sexta-feira, 25 de abril de 2014

UM OLHAR PRAGMÁTICO SOBRE AS FORMAS DE CORTESIA DO DISCURSO GAY - TRABALHO APRESENTADO NA UNIVERSIDADE ABERTA DE LISBOA -





UM OLHAR PRAGMÁTICO SOBRE AS FORMAS DE CORTESIA DO DISCURSO GAY
Autores: Prof. Dr. Oscar Brisolara e Ema Helena Pontes Torino 

Resumo:
Este trabalho se propõe a lançar um olhar interpretativo pragmático sobre as formas de cortesia e descortesia do discurso gay no Brasil, fundado nos princípios reguladores da interação discursiva da Teoria da Relevância proposta por Sperber e Wilson, a partir da pragmática de Paul Grice, considerando de modo especial as proposições de Brown e Levinson. Desenvolve-se cada vez mais intensamente um discurso próprio dos grupos gays, com formas próprias específicas de cortesia e descortesia na interação sociológica. Os procederes dos falantes em interação discursiva baseiam-se, não apenas em processos linguísticos, mas também em regras de outra natureza, que seguem princípios mais universais. O casal de pensadores ingleses Dan Sperber e Deirdre Wilson propôs a teoria da relevância como instrumento para dar conta da linguagem em uso, em contexto, relacionada com o momento, com o falante e com o ouvinte. Fundam-se no princípio da cooperação entre os interlocutores que negociam significados, associado ao princípio da cortesia e às máximas conversacionais. Há um processo ritualizado na comunicação humana que consagra formas corteses e descorteses de relacionamento linguístico. Brown e Levinson aprofundaram esses estudos aplicando-os às formas de cortesia. Os atos ilocutórios presentes no corpus analisados à luz dos teóricos citados (diálogos do personagem homossexual Crô Valério, interpretado pelo ator Marcelo Serrado nos capítulos exibidos nos dias 22 e 23/03/2011 na novela Fina Estampa da Rede Globo de Televisão) permitem-nos perceber que o grupo social formado pela orientação sexual em questão, tem suas formas próprias de cortesia. Este estudo dedica-se à abordagem das estratégias discursivas de cortesia específicas dos grupos de falantes homossexuais, tanto em suas relações internas dentro do grupo abordado, quanto em relação aos indivíduos de outros grupos sociais não incluídos nessa categoria de cidadãos; objetiva-se, assim, problematizar esses atos de fala, tão presentes no país.

Abstract: 
This work intends to shed a pragmatic interpretation of both forms of courtesy and discourtesy of gay speech in Brazil, based on the regulating principles of discursive interaction of the Theory of Relevance by Sperber and Wilson, from the Paul Grice’s pragmatic. It grows, ever more intensely, a speech typical of gay groups, with their own specific forms of courtesy and discourtesy on sociological interaction. The mechanics of speech in discursive interaction are based not only on linguistic processes, but also in other kinds of rules, which follow more universal principles. This study is dedicated to addressing the discursive strategies of courtesy of specific groups of homosexual speakers, both in its internal relations within the group approached, as compared to individuals from other social groups not included in this category of citizens; the aim is therefore to problematize these speech acts, as present in the country.
Palavras-chave: cortesia; homossexualidade; linguagem/identidade.
Introdução:
O presente trabalho faz uma abordagem da polidez lingüística empregada no discurso dos homossexuais brasileiros, cujas características se têm diferenciado como se pode observar em vários romancistas, e cujos traços se fazem presentes posteriormente nas telenovelas do país.
Nosso estudo focaliza a cortesia linguística relacionada aos fenômenos da comunicação atual. Estabelecendo laços entre a linguística e a linguagem própria dos homossexuais, foi lançado recentemente um dicionário de expressões gays que recebeu o título de "Aurélia, A Dicionária da Língua Afiada". Esse título é uma evidente alusão ao famoso "Dicionário Aurélio", de Aurélio Buarque de Holanda. "Aurélia", lançado pela Editora da Bispa, contém 1.300 verbetes todos descritos, na forma de um dicionário tradicional. 
Os autores (o jornalista Ângelo Vip, e o professor Fred Libi) oferecem ao público em geral o “bajubá”, linguagem usada pelos travestis. O que antes era um código entre os homossexuais, agora se socializa e, de acordo com ele, o livro foi feito através de pesquisas realizadas há cerca de dez anos, por investigadores brasileiros e portugueses. De acordo com o que contempla o nosso estudo, procuramos enfatizar a polidez presente nos diálogos retratados na novela brasileira “Fina Estampa”, que reflete hoje, esta nova realidade linguística.
Relevância e objetivos:
Este trabalho se justifica pela importância que o tema apresenta para a sociedade em geral e de modo especial para os pesquisadores da área da linguagem face à necessidade de se analisar as novas conotações dadas a uma série de elementos do léxico da língua portuguesa surgidos dentro da linguagem específica dos grupos gays, bem como as criações lexicais que emergiram a partir da influência da linguagem própria desses grupos.
Movidos pela novidade do tema e pela contribuição que este estudo pode trazer para a superação de lacunas no conhecimento linguístico, direcionamos esta pesquisa para este campo específico da sociolinguística, a fim de aprofundarmos o entendimento da língua em situações específicas de uso.
Referencial teórico:
A análise pragmática segue uma trajetória histórica conhecida que apenas vamos recuperar brevemente, no entanto somente naqueles aspectos que contribuem para a presente análise. Os estudos pragmáticos vêm dos primórdios do pensamento ocidental a partir do embate radical entre Parmênides e Heráclito que não cabe nos limites desta exposição. Continuam no embate platônico-aristotélico. Aristóteles estabelece todos os fundamentos teóricos que vão servir sustentação de todos os pragmaticistas.
Porém, é no século vinte, a partir da filosofia positivista, que a pragmática vai se consolidar como uma proposta consistente para fundamentar as análises em diversas áreas do pensamento filosófico. A pragmática mais recente em termos de linguagem começa com a Teoria dos Atos de Fala, cujos fundamentos se encontram nos textos de doze conferências proferidas por John Austin na Universidade de Harvard, em 1955, que foram publicadas postumamente no livro How to do Things with Words, em que aparece o conceito fundamental defendido pelo autor, ou seja, que dizer, mais do que transmitir informações, é, sobretudo, uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante.
Nesta mesma direção seguem os trabalhos de Paul Grice, quando, em 1975, publica sua obra Logic and Conversation, na qual propõe o Princípio de Cooperação (seja cooperativo) e as quatro Máximas Conversacionais: a) máxima de quantidade – não diga nem mais nem menos do que o necessário; b) máxima de qualidade - não diga o que você não sabe ser verdadeiro; c) máxima da relevância – só diga o que é relevante; máxima de maneira - seja claro, conciso e ordenado; evite obscuridade, ambigüidade e prolixidade.
Dando continuidade aos estudos pragmáticos, Dan Sperber e Deirdre Wilson denominam de Princípio da Relevância, no livro intitulado Relevance: communication and cognition, o fato de qualquer enunciado, destinado a algum ouvinte, conter em si a presunção de sua própria relevância. O ouvinte, a partir do enunciado recebido, deve estabelecer, através de um raciocínio dedutivo, em ordem de acessibilidade, aquelas implicações que devem ser mais relevantes naquele contexto. Esse é o princípio da relevância.
A Teoria da Relevância de Sperber e Wilson complementa o arcabouço teórico deste trabalho. Ela assume alguns dos pressupostos griceanos, porém diferencia-se ponto de vista de Grice ao reconhecer que a máxima da relevância tem um alcance maior que as demais máximas conversacionais, a ponto de sobrepor-se a estas. 
Por fim, Penelope Brown e Stephen Levinson, da universidade inglesa de Nottingham, na obra Politeness: Some Universals in Language Usage conduzem os estudos pragmáticos para o campo da cortesia no que diz respeito aos bons costumes e à etiqueta, definindo o que é considerado cortês e descortês em diferentes contextos culturais. Esses autores fazem um trabalho complementar ao Princípio de Cooperação de Grice. O que é considerado elegante e educado em determinada cultura, em outra, pode ser interpretado como grosseiro e descortês. Tomam, de Erving Goffman, a diferenciação entre cortesia negativa, que envolve expressões do tipo: se você não se magoa, não desejando ofendê-lo; e cortesia positiva, manifesta em expressões consagradas de tom positivo como: por favor, com licença, com sua permissão e tantíssimas outras de igual força semântico-pragmática.
O léxico de todos os idiomas oferece termos considerados corteses e descorteses, além do mais, há ferramentas linguísticas específicas para demonstrar reconhecimento, deferência, respeito, posição social, do emissor em relação ao receptor e respostas previstas por parte deste último. Esses instrumentos linguísticos têm por finalidade construir e manter a imagem social do indivíduo ou tentar recuperá-la. Nesse intuito, ele usa também estratégias linguísticas de negociação para preservar a imagem do outro, de modo especial em situações em que processos agressivos à imagem alheia podem vir a ser perigosos em relação à imagem de si mesmo perante a comunidade.
Como a imagem é vulnerável, há atos que lhe são ameaçadores, sendo necessário mitigá-los com a finalidade de proteger a própria imagem. A imagem pública do indivíduo tem duas faces, uma positiva e outra negativa. A primeira busca a aceitação do indivíduo pelo grupo; a segunda, visa a garantir-lhe o espaço de ação sobre o grupo. 
Os autores da presente proposta buscam em Goffman o conceito de território próprio do indivíduo, do qual fazem parte seus pensamentos e sentimentos, questões pessoais íntimas, seu espaço temporal e físico e a própria imagem corporal que se vão constituir numa boa imagem a preservar e uma má imagem a evitar. 
Como o indivíduo vive em simbiose com o meio social em que está inserido, tem que se comportar de acordo com um conjunto de regras de polidez que são essenciais na construção e manutenção da própria imagem, que variam de acordo com os costumes e culturas e das quais, desde a mais tenra infância, o sujeito se vai inteirando e cujo manejo vai aprendendo. 
Vale ressaltar que as posições de falante e ouvinte não são fixas. Assim, os indivíduos envolvidos no processo comunicativo alternam-se, ocupando ora uma, ora outra posição. Esse processo de dupla direção caracteriza-se pelo diálogo de gays com outros gays, e de gays com não-gays. Essa situação pragmática dos participantes do discurso influencia as escolhas linguísticas.
Desse modo, aprende que toda a ofensa ao território e à imagem do outro, se não é reparada assim que percebida, representa uma ameaça ao próprio território e à própria imagem positiva. Daí surge todo um ritual que parte das formas de recepção próprias da interação humana, as quais vão muito além das formas linguísticas, perpassando todo o processo de comunicação e convivência dos indivíduos em sociedade.
É justamente neste campo que o discurso gay parece estabelecer uma criativa quebra de expectativas, num emprego do léxico com novas significações marcadas pelo discurso risível, pelo satírico, pela ironia e desfaçatez, chegando, nas situações mais extremas, ao deboche, ao escrachamento e mesmo à ofensa.
Uma estratégia linguística muito eficiente utilizada no discurso gay aqui analisado é o jogo estratégico dos modificadores tanto nominais quanto verbais na construção e desconstrução das faces dos atores desse jogo discursivo. O texto que passaremos a analisar se trata de um discurso fictício, no qual o autor procura reproduzir a fala diária dos indivíduos desse grupo social, reconstruindo as situações diárias de fala com todas as estratégias de linguagem que lhes são próprias. O próprio léxico assume um significado específico para cujo entendimento nem sempre o contexto pragmático é suficiente para elucidar. Por isso, anexamos fragmentos de um dicionário específico dos termos gays.
Julgamos fundamental salientar que o discurso que passamos a analisar é próprio de um grupo social que tem um alto índice de rejeição por parte dos grupos sociais mais conservadores, o que induz os usuários a um tom muitas vezes agressivo e irreverente, que caracteriza um processo social de reação com o objetivo de sobrevivência e busca de um espaço social próprio, como manifestação do instinto de preservação.
Metodologia: 
Este trabalho emerge de uma pesquisa exploratória que tinha como objetivo identificar, em textos de autores brasileiros, a recorrência à linguagem dos homossexuais, para abordar-lhe as características específicas que ela vem assumindo, bem como selecionar os suportes teóricos que nos pareciam mais adequados para sua análise. Em função de inúmeros autores recorrerem a esse tipo de linguagem, optamos por eleger esse gênero, hoje muito popular, de modo especial na telenovela brasileira. Para o presente estudo, escolhemos a novela “Fina Estampa”, produzida e exibida pela Rede Globo de Televisão, que traz abundantes exemplos dessa linguagem. 
Escrita por Aguinaldo Silva, Nelson Nadotti, Patrícia Moretzsohn e Maria Elisa Berredo, com colaboração de Maurício Gyboski e Rodrigo Ribeiro, sob a direção de Marcelo Travesso, Ary Coslov, Claudio Boeckel, Marco Rodrigo e Marcus Figueiredo, e com direção geral de Wolf Maya, a telenovela é atualmente exibida em Portugal, no canal SIC, desde 21 de maio de 2012.
Sua trama conta a história da açoriana Griselda. De família muito pobre, ela veio para o Brasil aos cinco anos. Aos catorze, se casou e, aos quinze anos, foi mãe. Sozinha, criou os três filhos, pois seu marido, Pereirinha, era pescador e morreu em alto-mar. Para sobreviver e criar seus meninos, ela passou a fazer uma das únicas tarefas que havia aprendido fora do serviço doméstico: mecânica. 
O destino de Griselda cruza com o do chefe de cozinha René Velmont, quando esta faz um reparo no carro dele e passa a fazer pequenos serviços em sua mansão, assim ela conhece a esposa dele, madame Teresa Cristina, que tem a seu dispor o seu fiel mordomo, Crodoaldo Valério, apelidado de Crô, interpretado pelo ator Marcelo Serrado; Crô atua num dos papeis principais da novela e foi colocado na trama como uma referência aos homossexuais brasileiros. Sua linguagem representa perfeitamente a polidez linguística própria desse grupo sociológico. 
A análise da linguagem deste personagem no folhetim permitiu-nos penetrar mais profundamente na temática da linguagem dos gays e contribuiu para o melhor entendimento das teorias linguísticas dessa área específica da pragmástica.
Análise/Resultados:
Os fragmentos a seguir analisados fazem parte da transcrição de diálogos do personagem homossexual Crô Valério, já citado anteriormente. Fazem parte dos capítulos exibidos nos dias 22 e 23/03/2011 da novela em análise. A cópia completa desses diálogos faz parte dos anexos deste trabalho. Como se poderá observar, as estratégias de polidez utilizadas pelo falante variam conforme as relações que se estabelecem na situação discursiva, dependendo do risco de ameaça do falante ou do ouvinte na interação discursivo-pragmática estabelecida entre ambos. 
Foram selecionadas expressões ou discursos marcados pela ironia, muitas vezes propositalmente ambíguos, com significação estritamente ligada ao contexto em que são produzidos, os quais se tornam incompreensíveis, fora de seu processo de produção. Somente utilizando um modelo de interpretação pragmática o ouvinte pode acessar uma série de informações contextuais fundamentais ao processo de compreensão. O mesmo acontece com a ironia, pois a interpretação pragmática do enunciado possibilita ao intérprete a construção de uma significação diametralmente oposta àquela sugerida pela sentença tomada de forma isolada. O contexto é fundamental na identificação do tom de um discurso.
Brown e Levinson salientam que a diferença no uso da linguagem que não leva em consideração apenas a sintaxe e a semântica. Contam também com aspectos pragmáticos, ou seja, o conhecimento de mundo em relação ao interlocutor e seu posicionamento em relação ao resultado desejado. Não se trata de uma simples polidez orientada por princípios de educação, mas uma forma de polidez que visa a obter resultados pragmáticos do processo comunicativo. Consiste num uso estratégico da linguagem. De certo modo, a polidez pragmática constitui-se uma quebra ou manipulação das máximas de Grice. 
Dentro do discurso dos gays, elegemos apenas as formas de cortesia ou descortesia que permeiam os relacionamentos entre os actantes. Nessa perspectiva, muitas expressões podem constituir-se em ameaças à face dos actantes. O discurso gay constrói um mundo de valores em relação à pessoa do outro, empregando um léxico criativo e cifrado, impregnado de implicaturas em relação tanto ao interlocutor quanto ao referente humano. 
O eixo principal do diálogo transcrito tem como temática a disputa entre dois serviçais de uma casa da alta burguesia: o mordomo e o motorista, ambos homossexuais. O mordomo é homossexual manifesto; o motorista, mantém discrição quanto a sua sexualidade diante dos demais, apenas se comporta como tal diante do mordomo. As falas analisadas a seguir fazem parte das cenas iniciais do diálogo em que Crô está na praia, de manhã, antes de ir ao trabalho, e dialoga com outros homossexuais. Essa escolha deveu-se à existência nessa passagem de muitos termos e expressões específicos da linguagem do grupo em observação.
Vejam-se as expressões empregadas em que aparece o emprego cifrado de alguns termos, seguido da respectiva análise e interpretação:
Oi, Barbie,... Neste exemplo do diálogo aparece uma forma de tratamento em que o homossexual Clodoaldo, tratado pela corruptela Crô, chama seu colega de Barbie. Barbie, no dicionário gay bajubá significa homossexual malhado e afeminado. Portanto, essa expressão funciona como modificador realizante em relação a outro homossexual identificado no diálogo como Andressa. Um elogio, na teoria de Brown e Levinson, opera como uma forma de cortesia positiva que tem efeito na construção de uma imagem positiva da face do emissor Clodoaldo perante o interlocutor destinatário Andressa.
Na sequência, aparece a expressão: E aí, mafiosas,... de um outro gay identificado como Leona que entabula um diálogo com os dois primeiros. Mafiosa, no mesmo dicionário acima mencionado significa homossexual crítico, que costuma observar tudo e todos com um certo olhar de desdém, arrogância; geralmente tem uma língua muito afiada, critica e fala mal de todos. Nesse tratamento há traços de descortesia, pelo menos a uma primeira leitura, que é, porém, abrandada pelo diálogo entre Crô e Andressa a respeito do novo interlocutor, que precede as palavras dele: Lá vem a Leona, ainda bem que hoje não veio com aquela amapoa loira abusada. Esse comentário induz o leitor a interpretar como ironia o tratamento dado por Leona a Crô e Andressa. Essa leitura é reforçada pelos modificadores amapoa loira abusada, em que o pode-se destacar o conceito de amapoa significa mulher, definida como loira abusada, marcas que permitem estabelecer uma oposição entre o novo interlocutor e a mulher indesejada.
Portanto, trata-se de uma criativa forma de cortesia positiva com que o novo interlocutor se apresenta aos comparsas, elogiando-os como colegas críticos, observadores, superiores aos demais.
Prosseguindo o diálogo, Crô se refere a um outro homossexual tratando-o de arara. Segundo o dicionário gay, arara significa homossexual de voz estridente. Em relação a essa arara, afirma que parece que fez a Elza na Nefertite de sunga preta, em que Elza é roubo e Nefertite, homossexual velho, mas que ainda conserva um estilo aristocrático. Portanto, há uma forma velada de referir-se a outro gay como ladrão. Na sequência do diálogo, Crô afirma que a arara ladra tá dando pinta pro michê que tá com ela. Sendo o significado de michê garoto de programa, ele está gastando o resultado do roubo com um garoto de programa.
Andressa afirma então: Tô bege, to passada com esse bafão na praia. Significa o mesmo que “tô boba”, “tô passada”, abismada. Ao que Crô responde: Acorda, Alice, tem bafo todo dia nesta praia, em que Alice tem o sentido de homossexual tolo, que vive num mundo imaginário (país das maravilhas). Na linguagem gay, Alice funciona como ironia negativa, ou seja, uma cortesia negativa em quem o gay Crô chama seu colega Andressa de ingênuo e sonhador. Dessa forma ele se propõe como crítico, inteligente, perspicaz para entender o significado do universo e das ações alheias. Trata-se, portanto, de uma estratégia de construir sua imagem e sua face diante dos colegas e diante dos heterossexuais, defendendo o princípio da igualdade dos homossexuais com os demais cidadãos.
Retomando a análise em seu conjunto de argumentos dentro da proposta de Brown e Levinson, pode-se afirmar que o discurso gay emprega estratégias linguísticas como processo de afirmação de seus membros como sendo indivíduos iguais aos demais de sua sociedade. Que a linguagem gay emprega ferramentas para construir a imagem coletiva do grupo através de formas de tratamento corteses e descorteses específicas na ocupação de espaços que a sociedade, muitas vezes, tenta recusar.
Quando um sujeito gay emprega em seu discurso elementos morfológicos cifrados que assumem novos sentidos diferentes dos semanticamente consagrados para se comunicar, ele está demonstrando capacidade criativa de que, em sendo diferente, é igualmente importante e tem direito de ser respeitado e prestigiado na comunidade a que tem a direito de pertencer, mantendo-se diferente.
Considerações finais: 
As reflexões precedentes permitem-nos constatar, à luz das teorias lingüísticas pragmáticas que abordam cortesia/descortesia, a existência de uma inovação linguística na língua portuguesa, no que diz respeito aos grupos sociais. Conforme Fernando Pessoa, “O ambiente é alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora.” 
Os indivíduos pertencentes a grupos gays vivem em permanente atrito com os grupos mais conservadores da sociedade. Dessa ameaça, surgem estratégias discursivas de autopreservação. Para subverter essa situação, emerge um discurso cifrado, acessível apenas aos iniciados. Trata-se de uma estratégia para construir a imagem do indivíduo e do grupo, criar uma face diferente, e garantir um território próprio.
A polidez discursiva presente nos discursos homossexuais não é um modismo, nem se fez de forma imediata. É consequência da trajetória de um grupo social que busca estratégias de afirmação na própria linguagem, que é uma das manifestações da essência do indivíduo.

BIBLIOGRAFIA:
AUSTIN, John L (1965). How to do Things with words. New York: Oxford University Press.
BROWN, P e Levinson, S. C. (1987) Politeness – Some universals in language usage. Cambridge: Cambridge University Press.
DISCURSO.http://www.esa.esaportugues.com/programa/Lingua/discurso.htm. Disponível em 02/07/2012. Acesso em 07/maio/2012.
FOLHA.COM. Polêmico, “Aurélia” reúne termos do mundo gay. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u60885.shtml. Acesso em 07/mai0/2012. 
GAYPÉDIA. Diálogo de um encontro casual entre amigos homossexuais na praia. Disponível em http://www.gaypedia.com.br/index.php?title=Bajub%C3%A1. Acesso em 07/maio/2012.
H.P. Grice. (1975) Logic and Conversation, in: P. Cole and J.L. Morgan (eds), Sintax and Demantics, vol 3. New York. Academic Press.
SPERBER, D. & Wilson, D. (1986). Relevance: communication and cognition. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. The Language and Thought Series.
PESSOA, Fernando. A Quintessência do Desassossego. Ed. Artes e Ofícios, 2007. Porto Alegre – RS.

ANEXOS
ANEXO 1
Diálogo de um encontro casual entre Crô e seus amigos homossexuais na praia. O mordomo Clodoaldo Valério, todos os dias, vai bem cedo á praia, antes de ir para o trabalho:
- Crô: Oi, Barbie, veio aproveitar o sol, abalando no biquíni hem?
- Andressa: Com certeza! Praia cheia hoje, daqui a pouco aqui do lado vai ter babado, muita confusão e gritaria. Lá vem a Leona, ainda bem que hoje não veio com aquela amapoa loira abusada.
- Leona: E aí mafiosas, posso saber por que aquele povo ali grita tanto?
- Crô: Tem uma arara ali, parece que fez a Elza na Nefertite de sunga preta, e ainda tá dando pinta pro michê que tá com ela...
- Andressa: Tô bege, to passada com esse bafão na praia...
- Crô: Acorda, Alice, tem bafo todo dia nesta praia, por isso gosto de vir aqui, me divirto muito...
- Leona: Nossa aí vem um alibã, agora ele resolve tudo, melhor fazer a egípcia e aproveitar o sol...
- Andressa: Se joga, querida, se joga...
- Crô: É, se joga, linda...
Crô vai embora pois descobre que já está atrasado, e não quer perder o próximo micro-ônibus, o que quase acontece, mas correndo e pedindo que lhe esperem, consegue chegar a tempo e encontra seu colega de trabalho, Baltazar, o motorista que trabalha com Crô na mansão da milionária Tereza Cristina.
Crô para o cobrador do micro-ônibus: 
- Querido, espera aqui por mim, espera, espera aí, licença...
Ao entrar cumprimenta Baltazar.
- Crô: Oi! Atrasado também Baltazar?
- Baltazar: A rainha do Nilo disse que eu podia chegar mais tarde.
- Crô: Hum... Então, vamos chegar juntinhos, Zoiudo!
- Baltazar: Não dá prá colocar menos perfume, não?
- Crô: Coisa de primeiro mundo, é da...
Baltazar abre a janela e reclama: Tá me dando dor de cabeça já.
- Crô: Cruzes, que climão!
Ao chegar ao trabalho, Baltazar continua reclamando ao conversar com Crô e a copeira.
- Baltazar: Não uso perfume “nem morta”!
- Crô: Que foi que você disse?
A copeira responde imitando um homossexual: Ele disse, nem morta!
Baltazar: Que é isso, tá louca? Tá louca? Vocês tão de sacanagem comigo agora?
Crô, rindo e debochando, fala para Baltazar: Tenho um uniforme rosa lá, do dia do jogo, se você quiser...
- Baltazar: Tira o cavalinho da chuva que isso não vai acontecer nunca, tá?
- Crô ironiza: Nem morta, santa!
Crô e Baltazar vão à garagem pegar o carro para ir ao supermercado, Crô senta no banco traseiro e implica com Baltazar:
- Crô: Trés bom “Jarbas” Baltazar, antes que você fale qualquer coisa, eu só fiz sua vontade, você não disse que não ia ao banco da frente comigo, então, hum?
- Baltazar: Mentira tua, tá pensando que eu sou idiota? Pensa que eu não sei que você tá curtindo onda, você de madame e eu de motorista.
- Crô fala bem no ouvido de Baltazar: Olha aqui, eu sou uma pessoa de respeito elegantíssima, você deveria se sentir privilegiado de dirigir o carro para uma pessoa como eu, aliás prá falar a verdade, você não é digno nem de tocar num carrão desses da Pitonisa de Tebas.
- Baltazar: Para de fungar no meu cangote, já não basta o dia inteiro ter que ficar olhando para tua cara...
- Crô: Se olha para minha cara, é porque gosta do que vê, porque eu sou linda, adorei!
Na volta do supermercado, a implicância entre os dois continua...
- Crô: Não fique com essa porque eu não sou o tipo de pessoa que sai por aí...
Baltazar sai e deixa Crô falando sozinho, então Crô resolve subir e ver a patroa na sua suíte...
- Crô: Não vou resistir em dar uma olhada lá no quarto.
Encontra com Baltazar na escada...
- Crô: Sai da minha frente.
- Baltazar: - Vai passa, passa, inferno!
- Crô: Muita atenção, coisa exagerada, você está proibido de me chamar de qualquer coisa relacionada ao reino animal.
- Baltazar: Esse eu não quiser?
- Crô: Depois não diga que eu não avisei, sai...
- Baltazar: Escuta aqui...
- Crô: Ai, ui! Que é isso? Se fosse uma cobra me mordia. Que é? Hum? Tá me olhando por quê? A minha voz continua a mesma, mas os meus cabelos também, dá licença.
- Baltazar: Escuta aqui, eu tô de saco cheio, se a bicha pensa que vai me tratar assim como se eu fosse nada, não vou deixar barato não, hem? Hum! Que hum nada!
Crô prepara a bandeja do lanche da patroa Tereza Cristina e canta.
- Crô: Quem espera que a vida seja feita de ilusão, pode até ficar maluco e morrer na solidão, é preciso ter cuidado prá mais tarde não sofrer, é preciso saber viver.
Baltazar chega à cozinha: Que é, coisinha, hem? A gazelinha vai ficar indiferente agora, toda hora que eu aparecer?
- Crô: Eu sou um ser humano sabia? Eu rio, eu sofro, eu choro, eu sou um homem latino americano, um homem comum.
- Baltazar: Homem? só se for para os teu garotões lá, porque prá mim você não passa de ...
- Crô: Aí, tá vendo, é disso que eu tô falando, é bulling, eu não quero, não devo e não passo mais pelas suas provocações, nem que a vaca cante Babalu em grego.
Crô leva o lanche no quarto para a patroa e Baltazar vai atrás discutindo, no momento em que ambos descem a escada, a campainha toca e Crô se apressa, dizendo: 
- Espera, Baltazar, Ladys first...
- Baltazar: Desde quando tu me chamas toda hora de Baltazar?
- Crô: Ué? Não é seu nome? Baltazar, é como chamo teu nome.
- Baltazar: Tu sempre me chamou de Zoiudo.
- Crô: Chamava, passado.
- Baltazar: - Escuta aqui, ó passarinha, até quando vai ficar com essa rabugice, ó...
- Crô: O, o quê? Já avisei que somos companheiros de trabalho, portanto nos chamamos pelo nome, você Baltazar, euzinha aqui, Clodoaldo Valério.
- Baltazar: Ah é? Eu pensei que era eu Tarzan e você Jane!
- Crô: Me ofende, me ofende prá ver se eu não te processo por assédio, hum...
- Baltazar: Tá “bonita”?
Ambos se descontrolam e começam a brigar, quando a patroa Tereza Cristina chega e grita:
- Congela!!!

ANEXO 2
DICIONÁRIO BRASILEIRO GAY BAJUBÁ - AURÉLIA
Dicionário Brasileiro Gay (do bajubá): Bajubá: Baseado nas línguas africanas empregadas pelo candomblé, é a linguagem praticada inicialmente pelos travestis e posteriormente estendida a todo o universo gay. O bajubá falado emprega uma mistura lexical (do próprio bajubá, do português e, em menor grau, do tupi) sobre a base gramatical e fonológica da língua portuguesa.
Abalar: fazer ago bem feito, o mesmo que arrasar
Abusada: alguém que não fala com ninguém, que menospreza os outros
Alibã: policial 
Alice: homossexual tolo, que vive num mundo imaginário (país das maravilhas)
Amapoa: mulher
Arara: homossexual de voz estridente
Babado: acontecimento marcante, bafão, bafo.
Barbie: homossexual malhado e afeminado
Elza: roubo
Fazer a egípcia: virar a cara e ficar de perfil (como as figuras egípcias), a fim de menosprezar ou ignorar alguém
Mafiosa: homossexual crítico, que costuma observar tudo e todos com um certo olhar de desdém, arrogância; geralmente tem uma língua muito afiada, critica e fala mal de todos
Michê: garoto de programa 
Nefertite: homossexual velho, mas que ainda conserva um estilo aristocrático
Se joga: expressão de estímulo, o mesmo que “vá em frente”
Tô bege: o mesmo que “tô boba”, “tô passada”, abismada.





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