terça-feira, 8 de novembro de 2016

EU E MIM - MIM É QUANDO O EU OLHA PARA SI MESMO, ELE VÊ MIM - CANÇÃO DE RITA LEE

Rita Lee e Roberto De Carvalho foram muito felizes em sua expressão quando compuseram a letra da canção EU E MIM. Demonstram um profundo entendimento da diferença entre EU e MIM, especialmente no aspecto psicológico. Quando abordam esse tema, os franceses falam em MOI, e os ingleses em SELF.


TEXTO LITERÁRIO QUE DESVELA A DIFERENÇA ENTRE EU E MIM
Meu avô havia plantado uma colina toda de trigo. Era outubro. Os grãos maduros punham tudo de doirado. Na tarde grande, o sol já havia perdido o prumo e pendia para o horizonte. Era então que o reflexo dos raios oblíquos feria a retina do transeunte, unificando o campo e o céu.
Eu teria meus nove anos e subia a encosta, cismando sozinho, como seguidamente o fazia. Atingi as margens do regato que coleava entre o campo e a messe. Curiosamente, percebi-me no reflexo de uma pequena lagoa que se formava no remanso de duas pregas da encosta.
Deixei o corpo cair sentado sobre uma pedra meio encoberta de musgos macios que me permitia banhar os pés descalços nas águas refrescantes. O espelho tremente da água fluindo permitiu que me visse integrado à paisagem como se de eu para mim houvesse uma dualidade surpreendente.
Era eu, olhando para mim, que não era mais eu. Era um tu que era eu em mim transfigurado. E nessa dualidade do sol, da água e do campo, com fogo na alma e na mente, comecei por ver-me sem me afastar da corrente que, de quando em quando, puxava minha alma em sonho para o real do campo e da vida.
Eu, Helmuth, os cabelos loiros como o loiro do trigo, mais loiros ainda pelo loiro doirado dos raios solares refletidos em mim, no trigo e na água do remanso fazíamos sentido apenas porque um eu, na racionalidade do espírito, assim nos via. Esse eu, era eu mesmo.
Eu, pelo loiro de meus cabelos,... pela história do meu avô colada à minha imagem, era o alemãozinho, segundo me viam os moradores do local e os colegas de aula. Mas, aos olhos dos amigos alemães de meu avô que nos visitavam,... era o brasileirinho. Cheguei mesmo a surpreendê-los, examinado disfarçadamente meus traços. Encontravam marcas da minha avó. Traços de negro, diziam. Comparavam o nariz dela com certas curvaturas do meu.
Eu ainda nada sabia dessas coisas de racismo. Arianismo. Nada. Era apenas um elemento da natureza daquelas paragens tranquilas de bosques, riachos e campos que olhava para mim mesmo e concebia-me no flagrante do conjunto inseparável do que é bom e perfeito porque simples e irremediavelmente é assim.
Desse modo, surpreendido de mim comigo mesmo, comecei minha longa caminhada para entender por que era alemão e brasileiro... não era alemão... nem brasileiro... para uns era uma coisa e para outros outra... entre brasileiros: alemão... entre alemães: brasileiro... até negro... Porque o sol, o riacho, o campo eram bons e perfeitos, acolhiam-me sem interrogações nem preconceitos, como ao trigo que será pó e pão e nada mais.

(Brisolara, Oscar Luiz. Dos Segredos de Eva Braun: revelações inusitadas do sul do Brasil. Rio Grande: Casaletras, 2015.

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