quarta-feira, 30 de abril de 2014

STRIKE MOVEMENTS IN THE ANCIENT ROME - MOVIMENTOS PAREDISTAS NA ANTIGA ROMA

STRIKE MOVEMENTS IN THE ANCIENT ROME - GREVES NA ANTIGA ROMA

GREVES  NA ANTIGA ROMA
Strike Movements in the Ancient Rome
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
* Este artigo foi publicado originalmente na REVISTA DA UCPEL - Universidade Católica de Pelotas, em 02 de dezembro de 1993 - EDUCAT - ISSN 0103-8788


RESUMO: Já na antiga Roma, os movimentos paredistas foram empregados como forma de pressão das massas trabalhadoras sobre a classe patronal, para obter vantagens nas relações de trabalho. Em 494 a. C., a plebe romana aglomera-se no monte Sacro, decidida a não lutar – nem retornar ao trabalho sem que lhe fossem atendidas às suas reivindicações de participação no poder e de distribuição inicial das funções na administração pública, através de tributos da plebe, bem como viu atendido ao seu pedido de redução da dívida agrária. Em 454 a. C., a plebe reivindica um código escrito. Após muitas manobras e lutas, surgiu a Lei das Doze Tábuas. Sua conquista maior foi o direito de participação do cargo de máximo poder da República: o consulado. As elites, porém, desforraram-se de tantas derrotas, por um lado, remetendo colonos para o solo conquistado, amainando, assim, o anseio interno pela posse da terra; por outro, corrompendo, pelo dinheiro e pelo luxo, muitos dos escolhidos dentre a plebe para os cargos públicos.
Palavras-chave: greve, movimentos paredistas, classes sociais, Roma antiga.

ABSTRACT: As to getting advantages in the work relationship, the strike movements in the ancient Rome were a form of pressure the working-class people had over the employer class. As a result of such demands, after struggles and maneuvers, the Law of the Twelve Tables came into effect. But the greatest conquest was the share of power in the Republic: the consulate. The ruling elite, however, took revenge both sending people to new conquered places, diminishing the claim for the occupancy of land, and corrupting through money and luxury, many of the elected amongst the mob for the public office.
Kay words: strike, roman strike movements, social classes, roman social classes.

MOVIMENTOS PAREDISTAS NA ANTIGA ROMA

Este artigo visa a abordar a história do paredismo (greves) na República Romana, nos séculos que precederam a era cristã. Sua abordagem, hoje, justifica-se uma vez que, quando nos referimos a paredismo como forma de pressão das massas trabalhadoras, para diminuir a opressão da classe patronal sobre o operariado, ou para obter vantagens nas relações de trabalho, de modo geral, aludimos aos movimentos e greves bastante recentes, mormente os que se iniciam com europeus e norte-americanos da primeira metade do século XX.
Acontece, porém, que já na incipiente República Romana, essa forma de atuação reivindicatória era empregada, logicamente que diferenciada da atual, porque condicionada pela especificidade dos meios e modos de produção dessa época e pelas suas relações características de trabalho.
Para a melhor compreensão dos fatos, faz-se necessária uma abordagem inicial da estrutura social e da divisão do trabalho e, mais especificamente, da constituição das classes sociais em Roma, nesse período, que vai do século VI a. C. à segunda metade do século I a. C.
Sem nos atermos às origens e causas da criação do sistema republicano em Roma, nos últimos séculos que precederam o surgimento do cristianismo, abordaremos, mesmo que sucintamente, o processo sucessório na monarquia que antecede a República Romana primitiva.
Como a sucessão geralmente não se dava por hereditariedade, embora pudesse ser feita dessa forma, sendo, porém, fundamental a confirmação por parte do Senado Romano, no século VII a. C., chegaram ao poder supremo reis de origem estrangeira, mais precisamente de origem etrusca.
Eutrópio, em sua História Romana, afirma, por ocasião da sucessão de Rômulo: “O Império Romano tem sua origem em Rômulo, que, filho de uma virgem vestal e Marte, foi gerado num só parto com seu irmão Remo. Ele, como militasse entre pastores, com dezoito anos, fundou uma pequena cidade no monte Palatino. Fundada a cidade, que chamou Roma, de seu nome, fez mais ou menos isto: recebeu na cidade uma multidão de vizinhos; elegeu cem dentre os mais velhos aos quais chamou Senadores[1] por causa da sua velhice, com o conselho dos quais fizesse todas as coisas [...] e como se levantasse uma tempestade subitamente e ele não fosse mais encontrado, acreditou-se ter passado aos deuses, no trigésimo sétimo ano de seu reinado, tendo em seguida sido deificado. Depois, os senadores governaram Roma por cinco dias cada um e, reinando estes, completou-se um ano. Depois foi nomeado rei Numa Pompílio, que não fez nenhuma guerra em verdade, mas foi útil à cidade não menos do que Rômulo, pois constituiu tanto leis como costumes para os Romanos, que, pelo hábito das guerras, já eram considerados ladrões e semibárbaros.”(1) 
Pela citação acima, percebe-se a forma de sucessão empregada nessa monarquia, pois Numa Pompílio não era descendente de Rômulo, tendo sido constituído rei por decisão do Senado.
Na seguinte citação do historiador Estrabão, pode-se perceber outra forma de escolha do soberano: “Demarato, um rico mercador banido de Corinto, veio residir em Tarquinii e lá se casou com uma mulher etrusca. Seu filho, Lúcio Tarquínio, emigrou para Roma, onde galgou alto posto e, por ocasião da morte de Anco, apossou-se do trono, ou mais provavelmente, foi escolhido por um conselho de famílias etruscas da cidade”. (2)
De acordo com Tito Lívio, em sua Res Romanae ab Urbe Condita (Coisas Romanas desde a Fundação da Cidade): “Foi ele o primeiro a solicitar a coroa e a fazer um discurso tendente a assegurar o apoio da plebe.” (3)
A plebe era constituída de cidadãos que não podiam ligar seu nome aos fundadores da Cidade, os patrícios (patres patriae), pais da pátria.
Nesse momento histórico, o poder passa às mãos dos comerciantes e financistas em detrimento da antiga oligarquia rural dos patrícios. Ainda segundo Tito Lívio: “Tarquínio legou o poder a seu genro Sérvio Túlio, independentemente da escolha do povo, isto é, das famílias principais. Este, dando continuidade às reformas do sogro, dividiu o povo em 35 novas tribos, com base no local de residência, em vez de na posição social, enfraquecendo, dessa forma, o poder eleitoral da aristocracia, a classe que se tinha como suprema por direito de nascimento.” (4)
Percebe-se aí a participação das classes populares na transição do poder, bem como evidenciam-se as manobras políticas eleitoreiras e garantidoras da perpetuação de grupos de interesses comuns no comando do país.
Os etruscos assumiram o poder por volta de 655 a. C. e, além das reformas políticas acima mencionadas, promoveram outras, como afirma Eutrópio: “... este (Tarquínio Prisco) duplicou o número de senadores e edificou o Circo de Roma...” (5).
Como as reformas introduzidas pela oligarquia do comércio e das finanças não permitissem à velha oligarquia rural voltar ao poder pelas vias normais, resolveu esta mudar o sistema de governo. Dessa forma, criou a República, cuja origem, na história romana, está tão envolta em mitos, quanto o surgimento da monarquia que a precedeu. Em ambos os casos, a fronteira entre o mito e a história é tão tênue, que se torna quase impossível delimitar onde termina o mito e começa a história.
É ainda Tito Lívio que nos narra: “... certa manhã, no campo real em Ardélia, seu filho Sexto Tarquínio (Tarquínio Soberbo) entrou em debate com um seu parente, Lúcio Tarquínio Colatino, sobre as virtudes das respectivas esposas. Propôs Colatino que voltassem a cavalo para Roma e as surpreendessem à noite. Encontraram a mulher de Sexto em festa com seus íntimos, mas Lucrécia, mulher de Colatino, fiava na roca vestes para seu esposo. Sexto inflamou-se de desejo de pôr em prova a fidelidade de Lucrécia e gozar-lhe o amor. Poucos dias mais tarde, volta secretamente à casa de Lucrécia e violenta-a. Lucrécia chama o pai e o marido, conta-lhes o ocorrido e depois apunhala-se. Em consequência desses fatos, Lúcio Júnio Bruto, amigo de Colatino, convida todos os homens sérios de Roma para expulsar Tarquínio.”(6).
Esse fato teria feito com que a Assembleia do Povo decidisse mudar o sistema de governo, colocando, em lugar de um rei, dois cônsules.
Parece que essa história, embora repetida por outros historiadores como Eutrópio, verdadeira ou não, serviu aos interesses dos patrícios, que de há muito estavam desejosos de retomar o poder. 
O fato é que Lúcio Júnio, cognominado depois Brutus, isto é, idiota ou louco, liderou, em 509 a. C., um movimento, e com auxílio popular, depôs o rei. Reinava, então, Tarquínio Soberbo (Sexto Tarquínio). Desse momento em diante, criou-se a República, isto é, “res”, coisa, e pública. Nesse sistema de governo, o poder era dividido por dois governantes, denominados cônsules, com poderes iguais, cujo mandato era tão somente de um ano. 
Sobre tal sistema, afirma Eutrópio: “... desde então começaram a ser criados dois cônsules em lugar de um rei por este motivo, que, se um quisesse ser mau, o outro, tendo poder igual, o reprimisse. E aprouve que não tivessem o governo mais do que um ano, a fim de que, pela duração do poder, não se tornassem prepotentes, mas fossem sempre delicados, eles que sabiam que após um ano haviam de ser simples cidadãos...” (7).
Para que se possa entender o significado e a origem da palavra Brutus, faz-se necessária uma explanação: ocorre que Lúcio Júnio, tendo atentado contra o rei, incorrera em crime de lesa majestade, que deveria ser punido com morte. Para evitar essa consequência indesejada, ele foi, numa manobra jurídica, declarado “Brutus”, como já se disse, em latim significava idiota, louco, condição em que o tribunal o eximiria de culpa, tornando-o inimputável. 
Como os romanos usavam três nomes: o prenomen, que correspondia ao nosso nome; o nomen, que era o nome da família, “gens” para os latinos, correspondente aos nossos sobrenomes; e o cognomen, que correspondia aos nossos apelidos, passou-se, Lúcius a chamar-se Lúcius Június Brutus. Esse cognome perde, em se tratando de nomes, a carga semântica de um modificador desrealizante e assume a posição de modificador nominal realizante com traços de heroísmo, sendo, desde então, largamente empregado em Roma. O filho adotivo de Júlio César chamava-se Brutus e se considerava descendente do herói republicano. 
Ainda segundo Eutrópio: “Foram, portanto, cônsules, no primeiro ano depois de expulsos os reis, Lúcio Júnio Bruto, que agira sobremaneira para que Tarquínio fosse expulso, e Tarquínio Colatino, esposo de Lucrécia, mas em seguida foi tirada a dignidade de Tarquínio Colatino: pois tinha-se decidido que não ficasse na cidade ninguém que se chamasse Tarquínio... para seu lugar foi escolhido Valério Publícola.” (8).
Cabe aqui salientar que os romanos não foram o primeiro povo na história a tentar um regime republicano; já os gregos os haviam precedido nessa modalidade de governo.
O processo participativo, nos primeiros tempos, no sistema eleitoral, era reduzidíssimo: somente os patrícios, nos primórdios da República, podiam eleger e ser eleitos.
É ainda Tito Lívio que nos explica quem eram os patrícios: “... Rômulo escolheu de sua tribo cem cabeças de clã para ajudá-lo a estabelecer Roma e funcionar como seu conselho ou senado. Esses homens foram chamados mais tarde “patres” ou pais e seus descendentes “patricii”, derivados dos patres.” (9).
Aulo Gélio, em suas Noites Áticas, afirma: “... não eram homens de fausto, como iriam ser seus descendentes; com frequência pegavam no rabo da charrua ou no machado; viviam de maneira simples; teciam em casa suas roupas. Os plebeus admiravam-nos, mesmo quando os tinham contra si, e a tudo o que pertencia aos patrícios aplicava-se o termo “classicus” – clássico, isto é, da alta classe.” (10).
Equivalentes aos patrícios em riqueza, mas muito abaixo em poder político, estavam os “equites”, ou homens de negócio. Com o passar dos anos, os patrícios passaram a dividir com eles o poder, concedendo-lhes o direito de eleger e ser eleitos. Temos muitos casos de cônsules de origem equestre como o do famoso orador, filósofo e administrador Marco Túlio Cícero.
Daí em diante, muitos “equites” ou cavaleiros, isto é, que tinham dinheiro bastante para armar e manter cavalos para a guerra, passaram a entrar para o Senado e formavam a segunda parte dos “patres et conscripti”, isto é, patrícios e homens conscritos. Essas duas classes constituíam as “ordens”, e seus membros qualificavam-se de “boni”, os bons.
Como “virtus” para os romanos significava virilidade, as qualidades que fazem um homem, a virtude romana apontava nessa direção. Como afirma Nietzsche em a Genealogia da Moral, falando sobre o sentido de bom, o “bonus miles" (bom soldado) seria para nós o pior dos homens, capaz de matar friamente e sem dó, mesmo um inocente. 
O termo latino que origina esses vocábulos é “vir”, que significa homem, masculino, macho, em oposição ao Άνθρωπος (anthropos) grego, que pode ser traduzido por humano.
Os homens “virtuosos”, nesse sentido, eram os pertencentes a essas “ordens”. Por isso, quando se empregava o termo “populus”, o povo, entendia-se apenas essas classes superiores; e, originariamente, era nesse sentido que se explicavam as famosas iniciais que ainda hoje se multiplicam por ruas e monumentos romanos – SPQR (Senatus Populusque Romanus) –, ou seja, o Senado e o Povo Romano, que orgulhosamente ostentavam em lugares públicos, na bandeira dos exércitos e nos territórios conquistados. 
Como esses dois grupos sociais tivessem grandes privilégios e regalias oriundos do exercício do poder, os demais cidadãos, a plebe, mesmo em se tratando de homens livres, em oposição aos escravos, viviam em condições muito precárias, não participando dos benefícios das conquistas e do progresso da República, a não ser de pálida maneira, em que lhes tocavam as migalhas, como o “pão e circo”. Caso prático eram os triunfos, festas populares em homenagem aos generais vencedores, em que era oferecida ao público, na rua, abundância de comida e bebida e algumas moedas de ouro, resultado dos saques e pilhagens.
Poucas eram as oportunidades de trabalho regular. Restringiam-se às funções agrícolas, que enfrentavam a grande concorrência dos escravos e dos produtos oriundos das províncias conquistadas, a uma pequena rede de indústrias, ainda em fase fortemente artesanal, e aos serviços domésticos nas mansões dos ricos. Restava, a uma grande parte da massa popular, sem emprego algum, a situação humilhante de tornar-se cliente dos poderosos.
Ser cliente significava dirigir-se, todas as manhãs, por volta de nove horas, à casa de seu senhor ou amo, que ora lhe fornecia alimentos, ora uma refeição em sua própria casa, num salão destinado a esse fim, ora uma quantia em dinheiro, para que fosse prover, nos armazéns e tavernas da cidade, seu próprio alimento. 
Nessa situação de contínua dependência e miséria, os plebeus clamavam pela redução de suas dívidas para com banqueiros e agiotas, pois, pela legislação romana, era comum um cidadão vir a tornar-se escravo por dívidas. Porém, a maior parte dessas dívidas se constituía na classe dos agricultores, que tomavam empréstimos para fazer frente aos custeios e manutenção da família, no período do plantio. Essas dívidas podiam ser contraídas com banqueiros privados ou com o próprio Estado, que financiava, através dos bancos públicos, a produção agrícola.
Os deserdados da sorte também clamavam pela distribuição de terras públicas, resultantes das conquistas militares, pois, no mais das vezes, grandes áreas produtivas acabavam nas mãos dos senadores, generais ou ricos cavaleiros, formando-se nas mãos desses indivíduos inescrupulosos imensos latifúndios. Isso obrigava os pobres a plantarem as terras desses magnatas na forma de escorchantes parcerias em que lhes restavam as respigas.
Outra exigência comum da plebe era a possibilidade de se eleger para os cargos da magistratura e do sacerdócio. Também reclamavam o acesso às ordens pelo casamento, que era proibido entre as classes altas e a plebe. 

Primeira greve em Roma
O Senado procurou frustrar a agitação popular com o fomento de sucessivas guerras, mas abalou-se ao ver desatendido o seu apelo às armas. Em 494 a. C., grandes massas de plebeus aglomeraram-se no monte Sacro (Sagrado), junto ao rio Ânio, a três milhas de Roma, e declararam que não mais lutariam, nem voltariam ao trabalho, antes que suas exigências fossem atendidas.
O Senado lançou mão de todos os recursos diplomáticos e religiosos para atrair os rebeldes sem, no entanto, obter resultado prático nenhum. Receando uma generalização do movimento, concordou em reduzir as dívidas, em admitir dois tribunos e três edis como defensores eleitos da plebe. 
Os paredistas voltaram às suas funções depois de um juramento: matarem qualquer um que levantasse a mão contra os representantes da plebe no governo. Para tanto, criou-se um corpo de litores, que acompanhavam cada um deles, uma espécie de guarda-costas, armada de machadinha e um feixe de varas, pois não eram raros os assassinatos políticos na velha Roma.
Isso foi a deflagração da guerra das classes que aumentou gradativamente durante todo o período republicano, tendo muitos desdobramentos e fazendo inúmeras vítimas. Em 486 a. C., o cônsul Espúrio Cássio propôs o loteamento, entre os pobres, de parte das terras conquistadas; os patrícios acusaram-no de procurar o apoio popular com o fito de fazer-se rei – e assassinaram-no.
O passo imediato, na ascensão da plebe, deu-se com a exigência de leis escritas. Até então, haviam sido os sacerdotes os guardiões e intérpretes das leis. Ora, não se pode aqui esquecer que era vedado à plebe o acesso ao sacerdócio.
Esses sacerdotes, espécies de confrarias, muito fechadas, conservavam, em segredo e monopólio, os registros e as exigências rituais da lei, para usá-los como armas, contra qualquer mudança social. 
Depois de longa resistência a esses desejos da plebe, o Senado, em 454 a. C. enviou à Grécia uma comissão de três patrícios, a fim de estudar a legislação de Sólon e outros códigos existentes naquela região. Retornada a comissão, a Assembleia, em 451 a. C., escolheu dez homens – decemviri – para formular um novo código, e deu-lhes, por três anos, o governo supremo de Roma.
Essa comissão era presidia pelo reacionário Ápio Cláudio, que transformou as velhas leis consuetudinárias de Roma, na famosa “Lex Duodecim Tabularum” (Lei das Doze Tábuas). Depois submeteu-as à Assembleia, que as aprovou com algumas emendas, gravou-as a fogo em doze tábuas, fixou-as no fórum, para que todos as conhecessem.
Foi a Assembleia Constituinte Romana, que estabeleceu a seu povo, sua primeira constituição. Apesar de grandemente conservadora e cruel, o povo tinha agora uma legislação clara e conhecida de todos, à qual poderia invocar em caso de injustiças.
Porém, terminado o período estabelecido para o mandato da comissão, seus integrantes recusaram-se a entregar o governo aos cônsules e tribunos, continuando a exercer a autoridade suprema, com a maior irresponsabilidade.
Agravou-se a situação quando Ápio Cláudio tomou-se de paixão por uma plebeia de nome Virgínia e, para possuí-la, declarou-a escrava, considerando que era vedado por lei o casamento entre classes. Porém, na condição de escrava, podia tomá-la por concubina. 
O pai da moça, Lúcio Virgínio, protestou; e quando Cláudio negou-se a ouvi-lo, matou a filha, correu à sua legião e sublevou-a, para a derrubada do novo déspota. Nesse momento, os plebeus fazem novo movimento paredista em solidariedade a Lúcio, retirando-se novamente para o monte Sacro. Havia, inclusive, a possibilidade de revolta armada.
Ao saber que o exército apoiava a plebe, o Senado depôs os decênviros, baniu Cláudio e reestabeleceu o consulado e as demais funções eletivas.
Quatro anos mais tarde, o tribuno Cláudio Canuleio propôs uma lei que dava direito aos plebeus de desposarem patrícios e serem eleitos ao consulado. O Senado cedeu ao primeiro pedido; quanto ao segundo, aumentou o número de tribunos da plebe para seis, que, em conjunto, teriam a autoridade de cônsules.
Em 376 a. C., os tribunos Licínio e Sexto propuseram uma lei que fazia com que os juros pagos fossem deduzidos do principal, pois as sucessivas guerras não permitiam que os agricultores plantassem, e os credores eram implacáveis, querendo receber juros e principal, de tal forma que a maioria dos agricultores encontrava-se em situação de insolvência.
Isso favorecia os ricos, que adquiriam deles as terras por preços aviltantes, aumentando, assim, os próprios latifúndios. Propuseram também uma norma proibindo que nenhum homem pudesse possuir mais de 500 iugera de terras (cerca de 121 hectares) ou empregar em suas terras número de escravos superior ao de homens livres; porém, sua proposta principal foi a exigência de que um dos cônsules fosse tirado da plebe.
Durante dez anos os patrícios resistiram a essas aspirações populares. Entrementes, o Senado fomentava guerra após guerra, de tal forma a conservar o povo tão ocupado que não pensasse nas terras e no poder. 
Por fim, sob ameaça de terceira parede, o Senado aceitou as chamadas “leis licínias”, e Camilo, chefe dos conservadores, celebrou a reconciliação das classes, com a construção do majestoso Templo da Concórdia, no fórum. 
Foi esse o maior passo dado no desenvolvimento das conquistas das classes populares na limitada democracia romana. Daí por diante, os plebeus progrediram com rapidez rumo a uma formal igualdade com as “ordens”, na política e nas leis. Em 356 a. C., um plebeu foi ditador por um ano.
Cabe aqui esclarecer que a ditadura estava prevista nas leis da República Romana, em momentos nos quais a pátria corresse riscos. Desaparecido o fato gerador da exceção, a ordem normal deveria ser reestabelecida. Em 351, o censurato; em 337, a pretoria; em 300, o sacerdócio, foram franqueados à plebe. E, finalmente, em 287, os senadores concordaram que as decisões da Assembleia Tribal também tivessem força de lei, mesmo que contrariassem decisões do Senado. E como nessa Assembleia os patrícios podiam ser facilmente batidos pelos votos dos plebeus, essa lei equivaleu ao triunfo da democracia em Roma. 
Porém, engana-se redondamente quem acreditou que as elites conformadamente se acomodariam a tantas perdas acumuladas. O poder do Senado breve se desforrou de tantas derrotas. O pedido de terras foi amainado com a remessa de colonos para o solo conquistado. O custo da obtenção e manutenção dos cargos – que não eram remunerados – automaticamente afastava os pobres. Depois de assegurada a igualdade política e de oportunidades, os plebeus mais ricos passaram a cooperar com os patrícios porque disso lhes vinham contratos de obras públicas, ensejos de colonização e exploração das províncias e comissões na coleta de taxas. Cada cônsul, mesmo que escolhido entre os plebeus, subia vitaliciamente ao Senado, tornando-se, por contágio, um zeloso conservador.
Teoricamente, um dos dois cônsules tinha de ser um plebeu. Na prática, poucos plebeus eram escolhidos, porque a própria plebe dava preferência a homens de educação e traquejo para um posto que tinha tantas responsabilidades, tanto na paz como na guerra. Para contornar a lei que exigia a escolha de um plebeu para o consulado, formando dupla com um patrício, criou-se um adendo determinando que não necessariamente um cônsul deveria ser plebeu, mas escolhido pela plebe como candidato e adotado por uma família plebeia. 
Desse processo, originaram-se dois partidos políticos: o PO (Partido dos Optimates), que buscava apoio nas elites, e o PP (Partido Popular), que tinha sua sustentação política na plebe. Assim, muitos patrícios foram eleitos pelo PP, fazendo-se adotar por famílias plebeias e escolhidos como candidatos desse partido. É o célebre caso de Júlio César que se elege cônsul em 59 a. C., pelo PP, sendo seu inimigo político Marco Calpúrnio Bíbulo, eleito pelo PO.
O vício político do populismo parece ter sua origem nesse processo em que um cidadão pertencente às classes privilegiadas busca apoio nas classes desvalidas e passa depois a governar com medidas populistas, a fim de se manter no poder. Em questões de política, parece terem os romanos esgotado todos os recursos no exercício, manobras e manipulação do poder.
Não raras eram as manobras eleitoreiras, usando-se para tal quaisquer meios, desde a pura e simples compra de votos até os apelos ao sentimento de religiosidade popular. Na véspera das eleições, o magistrado em função consultava as estrelas, com o pretenso intuito de saber a que candidatos elas favoreciam. Geralmente, a Assembleia submetia-se à fraude. Quanto aos tribunos da plebe, cabia-lhes proteger o povo contra o governo. Tinham o descomunal poder de veto a qualquer decisão do Senado. Com a simples palavra “veto”, isto é, eu proíbo, podiam deter todo o poderio da máquina oficial do Estado, sempre que lhes parecesse aconselhável. Como silente observador, o tribuno comparecia às reuniões do Senado, comunicava as decisões senatoriais ao povo e, com o veto, se o julgasse oportuno, tirava-lhes toda a força legal.
As portas da inviolável residência dos tribunos permaneciam abertas dia e noite a qualquer cidadão que a eles recorresse ou pedisse proteção; esse direito de asilo era equivalente ao habeas-corpus.
A aristocracia conservadora conseguiu ascendência sobre os tribunos por diversas manobras. Em primeiro lugar, persuadindo a Assembleia Tribal a eleger para o tribunato plebeus mais ricos, uma vez que o cargo não era remunerado. Em segundo lugar, elevando o número de tribunos para dez. Se um só desses dez se deixasse convencer ou subornar, sua decisão anularia a dos outros nove, pois cada um, individualmente, tinha o poder de veto, estabelecendo-se a confusão. Além disso, cumulavam-nos de bens, facilitando-lhes o enriquecimento, a participação nas benesses do poder, de tal modo que eles, quase sempre, tornando-se privilegiados, defendiam os interesses da elite, propondo apenas as medidas populares já aceitas pelo Senado.
Se todas essas medidas viessem a falhar, restava às elites o recurso à ditadura, sob a alegação de qualquer perigo à estabilidade nacional, e o ditador passava a acumular praticamente toda a autoridade sobre todas as pessoas e coisas. 
Os movimentos populares em Roma, principalmente através dos movimentos paredistas ou de ameaças deles, geraram grandes conquistas ao povo romano, através de séculos. É certo, porém, que a astúcia das elites e o poder suasório do dinheiro e das riquezas, via de regra, reduziram sensivelmente os efeitos dessas conquistas e mantiveram os privilégios dos ricos, que, não raro, recorreram mesmo à força e aos assassinatos para manterem as vantagens conquistadas.

NOTAS 
1) Eutropius, Breviarium ab Urbe Condita, I.
2) Estrabo. Historia, V.2.2.
3) Titus Livius, Res Romanae ab Urbe Condita, 1, 56, 7.
4) Idem, ibidem, 1, 46.
5) Eutropius, Breviarium ab Urbe Condita, VI.
6) Titus Livius, Res Roanae ab Urbe Condita, 1, 56, 7.
7) Eutropius, Breviarium ab Urbe Condita, IX.
8) Idem, ibidem, X.
9) Titus Livius, Res Romanae ab Urbe Condita, 1, 8.
10) Aulus Gelius, Noctes Atticae, vi, 13.

BIBLIOGRAFIA
AULUS GELIUS. Noctes Atticae, Paris : Editions Garnier Freres,1948.
ESTRABO. Historia. Paris : Les Belles Lettres, 1947.
EUTROPIUS. Breviarium ab Urbe Condita. Paris: Les Belles Lettres, 1946.
TITUS LIVIUS. Res Romanae ab Urbe Condita. Paris : Les Belles Lettres, 1953.

[1] A palavra senex, em Latim, significa velho; senador, portanto, significa mais velho.

ROMA - RIO TIBRE COM CASTELO SANT'ANGELO AO FUNDO


ROMA - PIAZZA DEL POPOLO


ROMA - TIBRE - PONTE ÉLIO - PONS AELIUS

ROMA - RIO TIBRE
ROMA - PIAZZA DEL POPOLO

ROMA - PIAZZA DEL POPOLO - ONDE NERO FOI ASSASSINADO

sexta-feira, 25 de abril de 2014

UM OLHAR PRAGMÁTICO SOBRE AS FORMAS DE CORTESIA DO DISCURSO GAY - TRABALHO APRESENTADO NA UNIVERSIDADE ABERTA DE LISBOA -





UM OLHAR PRAGMÁTICO SOBRE AS FORMAS DE CORTESIA DO DISCURSO GAY
Autores: Prof. Dr. Oscar Brisolara e Ema Helena Pontes Torino 

Resumo:
Este trabalho se propõe a lançar um olhar interpretativo pragmático sobre as formas de cortesia e descortesia do discurso gay no Brasil, fundado nos princípios reguladores da interação discursiva da Teoria da Relevância proposta por Sperber e Wilson, a partir da pragmática de Paul Grice, considerando de modo especial as proposições de Brown e Levinson. Desenvolve-se cada vez mais intensamente um discurso próprio dos grupos gays, com formas próprias específicas de cortesia e descortesia na interação sociológica. Os procederes dos falantes em interação discursiva baseiam-se, não apenas em processos linguísticos, mas também em regras de outra natureza, que seguem princípios mais universais. O casal de pensadores ingleses Dan Sperber e Deirdre Wilson propôs a teoria da relevância como instrumento para dar conta da linguagem em uso, em contexto, relacionada com o momento, com o falante e com o ouvinte. Fundam-se no princípio da cooperação entre os interlocutores que negociam significados, associado ao princípio da cortesia e às máximas conversacionais. Há um processo ritualizado na comunicação humana que consagra formas corteses e descorteses de relacionamento linguístico. Brown e Levinson aprofundaram esses estudos aplicando-os às formas de cortesia. Os atos ilocutórios presentes no corpus analisados à luz dos teóricos citados (diálogos do personagem homossexual Crô Valério, interpretado pelo ator Marcelo Serrado nos capítulos exibidos nos dias 22 e 23/03/2011 na novela Fina Estampa da Rede Globo de Televisão) permitem-nos perceber que o grupo social formado pela orientação sexual em questão, tem suas formas próprias de cortesia. Este estudo dedica-se à abordagem das estratégias discursivas de cortesia específicas dos grupos de falantes homossexuais, tanto em suas relações internas dentro do grupo abordado, quanto em relação aos indivíduos de outros grupos sociais não incluídos nessa categoria de cidadãos; objetiva-se, assim, problematizar esses atos de fala, tão presentes no país.

Abstract: 
This work intends to shed a pragmatic interpretation of both forms of courtesy and discourtesy of gay speech in Brazil, based on the regulating principles of discursive interaction of the Theory of Relevance by Sperber and Wilson, from the Paul Grice’s pragmatic. It grows, ever more intensely, a speech typical of gay groups, with their own specific forms of courtesy and discourtesy on sociological interaction. The mechanics of speech in discursive interaction are based not only on linguistic processes, but also in other kinds of rules, which follow more universal principles. This study is dedicated to addressing the discursive strategies of courtesy of specific groups of homosexual speakers, both in its internal relations within the group approached, as compared to individuals from other social groups not included in this category of citizens; the aim is therefore to problematize these speech acts, as present in the country.
Palavras-chave: cortesia; homossexualidade; linguagem/identidade.
Introdução:
O presente trabalho faz uma abordagem da polidez lingüística empregada no discurso dos homossexuais brasileiros, cujas características se têm diferenciado como se pode observar em vários romancistas, e cujos traços se fazem presentes posteriormente nas telenovelas do país.
Nosso estudo focaliza a cortesia linguística relacionada aos fenômenos da comunicação atual. Estabelecendo laços entre a linguística e a linguagem própria dos homossexuais, foi lançado recentemente um dicionário de expressões gays que recebeu o título de "Aurélia, A Dicionária da Língua Afiada". Esse título é uma evidente alusão ao famoso "Dicionário Aurélio", de Aurélio Buarque de Holanda. "Aurélia", lançado pela Editora da Bispa, contém 1.300 verbetes todos descritos, na forma de um dicionário tradicional. 
Os autores (o jornalista Ângelo Vip, e o professor Fred Libi) oferecem ao público em geral o “bajubá”, linguagem usada pelos travestis. O que antes era um código entre os homossexuais, agora se socializa e, de acordo com ele, o livro foi feito através de pesquisas realizadas há cerca de dez anos, por investigadores brasileiros e portugueses. De acordo com o que contempla o nosso estudo, procuramos enfatizar a polidez presente nos diálogos retratados na novela brasileira “Fina Estampa”, que reflete hoje, esta nova realidade linguística.
Relevância e objetivos:
Este trabalho se justifica pela importância que o tema apresenta para a sociedade em geral e de modo especial para os pesquisadores da área da linguagem face à necessidade de se analisar as novas conotações dadas a uma série de elementos do léxico da língua portuguesa surgidos dentro da linguagem específica dos grupos gays, bem como as criações lexicais que emergiram a partir da influência da linguagem própria desses grupos.
Movidos pela novidade do tema e pela contribuição que este estudo pode trazer para a superação de lacunas no conhecimento linguístico, direcionamos esta pesquisa para este campo específico da sociolinguística, a fim de aprofundarmos o entendimento da língua em situações específicas de uso.
Referencial teórico:
A análise pragmática segue uma trajetória histórica conhecida que apenas vamos recuperar brevemente, no entanto somente naqueles aspectos que contribuem para a presente análise. Os estudos pragmáticos vêm dos primórdios do pensamento ocidental a partir do embate radical entre Parmênides e Heráclito que não cabe nos limites desta exposição. Continuam no embate platônico-aristotélico. Aristóteles estabelece todos os fundamentos teóricos que vão servir sustentação de todos os pragmaticistas.
Porém, é no século vinte, a partir da filosofia positivista, que a pragmática vai se consolidar como uma proposta consistente para fundamentar as análises em diversas áreas do pensamento filosófico. A pragmática mais recente em termos de linguagem começa com a Teoria dos Atos de Fala, cujos fundamentos se encontram nos textos de doze conferências proferidas por John Austin na Universidade de Harvard, em 1955, que foram publicadas postumamente no livro How to do Things with Words, em que aparece o conceito fundamental defendido pelo autor, ou seja, que dizer, mais do que transmitir informações, é, sobretudo, uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante.
Nesta mesma direção seguem os trabalhos de Paul Grice, quando, em 1975, publica sua obra Logic and Conversation, na qual propõe o Princípio de Cooperação (seja cooperativo) e as quatro Máximas Conversacionais: a) máxima de quantidade – não diga nem mais nem menos do que o necessário; b) máxima de qualidade - não diga o que você não sabe ser verdadeiro; c) máxima da relevância – só diga o que é relevante; máxima de maneira - seja claro, conciso e ordenado; evite obscuridade, ambigüidade e prolixidade.
Dando continuidade aos estudos pragmáticos, Dan Sperber e Deirdre Wilson denominam de Princípio da Relevância, no livro intitulado Relevance: communication and cognition, o fato de qualquer enunciado, destinado a algum ouvinte, conter em si a presunção de sua própria relevância. O ouvinte, a partir do enunciado recebido, deve estabelecer, através de um raciocínio dedutivo, em ordem de acessibilidade, aquelas implicações que devem ser mais relevantes naquele contexto. Esse é o princípio da relevância.
A Teoria da Relevância de Sperber e Wilson complementa o arcabouço teórico deste trabalho. Ela assume alguns dos pressupostos griceanos, porém diferencia-se ponto de vista de Grice ao reconhecer que a máxima da relevância tem um alcance maior que as demais máximas conversacionais, a ponto de sobrepor-se a estas. 
Por fim, Penelope Brown e Stephen Levinson, da universidade inglesa de Nottingham, na obra Politeness: Some Universals in Language Usage conduzem os estudos pragmáticos para o campo da cortesia no que diz respeito aos bons costumes e à etiqueta, definindo o que é considerado cortês e descortês em diferentes contextos culturais. Esses autores fazem um trabalho complementar ao Princípio de Cooperação de Grice. O que é considerado elegante e educado em determinada cultura, em outra, pode ser interpretado como grosseiro e descortês. Tomam, de Erving Goffman, a diferenciação entre cortesia negativa, que envolve expressões do tipo: se você não se magoa, não desejando ofendê-lo; e cortesia positiva, manifesta em expressões consagradas de tom positivo como: por favor, com licença, com sua permissão e tantíssimas outras de igual força semântico-pragmática.
O léxico de todos os idiomas oferece termos considerados corteses e descorteses, além do mais, há ferramentas linguísticas específicas para demonstrar reconhecimento, deferência, respeito, posição social, do emissor em relação ao receptor e respostas previstas por parte deste último. Esses instrumentos linguísticos têm por finalidade construir e manter a imagem social do indivíduo ou tentar recuperá-la. Nesse intuito, ele usa também estratégias linguísticas de negociação para preservar a imagem do outro, de modo especial em situações em que processos agressivos à imagem alheia podem vir a ser perigosos em relação à imagem de si mesmo perante a comunidade.
Como a imagem é vulnerável, há atos que lhe são ameaçadores, sendo necessário mitigá-los com a finalidade de proteger a própria imagem. A imagem pública do indivíduo tem duas faces, uma positiva e outra negativa. A primeira busca a aceitação do indivíduo pelo grupo; a segunda, visa a garantir-lhe o espaço de ação sobre o grupo. 
Os autores da presente proposta buscam em Goffman o conceito de território próprio do indivíduo, do qual fazem parte seus pensamentos e sentimentos, questões pessoais íntimas, seu espaço temporal e físico e a própria imagem corporal que se vão constituir numa boa imagem a preservar e uma má imagem a evitar. 
Como o indivíduo vive em simbiose com o meio social em que está inserido, tem que se comportar de acordo com um conjunto de regras de polidez que são essenciais na construção e manutenção da própria imagem, que variam de acordo com os costumes e culturas e das quais, desde a mais tenra infância, o sujeito se vai inteirando e cujo manejo vai aprendendo. 
Vale ressaltar que as posições de falante e ouvinte não são fixas. Assim, os indivíduos envolvidos no processo comunicativo alternam-se, ocupando ora uma, ora outra posição. Esse processo de dupla direção caracteriza-se pelo diálogo de gays com outros gays, e de gays com não-gays. Essa situação pragmática dos participantes do discurso influencia as escolhas linguísticas.
Desse modo, aprende que toda a ofensa ao território e à imagem do outro, se não é reparada assim que percebida, representa uma ameaça ao próprio território e à própria imagem positiva. Daí surge todo um ritual que parte das formas de recepção próprias da interação humana, as quais vão muito além das formas linguísticas, perpassando todo o processo de comunicação e convivência dos indivíduos em sociedade.
É justamente neste campo que o discurso gay parece estabelecer uma criativa quebra de expectativas, num emprego do léxico com novas significações marcadas pelo discurso risível, pelo satírico, pela ironia e desfaçatez, chegando, nas situações mais extremas, ao deboche, ao escrachamento e mesmo à ofensa.
Uma estratégia linguística muito eficiente utilizada no discurso gay aqui analisado é o jogo estratégico dos modificadores tanto nominais quanto verbais na construção e desconstrução das faces dos atores desse jogo discursivo. O texto que passaremos a analisar se trata de um discurso fictício, no qual o autor procura reproduzir a fala diária dos indivíduos desse grupo social, reconstruindo as situações diárias de fala com todas as estratégias de linguagem que lhes são próprias. O próprio léxico assume um significado específico para cujo entendimento nem sempre o contexto pragmático é suficiente para elucidar. Por isso, anexamos fragmentos de um dicionário específico dos termos gays.
Julgamos fundamental salientar que o discurso que passamos a analisar é próprio de um grupo social que tem um alto índice de rejeição por parte dos grupos sociais mais conservadores, o que induz os usuários a um tom muitas vezes agressivo e irreverente, que caracteriza um processo social de reação com o objetivo de sobrevivência e busca de um espaço social próprio, como manifestação do instinto de preservação.
Metodologia: 
Este trabalho emerge de uma pesquisa exploratória que tinha como objetivo identificar, em textos de autores brasileiros, a recorrência à linguagem dos homossexuais, para abordar-lhe as características específicas que ela vem assumindo, bem como selecionar os suportes teóricos que nos pareciam mais adequados para sua análise. Em função de inúmeros autores recorrerem a esse tipo de linguagem, optamos por eleger esse gênero, hoje muito popular, de modo especial na telenovela brasileira. Para o presente estudo, escolhemos a novela “Fina Estampa”, produzida e exibida pela Rede Globo de Televisão, que traz abundantes exemplos dessa linguagem. 
Escrita por Aguinaldo Silva, Nelson Nadotti, Patrícia Moretzsohn e Maria Elisa Berredo, com colaboração de Maurício Gyboski e Rodrigo Ribeiro, sob a direção de Marcelo Travesso, Ary Coslov, Claudio Boeckel, Marco Rodrigo e Marcus Figueiredo, e com direção geral de Wolf Maya, a telenovela é atualmente exibida em Portugal, no canal SIC, desde 21 de maio de 2012.
Sua trama conta a história da açoriana Griselda. De família muito pobre, ela veio para o Brasil aos cinco anos. Aos catorze, se casou e, aos quinze anos, foi mãe. Sozinha, criou os três filhos, pois seu marido, Pereirinha, era pescador e morreu em alto-mar. Para sobreviver e criar seus meninos, ela passou a fazer uma das únicas tarefas que havia aprendido fora do serviço doméstico: mecânica. 
O destino de Griselda cruza com o do chefe de cozinha René Velmont, quando esta faz um reparo no carro dele e passa a fazer pequenos serviços em sua mansão, assim ela conhece a esposa dele, madame Teresa Cristina, que tem a seu dispor o seu fiel mordomo, Crodoaldo Valério, apelidado de Crô, interpretado pelo ator Marcelo Serrado; Crô atua num dos papeis principais da novela e foi colocado na trama como uma referência aos homossexuais brasileiros. Sua linguagem representa perfeitamente a polidez linguística própria desse grupo sociológico. 
A análise da linguagem deste personagem no folhetim permitiu-nos penetrar mais profundamente na temática da linguagem dos gays e contribuiu para o melhor entendimento das teorias linguísticas dessa área específica da pragmástica.
Análise/Resultados:
Os fragmentos a seguir analisados fazem parte da transcrição de diálogos do personagem homossexual Crô Valério, já citado anteriormente. Fazem parte dos capítulos exibidos nos dias 22 e 23/03/2011 da novela em análise. A cópia completa desses diálogos faz parte dos anexos deste trabalho. Como se poderá observar, as estratégias de polidez utilizadas pelo falante variam conforme as relações que se estabelecem na situação discursiva, dependendo do risco de ameaça do falante ou do ouvinte na interação discursivo-pragmática estabelecida entre ambos. 
Foram selecionadas expressões ou discursos marcados pela ironia, muitas vezes propositalmente ambíguos, com significação estritamente ligada ao contexto em que são produzidos, os quais se tornam incompreensíveis, fora de seu processo de produção. Somente utilizando um modelo de interpretação pragmática o ouvinte pode acessar uma série de informações contextuais fundamentais ao processo de compreensão. O mesmo acontece com a ironia, pois a interpretação pragmática do enunciado possibilita ao intérprete a construção de uma significação diametralmente oposta àquela sugerida pela sentença tomada de forma isolada. O contexto é fundamental na identificação do tom de um discurso.
Brown e Levinson salientam que a diferença no uso da linguagem que não leva em consideração apenas a sintaxe e a semântica. Contam também com aspectos pragmáticos, ou seja, o conhecimento de mundo em relação ao interlocutor e seu posicionamento em relação ao resultado desejado. Não se trata de uma simples polidez orientada por princípios de educação, mas uma forma de polidez que visa a obter resultados pragmáticos do processo comunicativo. Consiste num uso estratégico da linguagem. De certo modo, a polidez pragmática constitui-se uma quebra ou manipulação das máximas de Grice. 
Dentro do discurso dos gays, elegemos apenas as formas de cortesia ou descortesia que permeiam os relacionamentos entre os actantes. Nessa perspectiva, muitas expressões podem constituir-se em ameaças à face dos actantes. O discurso gay constrói um mundo de valores em relação à pessoa do outro, empregando um léxico criativo e cifrado, impregnado de implicaturas em relação tanto ao interlocutor quanto ao referente humano. 
O eixo principal do diálogo transcrito tem como temática a disputa entre dois serviçais de uma casa da alta burguesia: o mordomo e o motorista, ambos homossexuais. O mordomo é homossexual manifesto; o motorista, mantém discrição quanto a sua sexualidade diante dos demais, apenas se comporta como tal diante do mordomo. As falas analisadas a seguir fazem parte das cenas iniciais do diálogo em que Crô está na praia, de manhã, antes de ir ao trabalho, e dialoga com outros homossexuais. Essa escolha deveu-se à existência nessa passagem de muitos termos e expressões específicos da linguagem do grupo em observação.
Vejam-se as expressões empregadas em que aparece o emprego cifrado de alguns termos, seguido da respectiva análise e interpretação:
Oi, Barbie,... Neste exemplo do diálogo aparece uma forma de tratamento em que o homossexual Clodoaldo, tratado pela corruptela Crô, chama seu colega de Barbie. Barbie, no dicionário gay bajubá significa homossexual malhado e afeminado. Portanto, essa expressão funciona como modificador realizante em relação a outro homossexual identificado no diálogo como Andressa. Um elogio, na teoria de Brown e Levinson, opera como uma forma de cortesia positiva que tem efeito na construção de uma imagem positiva da face do emissor Clodoaldo perante o interlocutor destinatário Andressa.
Na sequência, aparece a expressão: E aí, mafiosas,... de um outro gay identificado como Leona que entabula um diálogo com os dois primeiros. Mafiosa, no mesmo dicionário acima mencionado significa homossexual crítico, que costuma observar tudo e todos com um certo olhar de desdém, arrogância; geralmente tem uma língua muito afiada, critica e fala mal de todos. Nesse tratamento há traços de descortesia, pelo menos a uma primeira leitura, que é, porém, abrandada pelo diálogo entre Crô e Andressa a respeito do novo interlocutor, que precede as palavras dele: Lá vem a Leona, ainda bem que hoje não veio com aquela amapoa loira abusada. Esse comentário induz o leitor a interpretar como ironia o tratamento dado por Leona a Crô e Andressa. Essa leitura é reforçada pelos modificadores amapoa loira abusada, em que o pode-se destacar o conceito de amapoa significa mulher, definida como loira abusada, marcas que permitem estabelecer uma oposição entre o novo interlocutor e a mulher indesejada.
Portanto, trata-se de uma criativa forma de cortesia positiva com que o novo interlocutor se apresenta aos comparsas, elogiando-os como colegas críticos, observadores, superiores aos demais.
Prosseguindo o diálogo, Crô se refere a um outro homossexual tratando-o de arara. Segundo o dicionário gay, arara significa homossexual de voz estridente. Em relação a essa arara, afirma que parece que fez a Elza na Nefertite de sunga preta, em que Elza é roubo e Nefertite, homossexual velho, mas que ainda conserva um estilo aristocrático. Portanto, há uma forma velada de referir-se a outro gay como ladrão. Na sequência do diálogo, Crô afirma que a arara ladra tá dando pinta pro michê que tá com ela. Sendo o significado de michê garoto de programa, ele está gastando o resultado do roubo com um garoto de programa.
Andressa afirma então: Tô bege, to passada com esse bafão na praia. Significa o mesmo que “tô boba”, “tô passada”, abismada. Ao que Crô responde: Acorda, Alice, tem bafo todo dia nesta praia, em que Alice tem o sentido de homossexual tolo, que vive num mundo imaginário (país das maravilhas). Na linguagem gay, Alice funciona como ironia negativa, ou seja, uma cortesia negativa em quem o gay Crô chama seu colega Andressa de ingênuo e sonhador. Dessa forma ele se propõe como crítico, inteligente, perspicaz para entender o significado do universo e das ações alheias. Trata-se, portanto, de uma estratégia de construir sua imagem e sua face diante dos colegas e diante dos heterossexuais, defendendo o princípio da igualdade dos homossexuais com os demais cidadãos.
Retomando a análise em seu conjunto de argumentos dentro da proposta de Brown e Levinson, pode-se afirmar que o discurso gay emprega estratégias linguísticas como processo de afirmação de seus membros como sendo indivíduos iguais aos demais de sua sociedade. Que a linguagem gay emprega ferramentas para construir a imagem coletiva do grupo através de formas de tratamento corteses e descorteses específicas na ocupação de espaços que a sociedade, muitas vezes, tenta recusar.
Quando um sujeito gay emprega em seu discurso elementos morfológicos cifrados que assumem novos sentidos diferentes dos semanticamente consagrados para se comunicar, ele está demonstrando capacidade criativa de que, em sendo diferente, é igualmente importante e tem direito de ser respeitado e prestigiado na comunidade a que tem a direito de pertencer, mantendo-se diferente.
Considerações finais: 
As reflexões precedentes permitem-nos constatar, à luz das teorias lingüísticas pragmáticas que abordam cortesia/descortesia, a existência de uma inovação linguística na língua portuguesa, no que diz respeito aos grupos sociais. Conforme Fernando Pessoa, “O ambiente é alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora.” 
Os indivíduos pertencentes a grupos gays vivem em permanente atrito com os grupos mais conservadores da sociedade. Dessa ameaça, surgem estratégias discursivas de autopreservação. Para subverter essa situação, emerge um discurso cifrado, acessível apenas aos iniciados. Trata-se de uma estratégia para construir a imagem do indivíduo e do grupo, criar uma face diferente, e garantir um território próprio.
A polidez discursiva presente nos discursos homossexuais não é um modismo, nem se fez de forma imediata. É consequência da trajetória de um grupo social que busca estratégias de afirmação na própria linguagem, que é uma das manifestações da essência do indivíduo.

BIBLIOGRAFIA:
AUSTIN, John L (1965). How to do Things with words. New York: Oxford University Press.
BROWN, P e Levinson, S. C. (1987) Politeness – Some universals in language usage. Cambridge: Cambridge University Press.
DISCURSO.http://www.esa.esaportugues.com/programa/Lingua/discurso.htm. Disponível em 02/07/2012. Acesso em 07/maio/2012.
FOLHA.COM. Polêmico, “Aurélia” reúne termos do mundo gay. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u60885.shtml. Acesso em 07/mai0/2012. 
GAYPÉDIA. Diálogo de um encontro casual entre amigos homossexuais na praia. Disponível em http://www.gaypedia.com.br/index.php?title=Bajub%C3%A1. Acesso em 07/maio/2012.
H.P. Grice. (1975) Logic and Conversation, in: P. Cole and J.L. Morgan (eds), Sintax and Demantics, vol 3. New York. Academic Press.
SPERBER, D. & Wilson, D. (1986). Relevance: communication and cognition. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. The Language and Thought Series.
PESSOA, Fernando. A Quintessência do Desassossego. Ed. Artes e Ofícios, 2007. Porto Alegre – RS.

ANEXOS
ANEXO 1
Diálogo de um encontro casual entre Crô e seus amigos homossexuais na praia. O mordomo Clodoaldo Valério, todos os dias, vai bem cedo á praia, antes de ir para o trabalho:
- Crô: Oi, Barbie, veio aproveitar o sol, abalando no biquíni hem?
- Andressa: Com certeza! Praia cheia hoje, daqui a pouco aqui do lado vai ter babado, muita confusão e gritaria. Lá vem a Leona, ainda bem que hoje não veio com aquela amapoa loira abusada.
- Leona: E aí mafiosas, posso saber por que aquele povo ali grita tanto?
- Crô: Tem uma arara ali, parece que fez a Elza na Nefertite de sunga preta, e ainda tá dando pinta pro michê que tá com ela...
- Andressa: Tô bege, to passada com esse bafão na praia...
- Crô: Acorda, Alice, tem bafo todo dia nesta praia, por isso gosto de vir aqui, me divirto muito...
- Leona: Nossa aí vem um alibã, agora ele resolve tudo, melhor fazer a egípcia e aproveitar o sol...
- Andressa: Se joga, querida, se joga...
- Crô: É, se joga, linda...
Crô vai embora pois descobre que já está atrasado, e não quer perder o próximo micro-ônibus, o que quase acontece, mas correndo e pedindo que lhe esperem, consegue chegar a tempo e encontra seu colega de trabalho, Baltazar, o motorista que trabalha com Crô na mansão da milionária Tereza Cristina.
Crô para o cobrador do micro-ônibus: 
- Querido, espera aqui por mim, espera, espera aí, licença...
Ao entrar cumprimenta Baltazar.
- Crô: Oi! Atrasado também Baltazar?
- Baltazar: A rainha do Nilo disse que eu podia chegar mais tarde.
- Crô: Hum... Então, vamos chegar juntinhos, Zoiudo!
- Baltazar: Não dá prá colocar menos perfume, não?
- Crô: Coisa de primeiro mundo, é da...
Baltazar abre a janela e reclama: Tá me dando dor de cabeça já.
- Crô: Cruzes, que climão!
Ao chegar ao trabalho, Baltazar continua reclamando ao conversar com Crô e a copeira.
- Baltazar: Não uso perfume “nem morta”!
- Crô: Que foi que você disse?
A copeira responde imitando um homossexual: Ele disse, nem morta!
Baltazar: Que é isso, tá louca? Tá louca? Vocês tão de sacanagem comigo agora?
Crô, rindo e debochando, fala para Baltazar: Tenho um uniforme rosa lá, do dia do jogo, se você quiser...
- Baltazar: Tira o cavalinho da chuva que isso não vai acontecer nunca, tá?
- Crô ironiza: Nem morta, santa!
Crô e Baltazar vão à garagem pegar o carro para ir ao supermercado, Crô senta no banco traseiro e implica com Baltazar:
- Crô: Trés bom “Jarbas” Baltazar, antes que você fale qualquer coisa, eu só fiz sua vontade, você não disse que não ia ao banco da frente comigo, então, hum?
- Baltazar: Mentira tua, tá pensando que eu sou idiota? Pensa que eu não sei que você tá curtindo onda, você de madame e eu de motorista.
- Crô fala bem no ouvido de Baltazar: Olha aqui, eu sou uma pessoa de respeito elegantíssima, você deveria se sentir privilegiado de dirigir o carro para uma pessoa como eu, aliás prá falar a verdade, você não é digno nem de tocar num carrão desses da Pitonisa de Tebas.
- Baltazar: Para de fungar no meu cangote, já não basta o dia inteiro ter que ficar olhando para tua cara...
- Crô: Se olha para minha cara, é porque gosta do que vê, porque eu sou linda, adorei!
Na volta do supermercado, a implicância entre os dois continua...
- Crô: Não fique com essa porque eu não sou o tipo de pessoa que sai por aí...
Baltazar sai e deixa Crô falando sozinho, então Crô resolve subir e ver a patroa na sua suíte...
- Crô: Não vou resistir em dar uma olhada lá no quarto.
Encontra com Baltazar na escada...
- Crô: Sai da minha frente.
- Baltazar: - Vai passa, passa, inferno!
- Crô: Muita atenção, coisa exagerada, você está proibido de me chamar de qualquer coisa relacionada ao reino animal.
- Baltazar: Esse eu não quiser?
- Crô: Depois não diga que eu não avisei, sai...
- Baltazar: Escuta aqui...
- Crô: Ai, ui! Que é isso? Se fosse uma cobra me mordia. Que é? Hum? Tá me olhando por quê? A minha voz continua a mesma, mas os meus cabelos também, dá licença.
- Baltazar: Escuta aqui, eu tô de saco cheio, se a bicha pensa que vai me tratar assim como se eu fosse nada, não vou deixar barato não, hem? Hum! Que hum nada!
Crô prepara a bandeja do lanche da patroa Tereza Cristina e canta.
- Crô: Quem espera que a vida seja feita de ilusão, pode até ficar maluco e morrer na solidão, é preciso ter cuidado prá mais tarde não sofrer, é preciso saber viver.
Baltazar chega à cozinha: Que é, coisinha, hem? A gazelinha vai ficar indiferente agora, toda hora que eu aparecer?
- Crô: Eu sou um ser humano sabia? Eu rio, eu sofro, eu choro, eu sou um homem latino americano, um homem comum.
- Baltazar: Homem? só se for para os teu garotões lá, porque prá mim você não passa de ...
- Crô: Aí, tá vendo, é disso que eu tô falando, é bulling, eu não quero, não devo e não passo mais pelas suas provocações, nem que a vaca cante Babalu em grego.
Crô leva o lanche no quarto para a patroa e Baltazar vai atrás discutindo, no momento em que ambos descem a escada, a campainha toca e Crô se apressa, dizendo: 
- Espera, Baltazar, Ladys first...
- Baltazar: Desde quando tu me chamas toda hora de Baltazar?
- Crô: Ué? Não é seu nome? Baltazar, é como chamo teu nome.
- Baltazar: Tu sempre me chamou de Zoiudo.
- Crô: Chamava, passado.
- Baltazar: - Escuta aqui, ó passarinha, até quando vai ficar com essa rabugice, ó...
- Crô: O, o quê? Já avisei que somos companheiros de trabalho, portanto nos chamamos pelo nome, você Baltazar, euzinha aqui, Clodoaldo Valério.
- Baltazar: Ah é? Eu pensei que era eu Tarzan e você Jane!
- Crô: Me ofende, me ofende prá ver se eu não te processo por assédio, hum...
- Baltazar: Tá “bonita”?
Ambos se descontrolam e começam a brigar, quando a patroa Tereza Cristina chega e grita:
- Congela!!!

ANEXO 2
DICIONÁRIO BRASILEIRO GAY BAJUBÁ - AURÉLIA
Dicionário Brasileiro Gay (do bajubá): Bajubá: Baseado nas línguas africanas empregadas pelo candomblé, é a linguagem praticada inicialmente pelos travestis e posteriormente estendida a todo o universo gay. O bajubá falado emprega uma mistura lexical (do próprio bajubá, do português e, em menor grau, do tupi) sobre a base gramatical e fonológica da língua portuguesa.
Abalar: fazer ago bem feito, o mesmo que arrasar
Abusada: alguém que não fala com ninguém, que menospreza os outros
Alibã: policial 
Alice: homossexual tolo, que vive num mundo imaginário (país das maravilhas)
Amapoa: mulher
Arara: homossexual de voz estridente
Babado: acontecimento marcante, bafão, bafo.
Barbie: homossexual malhado e afeminado
Elza: roubo
Fazer a egípcia: virar a cara e ficar de perfil (como as figuras egípcias), a fim de menosprezar ou ignorar alguém
Mafiosa: homossexual crítico, que costuma observar tudo e todos com um certo olhar de desdém, arrogância; geralmente tem uma língua muito afiada, critica e fala mal de todos
Michê: garoto de programa 
Nefertite: homossexual velho, mas que ainda conserva um estilo aristocrático
Se joga: expressão de estímulo, o mesmo que “vá em frente”
Tô bege: o mesmo que “tô boba”, “tô passada”, abismada.





quinta-feira, 24 de abril de 2014

ESTUDO COMPARATIVO ENTRE LÍNGUA INDÍGENA DO SUL DO BRASIL E LÍNGUAS DE ORIGEM EUROPEIA - TRABALHO APRESENTADO NA UNIVERSIDADE DE ALCALÁ - ESPANHA -


AS RELAÇÕES SUJEITO-PREDICADO-OBJETO NA VOZ MÉDIA: UMA APROXIMAÇÃO ENTRE O IDIOMA INDÍGENA KAINGANG E A LÍNGUA PORTUGUESA
Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara – (FURG) – osc@vetorial.net

1. Introdução
O objetivo desta comunicação é analisar as relações enunciativas entre sujeito, predicado e objeto, na voz média específica do antigo grego e do sânscrito, e demonstrar a presença dessa voz na língua Kaingang, um idioma falado por tribos indígenas do sul do Brasil. Não tem, a voz média, um correspondente formal nessa língua indígena, como, de modo geral, não o tem nas línguas modernas.
Esta primeira exposição atém-se mais especificamente à voz média em si mesma. A segunda exposição vai dedicar-se mais especificamente à voz média nos verbos da língua Kaingang. Já a terceira exposição vai analisar a presença e a função da voz média na narrativa mitológica dos índios kaingangues. 
O que caracteriza o médio é o fato de ele definir o sujeito como interior ao processo, junto com o objeto. O que a identifica é que a ocorrência do sujeito e do objeto, na sua dimensão média, não está apenas entre a voz ativa e a passiva, mas está também entre o sujeito e o mundo. Aponta, portanto, para uma dimensão dêitica.
Voltamo-nos para as línguas indígenas instigados pelo fato de a universidade na
qual trabalhamos ter iniciado um processo de integração com grupos indígenas de nossa região, abrindo os cursos da instituição para formar profissionais oriundos desses povos.
Iniciamos, então, um projeto visando a estudar o idioma dessa tribo e a estabelecer uma relação desse com a língua portuguesa. 
Nosso ponto de partida foi o estudo da voz média porque comungamos com os proponentes de uma teoria que afirma ter sido essa a primeira voz verbal utilizada pela humanidade nos primórdios dos idiomas. 
Partimos de textos já coletados por outros autores fundados na literatura oral. Estamos na fase inicial do projeto. Na fase seguinte, ampliaremos o corpus, coletando textos atuais, uma vez que os indígenas já produzem textos escritos em seu idioma.

2. Aspectos teóricos sobre a voz média
As vozes, ativa e passiva, sob o nome de ação e paixão, já são mencionadas no Órganon de Aristóteles, no livro das Categorias. Algumas vezes, essas categorias são também chamadas de classes.
O termo ação da língua portuguesa provém do verbo latino ago. Do tempo supino actum, originou-se o termo ato e seu correlato ação. Daí surge a relação ativa entre o verbo e o sujeito. Aparece a manifestação e o conceito de sujeito com dupla significação: o sujeito sintático, regendo o predicado, e o sujeito empírico, agindo sobre o mundo e sobre o outro. Nessa voz, o sujeito empírico assume a consciência de sua ação sobre o mundo.
A expressão gramatical passivo/a provém do verbo latino patior. Desse verbo originaram-se os termos paixão e passivo. Dele deriva-se também a concepção de voz passiva, em que o sujeito suporta a ação verbal.
Por outro lado, nesta voz aparece a manifestação da ação do mundo ou do outro sobre o sujeito sintático: aparece a consciência da ação do mundo ou do outro sobre o indivíduo, sujeito empírico. Novamente uma relação dêitica, isto é, entre a linguagem e os fatos do mundo que ela expressa. Essa voz, a passiva, no entanto, tem surgimento posterior à voz média e à ativa na maioria das línguas.
Hoje há estudiosos que se voltam novamente para o estudo da voz média. Alguns afirmam que, no surgimento da linguagem humana, ela foi a voz verbal original (que deu origem às demais), e fundamentam seus postulados nos estudos e análises do surgimento da linguagem na criança, realizados pela Psicologia Experimental.
Segundo os pressupostos de alguns estudos, a criança inicia sua inserção no uso da linguagem não se distinguindo do mundo que a cerca: nem dos objetos, nem dos outros seres humanos. A voz verbal característica da criança nessa fase da aquisição da linguagem seria a voz média. Nós, lingüistas, devemos fazer mais análises dessa fase da aquisição da linguagem para averiguarmos se de fato isso ocorre.
Para filósofos e antropólogos como Sproviero, essa era a voz verbal fundamental nos primórdios do surgimento da linguagem no homem. Na fase inicial da formação do homem que Sproviero denomina de infância da humanidade, o homem não tinha ainda consciência de si e do universo como ontologicamente distintos. Nesse sentido, sobre a voz média, ele afirma:
E o ponto fundamental é a tese desenvolvida pelo pensador alemão Schöfer. Ele é de opinião de que houve uma fase em que havia somente o médio: ativo e passivo seriam análises do médio. O médio indicaria portanto a fase da consciência não destacada do mundo, isto é, o homem e o mundo não se separavam, integravam o mesmo todo e a linguagem exprimia essa relação integral (Idem, ibidem, 1997, p. 3).

De acordo com esse raciocínio, o conceito de voz média está relacionado com a própria evolução do ser humano e ligado à formação histórica da consciência do indivíduo acerca de si próprio, e de suas relações com o mundo que o cerca e de suas relações intersubjetivas de identidade e alteridade.
Na mesma linha de pensamento, a formação da língua latina mantém traços da voz média que se manifestam de modo claro na categoria dos verbos denominados depoentes. Porém, nessa língua, já fica claro o processo de apagamento dessa voz, pois não há nesse idioma uma forma gramatical específica para a expressão dela. Esse processo de apagamento se consuma nas línguas modernas com a extinção total de uma categoria morfológica para marcá-la.
No entanto, como veremos mais adiante, apesar do apagamento morfológico, sempre e em todos os idiomas, como afirma nossa hipótese, se manteve a voz média em sua dimensão semântica. Houve, portanto, um abandono das marcas formais na morfologia dos idiomas, mas a voz média continua existindo pelo menos em alguns verbos de todos os idiomas.
No surgimento das primeiras gramáticas houve um processo de descaminho no tratamento dos idiomas. A gramática do idioma sânscrito de Panini e a gramática grega de Dionísio da Trácia, por razões diferentes, têm caráter fortemente normativo.
Enquanto os sacerdotes indianos estavam preocupados com o efeito sagrado dos rituais, em que um desvio de linguagem podia implicar a nulidade dos efeitos do ato litúrgico; os gregos se preocupavam com o processo de mudança lingüístico, considerando a mudança decorrente da expansão do número de usuários como corrupção da língua.
Desse ponto histórico em diante, cada vez mais o indivíduo passou a pertencer menos à comunidade e mais ao universo, ao império:
O que foi a filosofia, senão um esforço constante para consumar a ponte homem-mundo. Tanto é assim que sempre encontramos uma dificuldade de distinguir homem-mundo e, na dimensão epistemológica, a distinção sujeito/objeto, não excluímos do objeto o próprio eu do sujeito, que está presente em todos os atos do conhecimento: eu me conheço ao conhecer... Já o eu, enquanto sujeito ontológico, se distingue do mundo... (Idem, ibidem, p. 5).

Essa marca de relação sujeito–objeto na ação, segundo algumas correntes da psicologia, desapareceu como uma forma fixa, morfológica, na linguagem, mas permanece no inconsciente e se manifesta na enunciação. 
O filósofo da linguagem Émile Benveniste, em sua obra Problemas de Lingüística Geral, tomo I, desenvolve um artigo intitulado Ativo e médio no verbo, datado de 1950. Nele o autor aborda a particularidade da distinção entre voz ativa e voz medial nas línguas indo-européias, usando o conceito de diátese:
Toda forma verbal finita pertence necessariamente a uma ou outra diátese, e mesmo certas formas nominais do verbo (infinitos, particípios) igualmente se submetem. Equivale a dizer que tempo, modo, pessoa, número têm uma expressão diferente no ativo e no médio. (BENVENISTE, 1976, p. 184).

O filósofo francês não define explicitamente o conceito de diátese. No entanto, a partir da aproximação do campo da Medicina, é possível inferir uma relação entre a posição dele e a que apresentamos aqui. 
No texto de Benveniste o termo diátese é empregado para referir uma predisposição orgânica de alguns indivíduos a certas doenças. Semelhantemente aos organismos humanos, há uma característica imanente dos verbos, que os faz selecionar argumentos de tal forma que, no caso específico da voz média, veicule-se a informação de que o agente verbal efetua algo se afetando direta e concomitantemente. Assim, tem-se como exemplo nascer, verbo cujo significado além do espectro ativo: nascer é, para o sujeito, passar a integrar o mundo e interagir com ele; ainda que, em uma primeira instância, ele não pratique a ação ou controle-a, nascer é uma ação que afeta o sujeito em sua relação com a realidade, no dar-se conta da própria existência.

3. As relações médias entre sujeito, objeto e mundo
Como se pode observar, ao tomar-se como exemplo, no verbo nascer destaca-se o caráter filosófico da re-ligação do homem com o mundo. A categoria “voz” é a diátese fundamental do sujeito no verbo, conforme Benveniste. O homem transforma, modifica o mundo no mesmo instante em que transforma a si próprio: eis o princípio intrínseco à compreensão da voz média. O homem cumpre algo que se cumpre nele (idem, ibidem, p. 188). 
Em seu estudo, Benveniste dedica-se a distinguir as relações entre sujeito e processo na voz média por oposição à voz ativa. Desse modo, o linguista e filósofo destaca que, na voz ativa, os verbos marcam processos que se efetuam a partir do sujeito e fora dele, como em soprar. Tendência distinta se marca na voz média, uma vez que os verbos apontam a processos dos quais o sujeito é a sede e fica, portanto, no interior do processo. Será a transitividade verbal o elemento indispensável à conversão do médio ao ativo.
A voz passiva é compreendida por Benveniste como uma transformação histórica da voz média. O sujeito que primeiramente era visto como atuando no mundo pela intenção de atuar sobre si próprio passa, na voz passiva, a ser atuado pelo mundo. O agente converte-se em paciente.
Uma diferenciação entre duas modalidades de diátese é examinada ao final de Ativo e médio no verbo. Considerando-se a posição ocupada pelo sujeito quanto ao processo expresso pelo verbo, haveria para a voz ativa uma noção de diátese externa, enquanto que para a voz média haveria uma diátese interna. Por conseguinte, a diátese soma-se, na proposta de Benveniste, às categorias de pessoa e de número para delimitar o que chama de campo posicional do sujeito, isto é, o modo como o sujeito situa-se em relação ao processo verbal.
A contribuição deste trabalho de Benveniste está, parece-nos, no fato de que são apresentadas evidências lingüísticas para a compreensão da voz média, ainda que muitos gramáticos tenham-na associado a uma mera marca do interesse do sujeito quanto ao processo. Suportada pela língua, a marca medial supostamente tem seu valor na oposição à voz ativa – oposição esta que fragiliza o princípio de que a voz média se explica pela intervenção de fatores extralingüísticos. O homem está na língua e, assim sendo, o estudo da voz média é mais uma comprovação disso. . 
Voltando à nossa posição inicial, as línguas, desde as antigas, mantêm algumas formas que marcam a voz média, preservando laços dessa relação sujeito-mundo. Exemplo claro e rico dessa voz havia já no latim, nas formas dos verbos depoentes. O interessante é que muitos desses verbos chegaram ao português e fazem-se presentes ainda, embora nosso idioma não tenha, para isso, uma marca morfológica. Vejamos alguns exemplos. 
Verbo depoente é aquele que tem uma forma passiva e significado ativo. Um dos mais usados é loquor, falar. Sempre que falo, falo também para mim mesmo. Ao mesmo tempo em que falo para o outro, sou também destinatário da minha própria fala.
Outro verbo depoente é patior, sofrer, padecer. Há uma profunda dimensão de relação suejito-verbo-objeto expressa por esse verbo, pois a ação de sofrer recai sempre sobre o sujeito que sofre. E sofrer não é sempre sinônimo de padecer, embora essa dimensão sempre acompanhe o processo em sua profundidade. Sofrer transformação pode conter muito de positivo, mas é sempre desalojar-se. Há uma idéia de perda também, portanto.
O verbo patior contém, dentro de um conjunto mais amplo e complexo de significações, o conceito de paixão através do pretérito perfeito (passus sum). Daí se origina o adjetivo passional que evoca duplicidade de apego e dor. Além disso, traz uma dimensão relacional entre sujeito, predicado e duplo objeto, enquanto o sujeito, quando sofre pela dor alheia, tem o outro como objeto indireto (quem sofre, sofre por alguém) e a si mesmo como objeto reflexivo do próprio sofrer, o que faz parte da dimensão depoente do verbo e que não tem marca morfológica na língua portuguesa.
Voltando à língua latina, a forma verbal meditari é morfologicamente passiva, mas com dimensão média. Não se trata da forma ativa meditare, que já contém uma dimensão média, mas a passiva meditari manifesta uma relação medial mais intensa, pois a voz média não está apenas no meio entre a passiva e a ativa, mas está no meio entre o sujeito e o mundo. A predicação de meditari é meditar-se a si mesmo enquanto inserido no mundo.
Estas formas de manifestação da voz média não permanecem exclusivas à linguagem filosófica, nem são características apenas das línguas clássicas. Pelo contrário, estão presentes na linguagem de todo dia, em muitos tipos de expressões, como também fazem parte dos textos literários. 
Um exemplo claro do português do Brasil, na linguagem coloquial, é o dativo ético, em que aparecem expressões como Me morreu o gato, Agora me acontece mais essa ou Não é que ela me foi embora. Essas expressões mostram claramente a presença da voz média em nosso idioma. A diátese verbal, na mesma medida em que atinge o objeto, afeta concomitante o sujeito. 
Em Me morreu o gato, como nos demais exemplos, está clara a afetação do sujeito pela relação do predicado com o objeto. Não são, porém, apenas marcas negativas de perda. Podem ocorrer situações em que o sujeito recebe da relação verbo objeto, uma afetação de carga positiva, como é o caso do exemplo a seguir: Não é que ele me ganha o prêmio.
Ampliando o corpus de pesquisa, nosso grupo agora, em estudos que se encontram ainda em fase preliminar, constata que também na língua kaingang ocorre um processo semelhante no que tange à voz média. 
Tomamos o léxico e sentenças da língua Kaingang e investigamos neles a voz média. Atualmente, estamos ampliando o corpus de textos com a finalidade de aprofundar nossas pesquisas. O processo é lento devido à distância entre nossa universidade e as comunidades indígenas, bem como, devido a uma resistência inicial dos indivíduos, provocada pelos conflitos históricos do processo civilizatório, em narrar mitos ligados a sua cultura. 
Na fase inicial de estudos em que nos encontramos, tudo aponta para uma grande semelhança com o que ocorre nas línguas européias em geral. Como na língua diátese interna manifesta a própria essência epistemológica do ser humano que não se pode distanciar do mundo que observa, descreve e analisa, pois é indissociável dele.
Essa separação é apenas ontológica: olhar para o homem sujeito dissociado do universo, objeto da observação, é apenas um processo didático. Homem, universo e linguagem fazem parte de um todo que só pode ser concebido numa visão apodítica universal.
Em kaingang também existem verbos que, pela própria diátese interna, são médios, isto é, têm como objeto o mesmo referente do sujeito. Analisamos verbos como mur ou munmur (nascer), mỹ kaga (sofrer, padecer) gỹm ke (morrer, apagar), fénhféj (brotar), kagãg (adoecer), os quais claramente manifestam a voz média.
Em mur, a ação de nascer parte de sujeito e recai sobre ele. Sobre o sujeito que nasce recai a ação do próprio nascer. O mesmo ocorre com os demais verbos acima relacionados: as ações de sofrer em mỹ kaga, de morrer, apagar em gỹm ke, de brotar em  fénhféj e de adoecer em kagãg são exemplos que deixam evidente que também na língua indígena ocorre o mesmo fenômeno, o mesmo processa das línguas européias. Esses verbos contêm, em sua dimensão semântica, a diátese média, isto é, são médios por sua própria natureza sintático-semântica.

4. Conclusão
A análise acima parece permitir-nos concluir que a voz média faz parte da estrutura profunda de todos os idiomas. Parece pertencer à diátese específica de alguns verbos que em sua dimensão semântico-formal estão ligados a fenômenos fundamentais ligados à própria existência humana e ao desenvolvimento da nossa espécie no processo histórico que nos formou e nos caracteriza.
É, portanto, relevante investigar mais profundamente a presença e o desenvolvimento da voz média na linguagem dos indígenas de hoje, na região sul do Brasil. Isso permitirá um entendimento mais profundo da linguagem e do próprio homem.
Referências bibliográficas
BENVENISTE(1976), Émile. Ativo e médio no verbo. In: Problemas de Lingüística Geral. Tomo I. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. da Universidade de São Paulo.
CAMACHO(2008), Roberto Gomes.Em defesa da categoria de voz média no português. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244502003000100004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 10/8/2008.
MIRA MATEUS(2003), Maria Helena et. al. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho.
SPROVIERO(2008), Mário Bruno. Linguagem e consciência: a voz média. In: http://www.hottopos.com/mirand3/linguage.htm. . Acesso em 10/8/2008.

terça-feira, 22 de abril de 2014

AS GRANDES NAVEGAÇÕES - PORTUGAL - BRASIL - ORIENTE -TECNOLOGIA DOS JUDEUS ESPANHÓIS




         Até 1385, reinava em Portugal a família de Borgonha, de origem francesa. O décimo rei do país funda a Dinastia de Avis. O que propiciou uma era de progresso no reino foi a mudança na família regente, no século XIV.
         D. Fernando I, último rei da dinastia de Borgonha, era casado com D. Leonor Teles de Mendonça. A única filha do casal, D. Beatriz, casara-se com D. João I de Castela. Com a morte do rei Fernando, o país ficaria sob o domínio estrangeiro.
         D. Pedro I de Portugal, pai de Fernando, tivera com uma amante, D. Teresa (Tareija, segundo o cronista Fernão Lopes), um filho, João, que, portanto, seria meio irmão de D. Fernando.
         D. João, aos 6 anos, é nomeado Mestre da Ordem de Avis, uma antiga ordem de cavalaria de Portugal. Com a possibilidade da anexação de Portugal, ao reino de Castela, o bastardo é lembrado e forma-se a dinastia de Avis, de homens cultos que vai dar início, através do Infante D. Henrique, filho de D. João I e irmão do rei D. Duarte, aos estudos técnicos de navegação.
         Esses reis dedicavam-se, eles próprios, aos estudos e incentivaram a cultura no país. O primeiro grande processo de recuperação da cultura regional iniciou com o patrocínio dos primeiros grandes cronistas. Fernão Lopes foi o primeiro deles, seguido Gomes Eanes de Azurara. Em seguida veio a Escola de Sagres, que propiciou conhecimentos para que se fizessem as navegações de grande curso.
         As grandes navegações portuguesas têm uma forte relação com alguns sábios judeus. É preciso retornar à Roma antiga e ao ano 70 d. C., quando o general romano Tito, filho do imperador Vespasiano Flávio, destruiu a cidade e o templo de Jerusalém, levou uma multidão de judeus como escravos para Roma e dispersou os demais pelo mundo, proibindo-os de permanecerem em seu país.
         Na maior parte dos países para os quais emigraram, foram perseguidos e maltratados, de modo especial no Império Franco e no poderoso Sacro Império Romano Germânico, porém, na Espanha eles não eram molestados e por 1400 anos criaram uma comunidade rica e progressista. Durante os setecentos anos de dominação árabe na Península Ibérica, do século VIII à primeira metade do século XV, como povos do Oriente Médio, conviveram muito bem com os invasores.
         Porém, com a progressiva implantação do cristianismo, que culminou com a poderosa corte dos reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão, a riqueza dos judeus atraiu a cobiça dos poderosos. Foram-se criando restrições aos empreendimentos judaicos e acabaram pela expulsão deles.
         Em 31 de março de 1492, em Alhambra (Por isso Decreto de Alhambra), uma fortaleza na comunidade da Andaluzia, próxima a Granada, foi assinado um decreto condenando à morte todos os judeus da Espanha. As alternativas eram a conversão ao cristianismo ou a fuga do país. Milhares foram executados e seus bens confiscados. Os vizinhos já invadiam suas propriedades e as pilhavam mesmo antes das execuções.
         Pois, nessa ocasião, alguns sábios judeus refugiaram-se em Portugal. O Infante Dom Henrique, filho do rei D. João I e irmão de D. Duarte, já por volta de 1417, havia fundado o povoado de Sagres, onde fomenta e desenvolve um centro de estudos das ciências da navegação, que daria origem à Escola de Sagres. Essa escola vai colher seus melhores frutos com D. Manuel, conhecido como o venturoso, que reina em Portugal na segunda metade do século XV e início do século XVI.
         Voltando aos judeus, Judá Cresques, fugido de Barcelona, auxiliou os portugueses no desenvolvimento da ciência cartográfica. Tornou-se chefe do Observatório Náutico de Sagres. Trouxe para essa escola um grupo de sábios na área da astronomia e tecnologia. Ensinou também aos portugueses o emprego da bússola.
         A bússola e o quadrante são muito úteis às navegações, mas a grande novidade a bordo dos nossos navios neste começo de século é o astrolábio. É um disco, metálico ou de madeira, de 360 graus no qual estão representados todos os astros do zodíaco. Desde a Antiguidade era usado em terra firme, para calcular a posição e o movimento dos astros no céu. O que os portugueses fizeram com a ajuda dos sábios estrangeiros foi simplificá-lo e adaptá-lo para uso em alto-mar. O astrolábio permite calcular a latitude pela passagem meridiana do Sol, ou seja, ao meio-dia, quando o astro se encontra no seu ponto mais elevado no céu. Para isso, é necessário enquadrar o raio solar em dois orifícios existentes no aparelho e, em seguida, fazer alguns cálculos matemáticos.
         Uma contribuição decisiva para a aventura portuguesa nos mares foi dada, nos últimos anos, por um sábio judeu de origem espanhola. Abraham-ben-Samuel Zacuto, chamado Abraão Zacuto, é o autor de Almanaque Perpétuo, obra de astrologia (como se chamava a astronomia nessa época) que, adaptada ao uso náutico, se tornou fundamental nas expedições do descobrimento. Com 316 páginas e 56 tabelas, o almanaque de Zacuto fornece todas as informações necessárias para a determinação da latitude, incluindo as chamadas declinações, que são as diferentes posições do Sol no zodíaco a cada dia do ano. Redigido originalmente em hebraico, o almanaque foi traduzido para o latim por outro estudioso judeu, José Vizinho, médico do rei dom João II. 
         Natural de Salamanca, a cidade do saber na Espanha, Zacuto teve de partir depois da expulsão dos judeus pelos reis católicos, em 1492. Imediatamente foi convidado a trabalhar em Portugal como conselheiro de dom João II e, depois, de dom Manuel. Deu instruções pessoais a Vasco da Gama antes da partida da expedição que descobriu o caminho das Índias.
          Pedro Álvares Cabral, que ao descobrir o Brasil chamava-se Pedro Álvares Gouvêa, notável sobrenome de sua mãe judia o que pode explicar a razão de ter ele selecionado para a viagem ao Brasil uma tripulação constituída basicamente de cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianismo) também conhecidos como marranos, ou seja, convertidos à força.
         Seu sobrenome era Gouvêa, o da mãe, porque havia, em sua pátria, a lei do morgado. Assim eram chamados os primogênitos de cada família. O morgado herdava os bens da família para que não houvesse partilha e o consequente empobrecimento. Como não havia previdência estatal, o morgado responsabilizava-se pela manutenção dos pais.
         Ora, Pedro Álvares era o segundo filho, dessa forma recebeu apenas o sobrenome da mãe, situação em que se encontrava em1500 quando descobriu o Brasil. Somente em 1502, com a morte de seu irmão mais velho João Fernandes Cabral, ele recebeu o sobrenome Cabral. Cabral viajou para a América e, a seguir, para o oriente em caravelas.
         “As caravelas são um prodígio da nossa tecnologia e a vanguarda das expedições. São navios velozes e relativamente pequenos. Uma típica caravela portuguesa tem de 20 a 30 metros de comprimento, de 6 a 8 de largura, 50 toneladas de capacidade e é tripulada por quarenta ou cinquenta homens. Com vento a favor, chega a percorrer 250 quilômetros por dia. Utiliza as chamadas velas latinas, triangulares, erguidas em dois ou três mastros. Elas permitem mudar de curso rapidamente e, em zigue-zague, velejar até mesmo com vento contrário.”  “A grande vantagem das caravelas sobre os pesados navios mercantes utilizados no Mediterrâneo por genoveses e catalães é a versatilidade. Ideais para navegação costeira, podem entrar em rios e estuários, manobrar em águas baixas, contornar arrecifes e bancos de areia. E também zarpar rapidamente, no caso de um ataque imprevisto de nativos hostis.”
         “As naus são barcos maiores e mais lentos. A capitânia de Pedro Álvares Cabral é um navio de 250 toneladas e, ao partir, levava 190 homens. Elas são a ferramenta essencial no comércio já estabelecido com a África e no nascente intercâmbio com as Índias. Na longa viagem de ida, transportam produtos para a troca, provisões, guarnições militares, armas e canhões. Na volta, trazem as mercadorias cobiçadas pela Europa. Suas velas redondas são menos versáteis que as das caravelas, mas permitem uma impulsão muito maior com vento favorável. As caravelas, ao contrário das naus, levam pouca carga. Nem é necessário. Nessa época de grandes descobertas, a carga mais preciosa que elas podem transportar é a informação sobre as rotas marítimas e as terras recém-contatadas – um produto que não pesa nada, mas é vital para as conquistas no além-mar.”
         “O grande mérito de Portugal não está na descoberta de novidades científicas, mas na assimilação de conhecimentos, recentes ou antigos, e sua aplicação com propósitos bem definidos, que é abrir rotas de comércio e agregar terras produtivas, onde não haja governo cristão, às propriedades da coroa. As técnicas que hoje permitem aos nossos navios cruzar o Mar Oceano, dobrar o Cabo da Boa Esperança e chegar às Índias são herança dos fenícios, dos egípcios, dos gregos e de várias outras civilizações antigas, guardadas e aprimoradas pelos mouros nos últimos séculos. A vela latina, que equipa nossas caravelas, foi trazida pelos árabes do Oceano Índico, depois de conquistarem o Egito. O uso do compasso para anotar a direção e a trajetória do navio chegou ao Ocidente no começo do século XIII. A confecção de cartas náuticas os italianos também aprenderam dos árabes, um século atrás. O astrolábio, um revolucionário instrumento de localização utilizado pela esquadra de Cabral na Terra de Santa Cruz, existe desde a Antiguidade e foi recuperado pelos astrólogos medievais para observar, em terra, o movimento e a posição dos astros no firmamento. Mesmo a bússola, fundamental nos descobrimentos, já é usada no Mediterrâneo há muito tempo por genoveses, venezianos e catalães.”
         “São muitos os desafios científicos que os descobrimentos impuseram a Portugal. O maior deles, evidentemente, é sair ao mar alto e voltar para casa com segurança. Até pouco tempo atrás, a navegação se restringia aos portos europeus e da área em volta do Mediterrâneo, todos mapeados e bem conhecidos do mundo civilizado desde a época dos romanos. Navegava-se mais por experiência – que em Portugal chamamos de "conhecenças" – do que por instrumentos. O único tipo de carta náutica disponível até anos atrás eram os mapas do Mediterrâneo desenhados pelos italianos no século XII. Conhecidos como carta-portulano, forneciam direções e distâncias aproximadas entre os principais portos europeus e africanos.” (http://veja.abril.com.br/idade/descobrimento/p_040.html)
         A grande façanha marítima portuguesa teve como uma de suas maiores e mais bem sucedidas conquistas a descoberta do Brasil. Sabe-se hoje que não se tratava propriamente de uma descoberta. Outros navegadores já haviam aportado por aqui, mas guardavam isso em segredo por não terem condições de tomarem posse de áreas tão vastas.
         Veja-se que D. Manuel gastou o orçamento de um ano da corte portuguesa para fazer sem empreendimento. Sorte dele é que os produtos levados do oriente no retorno cobriram com lucro imenso essas despesas.

         Os turcos otomanos haviam impedido as caravanas europeias em direção ao oriente de passarem por seus territórios. Estava, portanto, o continente europeu carente dos principais produtos orientais como pimenta e temperos. Isso proporcionou aos portugueses a receberem por suas cargas de pimenta um lucro de mais de mil por cento.