segunda-feira, 19 de outubro de 2015

ORFISMO E A REVISTA ORPHEU - INÍCIO DO MODERNISMO EM PORTUGAL - VISÃO DEPOIS DE UM SÉCULO

Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara
Publico abaixo dois artigos sobre o modernismo português, que estão disponíveis na internet nos endereços indicados antes de cada um deles.O orfismo foi um movimento literário fundado por um grupo de literatos portugueses nos primórdios do modernismo, tendo como membros proeminentes Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa.
O grupo fundou uma revista a que deu o nome de Orpheu, que originou a denominação do movimento, que, aliás, corresponde à primeira fase do modernismo em Portugal.
A revista não congregava apenas literatos, mas artistas de uma maneira geral. Assim fizeram parte do grupo Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Raul Leal, Luís de Montalvor e o brasileiro Ronald de Carvalho, responsável pela publicação no Brasil. Essa revista se constituiu no porta-voz do pré-modernismo português, recebendo influências de movimentos artísticos europeus do momento como o cubismo, e futurismo e outras vanguardas de então.
Em pleno conflito mundial, em 1915, iniciou-se o orfismo português. Sempre com o intuito de modernizar o país, a revista Orpheu publicou seu primeiro número em janeiro de 1915, estabelecendo-se que sua publicação seria trimestral.
Seus membros buscavam novas formas de expressão artística e literária, influenciados pelos valores dessas vanguardas, os orfistas lançavam um olhar para o mundo e suas inovações tecnológicas, rompendo definitivamente com o passado e sua feição simbolista.
 Luís de Montalvor escreve um artigo introdutório para a revista em que afirma: “O que é propriamente revista em sua essência de vida e cotidiano, deixa-o de ser ORPHEU, para melhor se engalanar do seu título e propor-se.
E propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se desassemelhar de outros meios, maneiras de formas de realizar arte, tendo por notável nosso volume de Beleza não ser incaracterístico ou fragmentado, como literárias que são essas duas formas de fazer revista ou jornal.
Puras e raras suas intenções como seu destino de Beleza é o do:—Exílio!
Bem propriamente, ORPHEU, é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento…
Nossa pretensão é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em ORPHEU o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos.
A fotografia de geração, raça ou meio, com o seu mundo imediato de exibição a que frequentemente se chama literatura e é sumo do que para aí se intitula revista, com a variedade a inferiorizar pela igualdade de assuntos (artigo, seção ou momentos) qualquer tentativa de arte —deixa de existir no texto preocupado de ORPHEU.
Isto explica nossa ansiedade e nossa essência!”.
Fernando Pessoa publica nesse exemplar número 1, de janeiro de 1915, num período conturbado como mais não poderia ser, pois se estava no segundo ano da Primeira Guerra Mundial, um poema intitulado “Ode Triunfal”, iniciando a empregar um de seus heterônimos mais produtivos: Álvaro de Campos.
Óde Triunfal
 Álvaro de Campos
“À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
 Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!


Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!


À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!


Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, betão de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parcks.
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

(...)

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento da deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo dos navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre os dentes o teu cap de duas cores.
(...)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro ás vossas esquinas.
(…)

Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como queria
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

(…)

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim.
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus.
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...


Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! Eia
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-há! He-hô! H-o-o-o-o-o!
 Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!



Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!”


Como se pode perceber pelo tom de todo o poema, trata-se da expressão do ardor futurista assumido por Pessoa nesse momento. Retrata a insubmissão e rebeldia dos movimentos modernistas.
No seguinte endereço eletrônico, há um comentário muito eloquente sobre esse poema que revela o espírito da época. O que se chama, em alemão de Zeitgeist. Trata-se do blog de nome Apoio a Português, que traz importantes análises de obras literárias portuguesas:
(http://apoioptg.blogspot.com.br/2007/05/de-triunfal-de-lvaro-de-campos.html)
“Reconhece uma evolução ao longo de três fases:
A decadentista, que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações; a futurista e sensacionista, caracterizada pela exaltação da energia, de “todas as dinâmicas”, da velocidade e da força até situações de paroxismo; e finalmente a fase intimista em que o poeta, diante da incapacidade de realizar o que projetou, entra novamente na abulia, no abatimento, que provoca um supressíssimo cansaço.

Este poema integra-se claramente na segunda fase de evolução do poeta a futurista sensacionista. Esta foi influenciada pelo futurismo de Marinetti e pelo sensacionismo de Whitman. Se bem que ambos estejam presentes na Ode Triunfal, o facto é que o sensacionismo acaba por absorver o futurismo.
Neste poema, merece desde já a nossa atenção o título. Ode remete-nos para um canto de exaltação. Neste caso o “eu” exalta a máquina, a vida mecânica e industrial, a civilização industrial, o quotidiano das gentes, ou melhor, as sensações que defluem do amor à vida moderna em toda a sua variedade. Com o epíteto triunfal pretende-se vincar, mas também hiperbolizar o sentido de ode. Dá-nos deste modo logo a sensação de qualquer coisa de grandioso, não apenas no conteúdo, mas também na forma.
Foi exactamente com os poemas desta segunda fase de Álvaro de Campos que Fernando Pessoa mais se afastou do lirismo tradicional. Daqui resulta a dificuldade de analisar estes poemas.
A rotura com a lírica tradicional verifica-se mormente na irregularidade das estrofes. Existem estrofes de quatro versos, de dez, de onze, de dezasseis, etc. Semelhante irregularidade se detecta na métrica: há versos de cinco a vinte e uma sílabas e outros em que a contagem se torna difícil, sobretudo quando entram sons que não são signos linguísticos. Da conjugação destes elementos resulta um ritmo nervoso e irregular, que traduz a dinâmica vivencial do sujeito poético, a sua energia interior.
Ao nível da sintaxe é também possível constatar o afastamento da lírica tradicional. A quase ausência de subordinação (algumas relativas, poucas comparativas e uma consecutiva) corrobora esta afirmação. As orações coordenadas marcam parataticamente o ritmo rápido do poema. Cada oração coordenada exprime um fenómeno da vida moderna que cruzou o pensamento do sujeito de enunciação. Ao longo do poema surgem ainda exclamações que sublinham a emoção do sujeito diante dos fenómenos da vida moderna. Repare-se nos últimos versos: vinte e cinco são exclamações, sendo apenas três afirmações onde se verifica a presença do verbo. Os infinitivos marcam também presença nas expressões exclamativas. Devemos ainda considerar nesta linha de pensamento as repetições e as enumerações gradativas, permitindo a justaposição de palavras, que brotam torrencialmente através dessas enumerações falsamente caóticas, que conduzem ao excesso de expressão definido por José Augusto Seabra. Tudo o que até agora mencionei, aliado a uma catadupa de figuras (metáforas, comparações, imagens, apóstrofes, anáforas, etc.) produzem um estilo ferozmente dinâmico que jamais se produziu em Portugal.
Aparecem também alguns desvios sintácticos “ fera para a beleza de tudo isto”; “Por todos os meus nervos dissecados fora”; “frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita”.
Há palavras que não transportam em si interesse lírico. Não obstante Álvaro de Campos como o escritor parnasiano recorreu a uma série de vocábulos prosaicos até de índole técnica “fábrica”, “maquinismos”, “dissecados”, “correias de transmissão”, “êmbolos”, “cargas de navios”, “guindastes”, “chumaceiras”, etc., adaptando a mudança da vida moderna à mudança no conteúdo ideológico das palavras.
Sendo esta a primeira obra de Campos, tem o dom de despertar em nós admiração e até espanto, contribuindo para tal, como já referi, o próprio vocabulário.
O poema inicia-se com a iluminação das lâmpadas eléctricas. Somos colocados no meio de um ambiente fabril, em que o sujeito poético escreve num estado febril. Sentimos de repente um rugir “rugindo os dentes” que nos afasta do tempo dos outros heterónimos. Estamos num tempo de modernidade
Logo no início da segunda estrofe somos lançados no meio dos ruídos de todos os elementos que constituem a dita fábrica. O homem enfraquecido pela febre, exposto aos barulhos produzidos pelas máquinas, é arrebatado pelos movimentos dos mecanismos (rodas, engrenagens). O seu ritmo coaduna-se ao ritmo das máquinas que estão à sua volta. São as papilas, os lábios, os nervos e a sua cabeça que giram como os mecanismos da civilização moderna. Todo este mundo chega até si através dos sentidos que estão alerta procurando abarcar tudo.
A maioria das suas frases são nominais, jogando apenas com verbos conjugados que se referem ao sujeito poético “tenho febre”, “escrevo”, “sinto”, “canto”. Os verbos no infinitivo são também recorrentes. A forma como o “ eu” observa e tenta abarcar o mundo não parece dar-lhe tempo para organizar o seu discurso de outro modo. O uso recorrente de exclamações, interjeições e onomatopeias: “r-r-r-r-r- eterno!; “Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios”; “Hup-lá, hup-lá, hup lá hô...; as apóstrofes “Ó fazendas nas montras”, Ó manequins!, “Ó últimos figurinos! Ó cais, ó portos, ó comboios!....; as enumerações “Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!; “guerras, tratados, invasões, Ruído, injustiças, violências” e nas apóstrofes; as anáforas “Olá grandes armazéns, ... Olá anúncios eléctricos... Olá tudo!; “Eh-lá-hô fachadas, Eh-lá-hô elevadores, Eh-lá-hô recomposições ministeriais!” são os recursos estilísticos que lhe permitem cantar com excesso de expressão as suas sensações.
Acrescente-se ainda o recurso a comparações inesperadas “olhando os motores como a uma natureza tropical”; “Possuo-vos como a uma mulher bela”; “um orçamento é tão natural como uma árvore e um parlamento tão belo como uma borboleta.”
O excesso de expressão corporiza-se ainda nas aliterações onomatopaicas “ de ferro e fogo e força” “ rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando” e “quase silêncio ciciante”.
Note-se ainda a frequência de uma série de sequências de três ou mais adjectivos ”Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável”; “Em vós ó grandes, banais, úteis, inúteis”; “Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus”; Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos”. Veja-se ainda uma série de adjectivos e advérbios que servem a exaltação do belo atroz “Maravilhosa gente humana que vive como cães”; “fauna maravilhosa do fundo do mar da vida”; “Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transtlânticos!”; “ruído cruel e delicioso da civilização”. Agora os advérbios “Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos”; “Amo-vos carnivoramente / Pervertidamente”
Termina de forma abrupta o furor do eu que exalta o seu amor pela civilização, passando o tom a ser de uma certa fatalidade da morte, a ternura perdida na infância e o mistério do mundo.
Campos aproxima-se de Caeiro no recurso ao verso livre e na importância conferida à sensação. Mas o que no mestre é a “sensação das coisas como são” em Campos, o que salta à vista é a fome de um mundo de sensações novas. Daí que sinta o bem como sente o mal, o mórbido como sente o saudável, o normal como sente o anormal, única forma de “ser toda a gente e toda a parte” e “sentir tudo de todas as maneiras”.
Assim o que é serenidade epicurista em Caeiro é ânsia futurista do novo Homem (segundo Marinetti deveria este ser isento, saudável, amoral, dominador e livre de todas as peias) em Campos “que como uma febre e um cio e uma fome agita” o impele a querer sentir tudo de todas as maneiras.” (FIM DO ARTIGO)
Ainda na linha do pensamento que envolve o orfismo, há um artigo do escritor Gabriel Viviani, comparando o pensamento de Fernando Pessoa e o de Mário de Sá-Carneiro, cujas observações são muito interessantes. Transcrevo abaixo o texto completo que está disponível em:
http://www.debatesculturais.com.br/o-ser-em-conflito-analise-da-obra-de-sa-carneiro-e-fernando-pessoa/
“Diz o poeta Mário de Sá-Carneiro, nuns versos sem título: “Eu não sou eu nem sou outro, Sou qualquer coisa de intermédio”. O jovem nascido numa família de militares não fingia a dor confessada: naquela personalidade corroía a angústia da afirmação do Ser. Apesar da origem burguesa, jamais conseguiu adaptar-se às convenções sociais. Abandonou o curso de direito na cidade de Coimbra, supondo encontrar em Paris a vida idealizada. Qual vida? Talvez nem mesmo o poeta soubesse definir. O que lá encontrou foi uma existência boêmia, em contraste absoluto com os desígnios originais – a viagem de Sá-Carneiro, custeada pelo progenitor, tinha como finalidade concluir os estudos na Sorbonne. O poeta sofreu as oscilações de uma personalidade problemática, envolveu-se com uma prostituta, publicou livros que tiveram excelente acolhida junto a um público sofisticado, agitou o meio literário português lançando a revista O Orpheu – ao lado de outros escritores modernistas, como Fernando Pessoa – e, em Abril de 1916, bastante jovem, suicidou-se com estricnina.
Os versos de Sá-Carneiro expressam a aflição do autor sem o subterfúgio de heterônimos. O que lá está é o poeta. Contudo, o tema que neles encontramos é justamente a indefinição do ser, o dilema de perceber-se “qualquer coisa de intermédio”. Seria impossível ler a obra de Sá-Carneiro e não compreender o seu fervente desejo de plenitude. Quer ser completo, quer tudo com profunda intensidade.
Quero ser Eu plenamente, confessa. Quer, portanto, o ideal! Um dos principais fundadores do modernismo português revela assim sua veia romântica. Sabe-se insatisfeito com a existência medíocre e relativa, vida pela metade, diluída em satisfações fugidias.
Ser plenamente. O desejo de Sá-Carneiro não tinha, porém, suficiente objetividade:
Quero sentir. Não sei… perco-me todo…
Não posso afeiçoar-me nem ser eu…
Que os poetas jamais se sentiram inteiramente adaptados às circunstâncias do mundo, Baudelaire já o havia exprimido no seu Albatroz. O jovem lusitano talvezexperimentasse essa inadequação, não encontrando na sociedade o lugar adequado, sendo obrigado a vestir o fato de outro, como escreveu Álvaro de Campos. Seu ser íntimo não correspondia com o ambiente que o rodeava. Sua vocação literária não reconhecia-se em Coimbra ou na Sorbonne, excedia o comum de uma rotina profissional. Portanto, Mário de Sá-Carneiro projeta na obra poética a vida tão idealizada, supondo encontrar ali:
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os cenários que entretanto Fui…
Se o jovem era vítima da vocação artística, se se movimentava desajeitadamente no convés da sociedade, repartido entre a realidade estéril e os cenários projetados, é também preciso admitir que a cultura vigente na Europa do período encontrava-se eivada por quase cinco séculos de pensamento subjetivista, idealista, relativista e niilista. Não, Mário de Sá-Carneiro jamais empunhou conscientemente tais bandeiras nos versos que escreveu, jamais defendeu qualquer escola filosófica específica, mas ali estava inegavelmente um homem do seu tempo.
Tempo de descrença profunda, que não por acaso produziu a visão sombria do existencialismo.
O ser e o não-ser reverberaram nos versos de Sá-Carneiro, mas já se “estranhavam” há mais de dois mil anos no debate filosófico. Pode-se afirmar, inclusive, que o pensamento dos gregos evoluiu a partir dos problemas metafísico e ontológico, já desde os pré-socráticos até Sócrates, Platão e Aristóteles – o ser claramente se identificando com a divindade e o não-ser com a contingência do material. A influência da Grécia na formação da cultura Ocidental é inegável, e é inegável também que a teologia cristã da Patrística e da Escolástica bebeu nessas mesmas fontes. As ideias de Platão e o Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles se fundiram à verdade revelada do cristianismo, e o conceito de Deus como Ser em essência e da existência humana como dependente do Ser de Deus tornou-se consequência necessária dessa aproximação. O indivíduo existe porque Deus “é”, portanto, seu substrato ontológico permanece garantido pelo Ser da divindade. Daí concluímos que a existência do homem depende de um fator ab extrinseco, cuja manifestação na criatura dá-se, não obstante, intrinsecamente.
Tão certo quanto haver a filosofia dos gregos e a teologia dos cristãos estabelecido a origem do Ser em Deus, é a modernidade ter de lá retirado com o objetivo de encontrá-la nos mais diferentes lugares. Já Descartes afirmava que a realidade primordial do homem é o seu ‘pensar’: Cogito, ergo sum… Penso, logo existo! Sim, é fato que ele, em última instância, vai buscar em Deus sua garantia ontológica, mas é indubitável também que sua conclusão existencial não parte da divindade, e sim do seu “pensar”. Se Descartes é o pai do subjetivismo ou se o subjetivismo é a má interpretação de Descartes, o fato é que a ruptura acontece: o “existo porque Deus existe”substitui-se pelo “penso, logo existo”. O existir fica dependente do sujeito pensante. Outros filósofos ou correntes de pensamento se esforçaram, de maneiras diversas, na tentativa de materializar o Ser. A História é a materialização do Ser em Hegel, sua evolução dialética o modo como o Ser se desenvolve, e o Estado sua plena realização. Sorvendo nestas fontes de Hegel, o socialismo utópico entende que a sociedade atual ainda não “é” plenamente: será plenamente só quando o estado socialista já não encontrar resistência. O conflito existencial está, portanto, no cerne da cultura moderna, conclusão a que chega Paul Tillich, no livro A Coragem de Ser.
O desejo que Mário de Sá-Carneiro expressa é o mesmo que aflige os modernos: desejo de ser. Sente o impulso de sair de si, de tornar-se outro, de já encontrar a plena realização do eu. Como os utopistas, projeta a realização num universo imaginário, esconjurando a realidade atual, tão diferente da vida que lhe apetece viver:
Desfiles, danças – embora
Mal sejam uma ilusão.
– Cenário de mutação
Pela minha vida afora!
Sofre, no entanto, a desilusão. Thomas Morus já explicara o significado da palavra utopia: lugar nenhum. O caminho para a realização do ser não é a fuga da realidade, nem tampouco a idealização de um destino hipotético, de uma vida imaginária. Quando o indivíduo alimenta-se com fantasias, acaba experimentando o sabor amargo do fracasso. Cedo ou tarde, o mundo, tal como ele é, se impõe forçosamente, e aí o que sobra é o lamento:
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a extensão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo… e tudo errou…
– Ai a dor de ser-quase, dor sem fim… –Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…
O estado intermediário entre aquilo que se “é” de verdade e aquilo que se pretendia “ser” torna-se um limbo. O indivíduo que ali permanece vaga como as angustiadas almas do Hades. A fantasia está desfeita, o malogro escurece completamente sua existência, como um corvo à espreita da morte inevitável. Já desesperou de encontrar novos caminhos, pois se por um lado não tem qualquer intenção de voltar ao que era antes, supõe também impossível atingir a meta outrora sonhada. O nada é seu destino! Sim, o niilismo foi outra das tendências daquele momento histórico. A completa ausência de significado na vida conduzia à busca tenebrosa pela extinção total. Se o mundo não tem sentido, se só o que existe é sofrimento, deve-se mergulhar no nada! Os personagens de Dostoievski retratam perfeitamente tais indivíduos. Também Mário de Sá-Carneiro optou pelo nada absoluto… O conflito do ser cansou-o ainda na juventude. Seus versos antecipam o suicídio:
A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.
Além das afinidades fraternal e intelectual, Mário Sá-Carneiro e Fernando Pessoa compartilham a questão do ser. Quando se lê certos versos de Pessoa, comparando-os aos do colega, chega-se mesmo a imaginar que, caso se atribuísse a autoria ao outro, até o crítico especializado encontraria dificuldades de perceber o equívoco. Não pretendo começar aqui o debate a respeito de quem teria sido influenciado por quem… O tema é espinhoso, e exigiria pesquisas e espaço mais amplos. Da leitura de ambos os poetas fica, contudo, a certeza de que, de modos diversos, travaram uma luta contra o conflito do ser, o primeiro expressando-se visceralmente e o segundo intelectualmente ou metafisicamente ou, por que não, ironicamente. O poema intitulado Esta velha angústia, do heterônimo Álvaro de Campos – de todos, aquele que vive o conflito de maneira mais radical e mesmo histérica – fala por si:
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…
Isto.
Tema de complexidade semelhante ao de identificar supostas influências exercidas de um poeta sobre o outro é determinar, com exatidão, até que ponto o Fernando Pessoa ele-mesmo encontra-se presente nos heterônimos. Onde é que a realidade termina e onde tem início a ficção? O crítico literário ou o apreciador dos versos pessoanos provavelmente jamais conseguirá chegar a um consenso, pois há indícios de que o próprio bardo lusitano edificou a obra no limite entre o real e a fantasia. O poeta é um fingidor, ele escreve. A João Gaspar Simões, confessa: “O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo… O crítico sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente, me esqueci de sentir”. São, portanto, ficções construídas sobre alicerces reais, transmutações de si mesmo, variações a respeito do tema pessoano. Seus versos confessam o que “é” o poeta e também o que “não é”. Por isso o poema que lá começava afirmando: O poeta é um fingidor… Segue dizendo: Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente.
Adolfo Casais Monteiro crê que o nascimento dos heterônimos foi completamente espontâneo, não sendo um projeto delineado com ampla sutileza de detalhes. Sua opinião é baseada na correspondência que manteve com o poeta, e entendo ser bastante crível. Seja como for, deliberadamente ou não, os principais heterônimos de Fernando Pessoa abordam a problemática do ser e do não-ser, sob aspectos diferentes, com perspectivas também diferentes. Que o criador desses personagens era dono de uma formação clássica – e não esqueçamos que a cultura clássica é, em essência, o dualismo grego –, os estudiosos não têm dúvidas; daí é possível concluir que a temática do ser e do não-ser estava entranhada no seu pensamento.
Álvaro de Campos é, dos três, o que corporifica o dualismo de modo conflituoso, tal como observamos. Quanto aos outros dois, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, aquele aparentemente vive a solução prática do problema, enquanto este pretende a solução teórica. Fiquemos com Álvaro, a princípio… É nos versos deste heterônimo que identificamos maior semelhança entre Pessoa e Sá-Carneiro. Seu criador ousa denominá-lo “o mais histericamente histérico de mim”, pois o poeta a si mesmo se considera histero-neurastênico, com “tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação”. Ora, Álvaro de Campos é a própria despersonalização e simulação, característica que compartilha com Mário de Sá-Carneiro. O heterônimo deseja ser outro também, quer desesperadamente se desvencilhar daquilo que é:
Na casa defronte de mim e dos meus sonhos, Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.
Pesa-lhe sobre os ombros a impressão de ser um falhado, de não haver alcançado um objetivo qualquer. Eis o lamento que está presente na conhecida Tabacaria:
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
Aqui se manifesta a tal “qualquer coisa de intermédio” de Sá-Carneiro, o mesmo “estar entre” que o heterônimo já confessara. O desejo de ser não é completamente realizado, obrigando o poeta a viver no limbo da indefinição da personalidade. Também como Sá-Carneiro, no entanto, Álvaro de Campos admite sequer ter um objetivo definido:
Falhei em tudo
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
Que não se diga, porém, ser Álvaro de Campos o decalque desprovido de originalidade de Sá-Carneiro. Se o dilema que os incomoda é o mesmo, se a fonte daquele mal-estar é compartilhada, a maneira como ambos reagem mostra-nos discrepâncias. Mário de Sá-Carneiro vive radicalmente o inconformismo da inadequação, jamais se prostra à vida prática, assumindo por completo a responsabilidade do êxito ou do fracasso. Quanto a Álvaro, ser ou não-ser é intelectualização, o heterônimo não tem a coragem de experimentar, de fato, o radicalismo defendido em versos. Deseja “… ir ser selvagem, entre árvores e esquecimentos”, pouco antes fala de abandonar lógicas e sacadas, mas continua existindo como engenheiro. Sente o impulso e, logo em seguida, o cansaço da realização. Seu lado abúlico – herdado de Fernando Pessoa – manifesta-se em Adiamento, por exemplo, ou mesmo nos versos da Tabacaria. Se para Mário de Sá-Carneiro a possibilidade do meio-termo não existe, e seu dilema é angústia eradicalismo, para Álvaro de Campos ser radical exigiria tomar decisões, coisa bem contrária à sua natureza, e por isso o dilema que confessa, é somente angústia e conformismo:
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com grande fato de outro, A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio!…
O mal sofrido por Álvaro de Campos é o de viver no pensamento constantemente. Ali se percebe aprisionado por elucubrações, girando sempre na vertigem do “quase-ser”, do “querer-ser”, do saber “não-ser”. Quisera sair da imaginação e mergulhar na realidade do mundo! O desejo de abandonar todas as lógicas, deitar fora os fatos da sociedade a fim de ir “ser selvagem” é seu lado romântico. Sabe, no entanto, que não basta somente “estar” próximo a natureza, é necessário “ser” a natureza… O encontro com Alberto Caeiro torna-se, então, acontecimento decisivo. Chama-o de mestre! Caeiro mostra-se o ideal buscado por Álvaro, embora o conceito de idealismo esteja distante dos versos bucólicos daquele mestre.
Que deslumbramento é, afinal, o que Alberto Caeiro promove no poeta engenheiro?
O que encanta e surpreende o discípulo: a filosofia anti-filosófica, a metafísica anti-metafísica do mestre, a perfeita comunhão, comunhão pacífica confessada entre o poeta e a Natureza. Por não se pensar a si mesmo senão como participante do Todo, Caeiro é o protótipo do ser liberto, desprovido das amarras sociais, das tradições, da civilização tecnológica. O ideal do movimento romântico manifesta-se naquela personalidade, e o mestre conhece“naturalmente” o “… ser selvagem, entre árvores e esquecimentos”, que Álvaro de Campos não conhecerá jamais. Pois se Álvaro sabe-se um prisioneiro das próprias reflexões e também da sociedade, Caeiro não sabe senão o esquecimento de si, sendo espontâneo como a tempestade e o amanhecer:
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minha emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.

Caeiro não se encontra, portanto, preocupado com desvendar “… o sentido íntimo das coisas…”, nele não há despersonalização, nem tampouco o desejo de ser outro. Seu existir é no agora, seu fruir é no tempo presente, sentindo o perfume das flores quando há, e não desejando sentir quando não há. Desejo e realidade nele compartilham o mesmo idioma, caminham juntos, e Caeiro não compreenderia o idealismo do querer “deixar de ser” e projetar, no futuro, a felicidade que já está disponível. Carpe diem, dir-se-ia. Quem sabe… Mas o poeta não compreende filosoficamente, senão naturalmente. Vive, a princípio, sem o conflito do pensar, segundo admite:“Acho tão natural que não se pense”. Crê em Deus? Se Deus identificar-se com a Natureza… Para além disso, Caeiro prefere não cogitar.
Significaria, caso o fizesse, perder o presente e não conquistar nada de realmente confiável. “Para mim pensar nisso é fechar os olhos / E não pensar”. Contudo, o mestre rejeita a alcunha de materialista. Rejeitaria se o aproximássemos da espiritualidade franciscana? Sim, provavelmente… S. Francisco de Assis experimentava, de modo transcendente, o contato com Deus na natureza; Alberto Caeiro, por seu turno, aquilo que experimenta experimenta no âmbito da pura imanência.
O curioso deste heterônimo é o destino dado a ele por Fernando Pessoa. Se Caeiro significava a solução da problemática “ser e não-ser”, nele inexistindo os intermináveis dilemas existenciais de Álvaro de Campos, Mário de Sá-Carneiro e, decerto, do próprio Pessoa, como explicar que também o poeta bucólico acabasse caindo, ao final, na prisão do pensamento? Os poemas do Pastor Amoroso revelam Caeiro abandonando a vida do imediato para envolver-se nas teias da própria interioridade. O amor… O amor tira o poeta do mundo natural, e o aprisiona no pensamento. Sonha aquela que é objeto do seu desejo, projeta sua figura no espaço, troca a realidade pela imaginação:
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.

Outro verso do Pastor Amoroso diz:
Como o campo é vasto e o amor interior…!
Rompe-se a comunhão estabelecida entre o poeta e a Natureza. Seu ser desencontra-se com o ser das coisas, e o diálogo que antes era harmônico, torna-se dúbio. Caeiro já não sabe com a mesma distinção o mundo físico, porque o amor transformou-lhe o significado. É que a vida íntima, atrofiada no passado, agora transborda, contaminando a realidade natural. “Todos os dias acordo com alegria e pena. / Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava”, escreve. Seuromantismo do “ser selvagem” abre espaço para outro aspecto: o do intimismo romântico. Sim, pois não é somente o cartesianismo que aprisiona o indivíduo na consciência, também o movimento romântico descobre a intimidade. Caeiro cede, portanto, ao dilema da civilização moderna: o dualismo entre a alma e a matéria, o abismo entre a consciência e a realidade exterior. O rompimento é lamentado pelo heterônimo: “Talvez quem vê bem não sirva para sentir”. Um destino, sem dúvida, peculiar. Fernando Pessoa constrói o estilo ideal de vida desejado para si e para os reflexos ficcionados de sua personalidade, e, ao término, frustra-o como todas as utopias.
Supõe-se, então, que não exista qualquer solução verdadeira para a problemática do ser e do não-ser. Chegara a tal conclusão o criador do universo de heterônimos? Teria compreendido que a única saída é mesmo aceitar o dilema com resignação, conformar-se com o pouco ou nada que se “é”, e não esperar qualquer acréscimo do idealismo ou das divindades? O misto de estoicismo e epicurismo que compõe a personalidade de Ricardo Reis parece induzir a esse caminho. O outro discípulo de Caeiro não compartilha aquele histrionismo de Álvaro de Campos, não escreve raivosamente, ao contrário, é portador de um estilo medido e sofisticado. Sua tranquilidade não advém da esperança sobrenatural, nem tampouco da confiança humana. Ser calmamente, para Ricardo Reis, significa simplesmente admitir a insignificância:
Melhor destino que o de conhecer-se
ão frui quem mente frui. Antes, sabendo,
 Ser nada, que ignorando:
Nada dentro de nada.
A crença na inevitabilidade do destino está no centro do pensamento de Ricardo Reis. Sendo um helenista, abraça o conceito tão caro à cultura grega. O conhecido mito do eterno retorno é a origem dessa visão negativa sobre o destino da humanidade: independente da atitude do homem, o cosmos encontra-se fadado a destruições e ressurgimentos contínuos. Preso no interior desse círculo, o indivíduo jamais conseguirá ser o dono de si. A tríade clássica, Sócrates, Platão e Aristóteles representa, de certo modo, a ruptura e o abandono do mito do eterno retorno no pensamento antigo. Quando o Estagirita estabelece a “causa final”, oferece ao ser humano a esperança da finalidade definitiva. O otimismo desses três é o ápice da filosofia grega! Que foi feito do velho mito? Não desapareceu absolutamente. Sua influência exerceu-se, ainda, entre os epicuristas e os estóicos. Os primeiros mergulhando na satisfação dos prazeres morais e intelectuais, pois a distância dos deuses impossibilitava o acesso ao sentido sobrenatural. Se o homem está aprisionado na realidade material, se a morte é realmente inevitável, e tudo para além bastante duvidoso, pouco resta a nós senão aproveitar a vida. Quanto ao estoicismo, sua resignação aos limites da existência nasce justamente dessa fatalidade do destinohumano. É preciso suportar as desgraças que se abatem sobre nós, “estoicamente”, porque seria inútil confrontar o destino.
As rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas vólucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente,
Que há noites antes e após
O pouco que duramos.
Perecer é o termo inescapável para as rosas, bem como para o bardo e sua musa. Viver é um dia, do nascer ao pôr-do-sol, e não há nada que se possa fazer. Rebelar-se? Tolice. O verdadeiro prêmio por conhecer esse fato é não ser mais necessário inquietar-se: o que tiver que ser será. O destino precisa cumprir-se, inevitavelmente. Então que se ame as rosas de Adônis, que se goze os prazeres da Natureza, à espera do momento decisivo. Aí está, em Ricardo Reis, o conformismo estóico unido ao hedonismo de Epicuro.
Como seu discurso responde a problemática do ser, tão presente na obra pessoana? Certamente não é desejando “ser outro”, como Álvaro de Campos, desiludindo-se como Sá-Carneiro. O mestre Caeiro ensinou a Ricardo Reis a naturalidade, e este interpretou-a afastando-se do paganismo anti-metafísico do primeiro, forjando a passividade daquele que se reconhece do modo que “é”, independente da vontade dos deuses, alheio às expectativas, desprovido das idealizações. Ser é ser, e pronto! Compreendendo as limitações, adequando-se às medidas do que lhe é natural, sem aguardar nada além disso, nem tolerar menos também.
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Seria a resposta final de Fernando Pessoa, a conclusão definitiva sobre o dilema do ser? Não ouso afirmar. O quebra-cabeças do genial lusitano furta-se a deduções inquestionáveis. Também não me parece correto que o leitor ou o crítico se proponha a identificar, na obra do poeta, certa objetividade que talvez não fosse intenção do autor. Pode-se imaginar, por exemplo, que os heterônimos jamais representaram a tentativa de compreender o dualismo do ser, mas sim a forma de realização de sua personalidade multifacetada. Se Mário de Sá-Carneiro sentiu-se frustrado diante da impossibilidade de “ser outro” na realidade, Fernando Pessoa aplacou a angústia sendo muitos na literatura. O que faltou ao primeiro? Por que suicidou-se? Quem sabe o senso de humor do amigo! Afinal de contas, aquele que escreveu Adiamento e Poema em Linha Reta, não poderia terminar com frascos de estricnina.” (FINAL DO ARTIGO)




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