sexta-feira, 28 de julho de 2017

VELHA TAPERA NA ALMA

Oscar Luiz Brisolara
A tarde caía doce, amarga. O céu tingido de cantos de quero-queros, muitos, afrontando os cães que seguiam à frente, à procura de ovos ou filhotes de perdizes. Na encosta suave, por entre chircas e samambaias, o vulto do velho Vicente Pedro Brizolara, esmaecido nas dobras do tempo, trôpego, buscava a sombra da velha figueira que seu pai plantara na juventude.
As raízes da eterna árvore cravadas no chão apelavam para a história. O antigo Pietro. A Gênova distante. Ana Francisca. Dos Silveiras, açorianos. Deles, os três Pedros. O Pedro puro. O José Pedro. Mais tardiamente, em 1840, o Joaquim Pedro. E foram depois tantos Pedros dos Brizolaras, confundindo as sendas da vida e da história.
Ecos de vozes. Meio apagados. Um quadro do casal: Pietro e Ana Francisca. O casamento. Mil oitocentos e pouco, parece. A grande parede. A casa grande. De diante do moinho. Diziam os que viram. Faziam farinha para Giuseppe e Bento, o Garibaldi e o Gonçalves, da Revolução dos Farrapos. 
Pois o velho Vicente Pedro vinha deles. Não sabia direito como. E o campo. Alguns dinheiros. Papelada e livros nos gavetões. Tudo havia sido deles. Ninguém sabia direito...
E houvera também as três meninas. A Maria, a Francisca e a encantadora Madalena Teodora, a última dos Brizolaras da primeira geração brasileira. Francisca, com seu marido Manuel da Rosa, seu irmão José Pedro e a esposa dele Luíza Amélia, foram-se. Taquarembó. Uruguai. Para sempre.
Pois a tarde continuava morrendo amolecida, entre sonhos e incertezas. Escravos semivestidos rolavam blocos irregulares que davam feição de moradia ao projeto no topo da colina grande. A estrada, naqueles dias, um simples trilho no capim, cortado pelas rodas das carretas. E o lajeado grande já repousava quente ao sol que se sumia na boca da noite, como impassivelmente, pelos séculos afora, o faz até hoje.
Por que quero-queros e perdizes jamais pousam num galho de árvore, num fio de cercado, num moirão de canto de alambrado, como o fazem os bem-te-vis e as rolas? Na alma, ao longe, um cheirinho doce de arrolar de pombos e suspiros de sabiás, conduzia o fio de tudo. Não enxergava o teclado, perdido nas brenhas do tempo.
Um mugido do velho Cabiuna, marcado no couro que fora tapete da sala central, por tempos sem conta, ainda ressoava nos meus ouvidos, sentindo as batidas do coração da velha Joaquina Farias Brizolara, descansando suas carnes flácidas, no antigo banco de madeira bruta. 
Observava, um tanto confusa, o Pedrinho, que, sofregamente, esmagava as formigas miúdas, surgindo muitas de por debaixo da porta dos fundos. Seriam já traços de sua insanidade? Ou não a tivera nenhuma? Teriam sido, quem sabe, apenas os desassombros e desajustes de uma cultura que se batia com outra, sem lógica. Explicação alguma que pudesse compreender. As revoluções. Os negócios ruins. Bois. Gente má. Campo. Não sabia o quê... como...
Pois, Pedro crescera. Casara-se com Altina, a Maria, dos Cruz, gente mais pobre que vivia num corredor de estância. Heleodoro, o Dorinho, ainda menino, a Elisa, um ano mais nova, foram levados para o galpão, enquanto seis homens fortes amarraram o Pedro. Hospício. Porto Alegre. Desespero. Enforcou-se. Alguém já ouviu falar de quero-quero enforcado? Perdiz, então? 
Ninguém mais falou. Nem o corpo. Não se falava. Mas Pedro Farias Brizolara, meio fantasma, meio espectro, meio assombração, viveu na alma de todos, por longos tempos. Arrepios. Sestros. Credo! Até que, aos poucos, a história apagou. Sem túmulo. Sem nada. Pedro Farias Brizolara ficou uma assinatura num livro de cartório de terras. Só. Ninguém mais fala. Ninguém sabe.
Depois, então, do Doro veio o Valcir. Os cartórios atrapalharam um pouco. Brizolara virou Brisolara. E eu saí desse ramo, que forjou minha face e minh’alma, misturado aos Pegoraros de Trento e aos Wolcans da Austro-Hungria.
Pois esses Brizolaras, também, como quero-queros e perdizes, jamais se desprendiam da terra. A segurança. O chão duro e firme. Mensurável. O abrigo. Porém, vieram as políticas. As revoluções. Os bancos. As partilhas e testamentos. As terras, divididas, divididas, divididas... sumiram de sob os seus pés perdidos. Vive-se hoje, como quero-queros, em estádios de futebol. Deslocados, sem entender a bola que voa e o povo que grita.
Visões de odores estranhos. Cheiros de céus antigos. Paredes batendo no fundo da alma. Gostos de sombras incompletas. Almas arranhando a pele. Uma sensação de presente perdido, atado por fios enredados em confusas histórias do que sou, mergulhado nas almas e nos corpos dos que foram... pois vivem e moram na alma e no corpo dos que ficaram, plantados para todo sempre, fisicamente no mais íntimo das células. Sou sepulturas vivas... de mortos que vivem mergulhados na essência do meu ser, em que revivem todos como carne e memória...

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