quarta-feira, 17 de junho de 2015

MINHA ALFABETIZAÇÃO PARA A LEITURA DA VIDA

Eu fui alfabetizado lá no interior, sem a tecnologia das cartilhas, que não se sabia o que era. Tínhamos apenas um livro: "Seleta em Prosa e Verso", de Alfredo Clemente Pinto. E tudo líamos ali. E tudo dali aprendíamos. E eu lia, relia e treslia sempre as mesmas coisas. Foi dali que aprendi amar alguns textos e poemas como o que apresento a seguir.Ainda o sei de cor, o que, por sinal, significa saber de coração. Amar, portanto. Veja o poema de Bulhão Pato:

O REI E O SAPATEIRO

Era uma vez... quando foi
Eu bem ao certo não sei!
Porém sei que era uma vez
Um sapateiro e um rei.

Olha, Helena, o sapateiro
Era um pobre remendão,
Casado e com quatro filhos,
Que vivia quase sem pão.

No recanto de uma escada
Noite e dia trabalhava,
E por alívio de máguas,
Esta cantiga cantava:

"Ribeiros correm aos rios,
Os rios correm ao mar;
São tudo leis deste mundo
Que ninguém pode atalhar:
Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar!"

O rei tinha montes d'ouro
E joias em profusão,
E tinha mais que ouro e joias,
Pois tinha um bom coração.

Em vendo um pobre, acudia-lhe
Sem que o soubesse ninguém,
Que assim quer Deus que se faça.
E assim o faz tua mãe.

Por muitas vezes saía
Sem criados de libré,
E sosinho e disfarçado
Corria a cidade a pé.

Na rua do sapateiro
Passa o rei e ouve cantar:
"Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar."

Isto uma vez e mais de uma
com voz que o pranto cortava,
E o rei condoeu-se d'alma
Do velho que assim cantava.

Chegado ao palácio ordena
Que lhe arranje o seu copeiro
Um bolo, do melhorio,
E que o mande ao sapateiro.

No melhorio do bolo
E' que estava o delicado,
Pois era de peças d'ouro
Todo, todo recheado.

Os pequenos, quando o viram,
Helena, imagina então,
Os olhos que lhe deitaram
Elles que nem tinham pão!...

Mas o pai a um seu compadre,
Que às vezes o soccorria,
Foi dar de presente o bolo,
Sem ver o que nelle havia!

No dia seguinte o rei
Torna de novo a passar,
E com grande espanto seu
Ouve ainda o velho cantar;

"Ribeiros correm aos rios,
Os rios correm ao mar;
São tudo leis deste mundo
Que ninguem pode atalhar:
Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar!"

Mandou-o chamar ao palácio,
E agastado então o rei
Lhe diz: " Que é das peças d'ouro
Que no bolo te mandei?"

O pobre do sapateiro
Tremendo conta a verdade:
Abalou-se novamente
O rei na sua piedade.

"Toma esta saca", lhe diz,
"Ao erario vai daqui
Enchê-la de peças de ouro,
Que as peças são para ti."

Oh! Helena, suppõe tu
Qual foi a sua alegria,
Vendo que um thesouro aos filhos
Naquella saca traria!...

Encheu-a a mais não poder,
Pô-la às costas e partiu;
Deu quatro passos...nem tantos,
E nisto morto caíu!...

Na mão direita lhe acharam
Um papel onde se lia
Esta sentença, que o povo
Ser sobrehumana dizia:

"Eu para pobre o criei,
Tu rico fazê-lo queres;
Agora alli o tens morto:
Dá-lhe a vida, si puderes."

Bulhão Pato.

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