiara, dizia eu para mim. Sem avisar ninguém, comprei outra pelo novo sistema internacional eletrônico de comércio. Ah, nem olhei para ela na manhã seguinte. Não a levara para o dormitório. Ficara ao lado da escrivaninha.
Quando viu a outra, deve ter sentido uma depressão profunda. O fato é que não dei importância alguma a suas reações.
A nova entrou para a função em pleno direito. Passaram-se os tempos. Nas viagens internacionais era ela quem ia comigo. Cada ato de dia para dia era a nova companheira. Pois eu envelhecia mais e mais. Começo a perceber certas atitudes suspeitas. De manhã, ao levantar, ela não estava lá. Queria os préstimos dela para minhas compras na fruteira, nada… Precisava descer a escadaria… onde ela se metera? Cheguei a pensar em queimá-la na lareira no próximo inverno…
Parecia rir de mim junto com os móveis… as cadeiras riam-se quando eu caía, sentando-me fora do assento… O próprio colchão parecia reclamar do meu maldormir.
Um dia… olho ao redor… estou na sala… sem bengalas… roupas de festa… perfumes… eu deitado… sou o centro… tanta gente… vestes selecionadas… ouço de longe….